Hong Kong: encruzilhada do tráfico de animais
Era uma terça-feira à noite, em dezembro de 2017, quando as vans pararam na Alameda Island House, uma plácida rua lateral de conjuntos residenciais e jardins comunitários no bairro suburbano de Tai Po.
Depois dos arranha-céus, a rua passa por uma exuberante floresta até chegar à praia. No outro lado do porto, está o Canal Tolo, rodeado de montes rugosos que chegam até o mar, percorrendo a distância toda até a costa da província chinesa de Guangdong.
Uma lancha esperava no mar. Alguns homens começaram a passar a carga da van para a praia.
Quando os agentes da Alfândega de Hong Kong chegaram, as lanchas fugiram mar adentro. A polícia costeira as perseguiu por duas horas, antes de perdê-las de vista no labirinto de canais, enseadas rochosas e manguezais.
No entanto, a polícia conseguiu recuperar parte do contrabando.
Havia cerca de US$ 1 milhão em telefones celulares, câmeras digitais e tablets. E, em caixas de papelão, encontraram mais de 300 kg de escamas marrons lisas, de uns 5 cm de largura cada uma, que pareciam ter sido arrancadas de algum réptil pré-histórico.
Na verdade, eram escamas de pangolim: um mamífero silvestre do tamanho de um gato, parecendo um tamanduá de armadura. A carne de pangolim é uma iguaria no sul da China, onde o animal está ameaçado de extinção, e suas escamas têm valor como ingrediente da medicina tradicional chinesa.
Nos últimos dez anos, o pangolim vem sendo dizimado em seu habitat no sudeste asiático, e é caçado em níveis alarmantes na África central. À medida que o pangolim desaparece, seu valor sobe. O preço de mercado do carregamento apreendido em Tai Po girava em torno de US$ 300.000.
Na geografia do comércio ilegal de vida silvestre, Hong Kong ocupa uma posição única e essencial. A cidade construiu sua reputação e sua economia como um elo livre entre países e o capital, localizada na porta da frente da China continental – o mercado de vida silvestre mais voraz do mundo.
Ao longo da última década na China em expansão, o apetite de segmentos das classes média e alta por joias, arte, remédios tradicionais (embora muitos deles sem embasamento científico) e comidas exóticas fez crescer tão drasticamente o mercado negro de animais silvestres do mundo todo que várias espécies já foram dizimadas na África, no sudeste da Ásia e em vários outros lugares.
O pangolim é a vítima do momento: quatro de suas oito espécies estão ameaçadas e o comércio internacional de produtos derivados do pangolim está proibido desde 2016.
Pesquisadores da Fundação ADM Capital (ADMCF), organização com base em Hong Kong dedicada a questões ambientais, recentemente analisaram os registros de apreensões dos produtos de animais silvestres do Departamento de Alfândegas.
Em um relatório publicado no mês passado pelo Grupo de Trabalho sobre Tráfico de Animais, um consórcio que inclui a fundação, os pesquisadores descobriram que Hong Kong é responsável por mais apreensões de pangolins do que qualquer outro país.
De 2013 a 2017, Hong Kong apreendeu 43 toneladas de escamas e carcaças de pangolins – representando dezenas de milhares desses animais – em carregamentos provenientes de seis países, principalmente de Camarões e da Nigéria.
O volume interceptado apenas entre 2013 e 2015 equivale a 45% de todos os produtos derivados de pangolim apreendidos no mundo entre 2007 e 2015, segundo os dados mais recentes do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime.
Embora os dados analisados pela fundação não incluam 2018, as apreensões de pangolins quase dobraram entre 2017 e 2018. Em janeiro de 2019, as autoridades de Hong Kong interceptaram o maior carregamento de escamas de pangolim feito até hoje, nove toneladas no total, num cargueiro que partiu da Nigéria para o Vietnã.
Aparentemente, os produtos derivados de pangolim se destinam principalmente à China continental – embora também sejam facilmente encontrados em Hong Kong. Na movimentada Queen’s Road, no distrito de Sheung Wan, a vendedora de uma lojinha cheia de bagas secas de goji, amêndoas e feijão mungo prontamente ofereceu escamas de pangolim a um cliente interessado.
“Vendemos muito disso, e há muito tempo”, disse ela. Um liang – medida chinesa que em Hong Kong equivale a quase 37,5 gramas – foi vendido por 300 dólares de Hong Kong (US$ 38). “É um luxo”, garantiu.
O pangolim é a vítima do momento: quatro de suas oito espécies estão ameaçadas e o comércio internacional de produtos derivados do pangolim está proibido desde 2016.
Embora a loja tome o cuidado de não deixar o produto exposto, a moça informou que bastava um telefonema para que fizessem a entrega em meia hora, e que era fácil atravessar a fronteira com a compra clandestinamente.
“Só temos de moê-las”, completou. E, para não haver flagrante, ela aconselhou que não se compre muito de uma só vez.
