Antropogenia … antropocentria
A ética busca congregar as ações humanas em torno a um princípio que não seja parcial, não fomente os interesses egoístas dos agentes morais e, acima de tudo, que possa ser compreendido e aceito como válido por qualquer indivíduo com as características de um sujeito moral agente: raciocínio inteligente, capacidade de ponderar sobre os interesses, necessidades e propósitos alheios, e disposição da vontade para agir de acordo com as conclusões a que chega. Na ética prática essas habilidades vêm sendo desenvolvidas com o propósito de não mais excluir outros seres vivos do âmbito do respeito desinteressado.
A tradição ética, desde Aristóteles até Paul Taylor, tem enfatizado que a finalidade do propósito de agir e de ser ético tem muito a ver com os resultados dessa vontade. Para Aristóteles, o resultado de qualquer ação moral, quando ela é repetida e se torna um hábito, é a edificação no sujeito agente de uma espécie de segunda natureza, justamente para fazer frente à natureza do caráter herdado geneticamente, se é que se pode falar nesses termos com propriedade. Assim, agindo eticamente, modificamos nosso caráter.
Para Paul Taylor, por outro lado, sem desconsiderar o que foi elaborado por Aristóteles, o sujeito moral agente dotado das virtudes éticas e da inteligência sem a qual elas não podem ocorrer, pode muito bem ampliar o âmbito de sua intervenção no mundo, levando sua própria natureza a fomentar e preservar aquilo que para os demais seres vivos é seu bem próprio. Ao escolhermos abrir o leque dos seres que constituem a comunidade moral sem a qual nossa natureza ética não poderia existir, escolhemos ampliar nossa racionalidade, expandi-la.
Ao longo da história humana, pelo menos da que nos é legada pelos textos escritos, objetos distintos nos foram oferecidos para que o raciocínio inteligente deles se ocupasse radicalmente, a ponto de as conclusões forçarem a uma mudança fundamental do paradigma moral vigente. Assim ocorreu com o embate entre cristãos e romanos, para os quais os “iguais” eram apenas os que estavam submetidos às leis romanas. Finalmente, depois de mais de quatro séculos de embates ferozes entre dois conceitos de igualdade, os romanos admitem que todos são iguais perante aquele que os criou. Num segundo movimento a racionalidade moral precisou de outros 500 anos para admitir que os seres humanos nascidos em outro continente, com uma bagagem genética que lhes dota de uma alta concentração de melanina na pele, também são iguais e não merecem ser escravizados. A razão humana não pode dar-se por satisfeita com padrões estabelecidos. Assim, uma nova ruptura acontece quando, eliminada a escravidão dos afrodescententes, as cabeças pensantes e inconformadas com a imperfeição humana começam a cobrar tratamento sem discriminação sexual. Finalmente, nos dois séculos mais recentes da nossa história, outras vozes se levantaram para nos avisar que nossa moralidade ainda está mal-acostumada, porque mantemos a hipótese de que os outros animais estão aí para serem forçados à reprodução em massa e para serem mortos com o propósito de transformação de suas carcaças em matéria comestível, apesar de morta.
Admitindo que precisamos rever nossos conceitos morais a respeito do estatuto que os animais ocupam em nossa realidade cotidiana, somos levados a admitir que, embora a ética seja uma construção possível apenas para a mente humana, a finalidade ou propósito dela não é atender interesses triviais e de consumo humano. Por isso, para se poder ter firmeza no propósito de não explorar nem matar animais para atender necessidades que podem muito bem ser atendidas com outro tipo de material, é preciso manter clara a noção de que, embora qualquer constructo ético tenha origem inevitavelmente na razão humana, a finalidade da ética não é servir a qualquer propósito humano. Nesse sentido, a ética sempre será antropogênica (tem sua origem na mente humana), mas não precisa ser antropocêntrica (seu propósito não é servir aos interesses humanos).
Por outro lado, voltando à concepção aristotélica, toda prática ética, por ser antropogênica, fará com que a natureza do sujeito moral agente se transforme, a partir do momento em que ele decide seguir um determinado princípio moral e descartar os que até então lhe tinham sido dados como modelo. Não é diferente no caso da ética vegana. Ao se tornar vegana, a pessoa descarta uma série de princípios tradicionais, ou pelo menos os ressignifica, de tal modo que sua percepção do mundo, de si mesma e do propósito para o qual está agindo daquele modo se transforma. Nesse processo a pessoa acaba por abrir-se para a reflexão crítica sobre todas as suas práticas, do comer ao escolher qualquer outro item de consumo.
No entanto, nada disso completaria e aprimoraria o trajeto humano ético, se o agente moral passasse a descuidar de si mesmo em nome de que isso ainda é manter-se nos padrões antropocêntricos. Para cuidar bem dos animais, é preciso não esquecer de que ao nascermos recebemos o primeiro “animal de estimação”, aliás, o único que não nos deixará nunca, até o último segundo de nossa existência aqui nesse planeta: nosso corpo. Os defensores dos direitos animais precisam ter clara a noção de que o primeiro cuidado, o cuidado com a saúde do próprio corpo, é a base para sua estruturação psíquica e moral para que seja capaz de cuidar do corpo de outros seres vivos. A defesa dos direitos animais não se resume ao cuidado com a ingestão de alimentos não derivados deles, mas ela passa por esse cuidado. O que ocorre é que, ao tomar a decisão de tornar-se vegana, a pessoa precisa informar-se sobre as fontes não animais de nutrientes necessários à manutenção do seu organismo. Ao contrário do que costumam falar as más línguas, a dieta vegana não faz mal algum à saúde humana, embora nela não encontremos a vitamina B12. Todas as dietas têm deficiências, quando olhadas em relação a cada indivíduo particular. O que vemos, hoje, é muito mais pessoas onívoras com deficiências nutricionais ou excessos nutricionais, do que veganos com tais deficiências e excessos, fora a deficiência da B12 que pode ser corrigida com suplemento.
A ética animal, a defesa dos direitos animais, e qualquer movimento moral tem origem no ser humano. Sua origem é o humano, seu propósito passa pela defesa da igualdade de direitos para além do especismo, e seu resultado é a transformação do humano que a segue. É inevitável, assim, que, ao cuidarmos dos direitos animais busquemos informações que não buscaríamos, sobre fontes alternativas de nutrientes e sobre a vinculação entre a dieta padrão que estamos abandonando e as doenças que levam à morte milhões de pessoas que a adotaram sem pensar sobre seu fundamento e suas consequências. E, ao obtermos tais informações, passamos a cuidar muito melhor desse “primeiro animal de estimação” que recebemos na vida: nosso próprio organismo. Isso não tem nada a ver com ortorexia. Tem muito mais a ver com abandonar a necrorexia na qual fomos formatados em nossa dieta padronizada.
Mudando nosso princípio ético para buscar um que acolha os animais em nosso respeito pela vida, mudamos nossa mente e nossa percepção do lugar que ocupamos no mundo, entendendo que nosso corpo, esse primeiro animal de estimação que recebemos como o passaporte para ingresso no planeta terra, tem necessidades que precisam ser atendidas, mas nossa mente é capaz de apontar formas substitutivas de dar esse atendimento, deixando em paz na vida o corpo, passaporte de outros seres animados para ingresso nesse mesmo planeta.
Fonte: ANDA – Agência de Notícias de Direitos Animais
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