Os limites da ética senciocêntrica
Considerando-se o argumento elaborado pela ética utilitarista na versão de Peter Singer, o critério para definir os seres dignos de consideração moral é o da senciência. Por esse termo entende-se a capacidade de sentir (dor e prazer) e de fruir a saúde e o bem-estar do próprio corpo. Animais dotados do diencéfalo são capazes de tais experiências. Essa é a razão pela qual animais sencientes são defendidos pela ética de Singer (Ver: FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios. Florianópolis: Boiteux, 2003).
O princípio da igualdade moral tem sido uma espécie de rede na qual são recolhidos os seres em relação aos quais agentes morais reconhecem deveres negativos (abstenção de ações maléficas) e positivos (ações benéficas). Mas, segundo a ética tradicional, apenas os seres dotados de racionalidade podem ser considerados sujeitos de direitos morais.
A racionalidade, embora seja um critério aceitável para identificar aqueles que merecem respeito, não permite a inclusão de todos os humanos no âmbito da moralidade, pois nem todos são capazes de raciocinar com lucidez, e muitos capazes disso não são capazes de agir seguindo o raciocínio elaborado com lucidez. Por isso, contrariando a tradição racionalista, a ética utilitarista elege a senciência como parâmetro para classificar os seres sujeitos à moralidade, seja na condição de agentes, seja na de pacientes.
No entanto, ainda que o passo dado pelo utilitarismo preferencial nos tenha permitido ampliar o círculo da moralidade, ao alargar a fronteira antes delimitada pela posse da razão, ele não nos permite sair do esquema moral tradicional. O fato é que, conforme bem o aponta Tom Regan em sua crítica ao utilitarismo, há muitas formas de se fazer o mal: podemos causar dor, podemos atrofiar, podemos boicotar o desenvolvimento de um organismo, podemos explorar, escravizar, e podemos eliminar a vida dele. Boa parte do mal que podemos fazer a um ser vivo não está necessariamente ligada à inflição de dor. Há males que não doem, a exemplo de certas doenças que levam à morte sem apresentar qualquer sintoma, pelo menos até que o diagnóstico seja feito.
Se a dor for o único critério ético, o mal feito sem dor pode ser julgado defensável. Analgesia e anestesia seriam, então, dois recursos que acabariam por legitimar a inflição de danos e morte aos animais e a muitos humanos. Se podemos fazer mal a outros, ainda que eles nem tenham consciência do mal que lhes fazemos, tais ações devem ser incluídas no âmbito da moralidade humana. Isso vale para o tratamento de humanos, animais, plantas e ecossistemas naturais. A sensibilidade à dor e a consciência de seu efeito maléfico não são duas habilidade imprescindíveis aos seres dignos de consideração e respeito. O fato de poderem perdem o bem próprio de sua natureza, sim.
Enfim, a senciência não é o único limite defensável da vulnerabilidade de um ser vivo. Um recém-nascido humano não tem consciência do mal que lhe podemos fazer. Nem por isso é justificável que lhe façamos mal. O mesmo vale para nossa consideração da condição de outros animais, ecossistemas naturais e plantas. Podemos lhes fazer imenso mal sem lhes causar um minuto sequer de dor ou sofrimento. A privação de suas condições naturais de vida é um mal nem sempre dolorido.
Fonte: ANDA – Agência de Notícias de Direitos Animais
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