Um canal para o comércio ilícito
Nos últimos anos, como aumentaram os alertas em relação às consequências ecológicas do comércio ilegal de animais silvestres e suas ligações com outros tipos de crimes e ameaças à segurança, muitos países aumentaram bastante as iniciativas de combate mediante leis mais rígidas e o aumento de recursos para aplicá-las.
Nos EUA, o tráfico de animais silvestres é agora comumente processado sob os rigorosos estatutos contra o crime organizado. As Nações Unidas descrevem o comércio de animais selvagens como “uma das maiores atividades criminosas transnacionais organizadas”.
Hong Kong se destaca na categoria, acusam aqui os conservacionistas. Enquanto outros países com poder para aplicar a política e as leis no combate ao tráfico de animais silvestres já começaram a fazê-lo, o governo de Hong Kong parece relutante em seguir o exemplo – embora seja relativamente agressivo no combate à corrupção, ao crime organizado e a outros males –, mesmo que uma enorme parte do comércio ilícito passe por seus portos aéreos e navais.
Seu Departamento de Alfândega estima que o contrabando de vida silvestre apreendido nos últimos cinco anos – em matéria de valor, principalmente o pangolim, o marfim de elefante e a madeira – valha mais de US$ 71 milhões, quantia que sugere uma indústria ilícita de 1 bilhão de dólares.
Mas os agentes de fiscalização ambiental rejeitam a ideia de que essas apreensões indicam a existência de empresas criminosas seriamente engajadas. “Não temos evidências muito fortes de que o crime organizado está organizando o comércio ilegal de vida silvestre em Hong Kong”, declarou Tse Chin-wan, subsecretário do Meio Ambiente, numa entrevista em agosto.
Menos de 20% das apreensões de derivados de pangolim que a ADMCF identificou chegaram a resultar em processos criminais. (Segundo o Departamento de Alfândega e Impostos, ainda não foi registrada nenhuma acusação no caso do contrabando com a lancha em dezembro de 2017.) Casos envolvendo marfim – o segmento de maior valor em apreensões ilegais de vida silvestre de Hong Kong, chegando a US$ 26,3 milhões entre 2013 e 2017 – tinham maior probabilidade de ser processados.
Mas raramente foram feitas detenções de pessoas acima dos entregadores, chamados de “traficantes de formigas”, que foram pegos em flagrante no aeroporto e geralmente penalizados com pouco mais de algumas semanas na prisão e pequenas multas.
A relutância oficial em reprimir o contrabando ilegal de vida silvestre explica-se em parte pela longa história de Hong Kong como o principal entreposto mundial de produtos legais de vida silvestre. A cidade é cultural e fisicamente próxima à província de Guangdong, que há séculos é o centro da medicina tradicional chinesa e do artesanato em marfim. Nessa região, o consumo de vida silvestre como alimento também está profundamente arraigado.
Hong Kong também fica perto da província de Fujian, uma região costeira famosa por sua indústria de peças entalhadas, onde muitos produtos ilegais derivados da vida silvestre – chifres de rinoceronte, cristas de calau, jacarandá – são transformados em joias sofisticadas, bibelôs e estatuetas para o mercado chinês.
O fato de ter sido território britânico por um século propiciou a Hong Kong conexões comerciais com as antigas colônias africanas que comercializavam marfim de elefante, chifre de rinoceronte e peles de animais, produtos valorizados por clientes do mundo todo. A cidade foi o centro internacional do comércio de marfim, importando anualmente da África até 700 toneladas de presas em seu apogeu nos anos 70, até a proibição desse negócio em 1989.
Durante muitos anos, Hong Kong foi um dos maiores importadores e exportadores de barbatana de tubarão – ingrediente de uma sopa muito comum na cozinha cantonesa. E, conforme as mais recentes estatísticas disponíveis, o território é líder na importação de peixes e répteis vivos.
Boa parte desse comércio legalizado é visível em bairros como o distrito comercial de Sheung Wan, onde cavalos-marinhos secos e ninhos de pássaros enchem as fachadas de lojas abaixo dos outdoors com a família Kardashian.
Os conservacionistas culpam esse comércio legal por prejudicar os esforços de acabar com o papel de Hong Kong como principal passagem do comércio ilegal global. Por exemplo, nas lojas de frutos do mar de Hong Kong, as barbatanas de tubarões-martelo –espécie em extinção –, uma vez esfoladas e secas para venda, são quase impossíveis de distinguir das de tubarões-azuis legalmente capturados.
Entre as bexigas natatórias secas – ingrediente de outra sopa muito comum – penduradas na mesma vitrine, é igualmente difícil distinguir as espécies capturadas legalmente das bexigas natatórias do totuava, um peixe criticamente ameaçado cuja pesca ilegal no Pacífico ao longo da costa do México também está levando à beira da extinção a vaquita, uma espécie de toninha, comumente pega nas redes de pesca.
“O mundo está mudando”
O enorme crescimento da indústria naval e a conectividade global tornaram eficiente e rápido o comércio dessas espécies. “Eu me pergunto qual será a próxima espécie”, lamentou Timothy C. Bonebrake, biólogo do laboratório forense de conservação da Universidade de Hong Kong, que auxilia a polícia local a fiscalizar o contrabando de animais silvestres.
“Será que poderíamos nos antecipar de alguma forma e acabar com essa atividade antes que as espécies estejam todas criticamente ameaçadas? E, certamente, em Hong Kong aparecem sempre novas espécies.”
Os esforços para patrulhar as importações de vida silvestre em Hong Kong também são dificultados pela enorme escala do comércio num território cuja economia se construiu mediante o fluxo livre de mercadorias.
A maior parte das escamas de pangolim apreendidas chegou em contêineres ao porto de Hong Kong, o quinto maior do mundo, onde seria uma tarefa hercúlea inspecionar mais de uma mera fatia dos cerca de 21 milhões de contêineres que passam por ali anualmente.
O marfim e o chifre de rinoceronte da África chegam, cada vez mais, pelo aeroporto internacional de Hong Kong, o principal do mundo em frete aéreo e o oitavo em número de passageiros.
“Estamos pegando firme na repressão e na ação judicial”, afirmou Tse, o subsecretário do Meio Ambiente. “Mas temos de aceitar a realidade de que Hong Kong é um porto livre e oferece muitas oportunidades para esse tipo de atividade. Todo dia temos dezenas de milhares de carregamentos entrando e saindo da cidade.”
Tse defende que, em face de um desafio tão intimidativo, a melhor opção para reduzir o papel de Hong Kong no comércio ilegal de vida silvestre é diminuir a demanda local por produtos legais. Ele aponta para o consumo de barbatanas de tubarão em Hong Kong, cuja importação caiu 50% entre 2007 e 2017.
“Acredito que a comunidade já começou a aceitar que, se algo não é bom para o meio ambiente, deve ser abandonado gradualmente. O mundo está mudando.”
Hong Kong também já tomou iniciativas no sentido de corrigir seu papel como centro de compras de animais silvestres para consumidores chineses, cujo apetite por produtos da vida selvagem não dá sinais de declínio.
Em 2018, Hong Kong deu um passo significativo e baniu a venda de marfim, seguindo o exemplo da China e dos EUA dois anos antes. Foi um avanço importantíssimo e um reconhecimento de que, embora a cidade seja importante para o comércio de marfim, este deixou de ser importante para a cidade e seus habitantes.
O concorrido bairro de compras de Nathan Road, que até os anos 80 era lotado de lojas de marfim, hoje está tomado principalmente por postos avançados de luxuosas marcas internacionais. “Aqui não há motivo para se dedicar ao marfim”, comenta Tse.
Desde que o comércio internacional foi banido em 1989, permitiu-se aos comerciantes que vendessem seu estoque de marfim anterior à proibição – e, durante vários anos, os conservacionistas suspeitaram que o estoque se esgotava com demasiada lentidão, e então alegaram que os comerciantes o estavam usando para fazer lavagem de marfim de elefantes recém-mortos.
Alguns vendedores de marfim admitiram prontamente que esse tipo de tramoia realmente foi praticado, culpando negociantes inescrupulosos enquanto se colocavam como vítimas inocentes da luta por conter o comércio ilegal.
“Negociantes matreiros e desonestos dificultam nossa vida”, resmungou Leung Shun-cheung que, com sua irmã, Leung Yun-tim, dirige a Hang Cheong Ivory Factory, uma pequena loja na Queen’s Road. “Usavam o marfim contrabandeado para completar sua cota de marfim legal. Era assim que faziam. Mas nós somos inocentes.”
No início de uma noite de agosto, Leung Shun-cheung curvava-se sobre uma bancada na loja, lixando um par de pauzinhos de marfim que havia talhado, enquanto Leung Yun-tim cuidava das contas numa escrivaninha próxima. As lâmpadas fluorescentes iluminavam prateleiras de vidro empoeiradas, carregadas de entalhes de marfim. Não havia clientes.
“Por causa da proibição, não temos muito movimento”, lamentou Leung Yun-tim. “De vez em quando, um ou outro morador vem comprar uma peça pequena.” Ela informa que dentro de três anos, quando a proibição vigorar no país, eles pretendem fechar a loja, que seu pai abriu antes da Segunda Guerra Mundial.
Leung Shun-cheung mostrou um maço de cartas que recebeu do Departamento de Agricultura, Pesca e Conservação, advertindo sobre o prazo de 2021 e oferecendo-lhe treinamento para uma nova carreira. Ele tinha 72 anos e não fizera outra coisa na vida senão trabalhar na loja de marfim.
“O governo está pedindo que eu me aposente aos 75 anos”, diz, com um riso tristonho. “Está muito preocupado comigo.”
Ajeitou os palitinhos num estojo para expor na vitrine: mais duas ofertas aguardando uma demanda que continuava em alta – embora, no momento, fora de alcance.
Por Charles Homans
Fonte: The New York Times