Princípios da ética vegana abolicionista

Curso de Extensão

Implicações éticas, ambientais e nutricionais do consumo de leite bovino – uma abordagem crítica

Sinopse da Sétima Sessão – O poder galactífero ao redor do mundo

Na sessão anterior, a penúltima deste curso, vimos os números da extração do leite nos cinco continentes e o montante de grãos, cereais e água potável investidos na dieta das vacas para que elas possam secretar dezenas de litros de leite diariamente. Também vimos esses números aplicados ao montante de seres humanos que poderiam ser alimentados e hidratados com essas milhões de toneladas de alimentos e de água ao redor dos cinco continentes. Considerando-se, por outro lado, os dinheiros circulantes na produção, transporte e aquisição dessas milhões de toneladas de grãos e cereais, podemos imaginar o poder econômico e político instalado ao redor do mundo pela galactocracia, e entender por que o leite pôde e pode ser um alimento tão propagandeado pela medicina, a nutrição e as empresas de processamento de alimentos. Nesta última sessão veremos a concepção vegana abolicionista e seus fundamentos éticos. E assim, damos por encerrado o curso.

Princípios da ética vegana abolicionista

Oitava e última sessão – 28/06/13 – Auditório do Centro de Filosofia e Ciências Humanas – UFSC

Dr. phil. Sônia T. Felipe

O FIM DA INOCÊNCIA

Este curso, Implicações éticas, ambientais e nutricionais do consumo de leite bovino – uma abordagem crítica, teve uma sessão de introdução sobre o conceito de ética e sua implicação na redefinição da interação dos humanos com os demais animais, seguida pela segunda sessão tratando da Galactoética, a descrição do sofrimento das vacas exploradas no sistema de extração do leite e dos bezerros enjaulados pela indústria de carne de vitelos, e da pegada ambiental que os excrementos da indústria laticínia representam para o planeta. A terceira sessão, Galactopoese, descreveu os ingredientes naturais e artificiais presentes no leite, a composição do leite de fêmeas de diferentes espécies e introduziu declarações médicas sobre os malefícios do leite para a saúde da maior parte da população humana, especialmente da maioria desistente na produção da lactase após a primeira dentição. A quarta sessão foi dedicada à abordagem da devastação ambiental causada pelo cultivo e destinação de grãos, cereais, forragens e água para a alimentação das vacas usadas para extração do leite e a correspondente quantidade de dejetos, fezes e urina, largados sobre o planeta na maior parte das regiões produtoras de leite. A quinta e a sexta sessões trataram dos males e doenças galactogênicas (forjados pela ingestão do leite e de laticínios), apresentando resultados de pesquisas confirmadoras da associação entre ingestão de leite e doenças agudas e crônicas, inerentes à dieta ocidental, além da pegada hormonal deixada pelo leite bovino no organismo humano. A sétima sessão, Galactocracia, apresentou números que permitem visualizar o poder econômico que a extração do leite bovino agrega ao redor do mundo, especialmente na Europa e nas Américas, e a correspondente devastação alimentar e hídrica nos cinco continentes, em função da dieta imposta às vacas nos países extratores do leite bovino.

Nesta sessão de encerramento do curso, Galactoclastia, apresentamos as reflexões éticas que motivaram a busca dos dados sobre o leite de vaca, um alimento sacralizado no mundo ocidental, só perdendo para o pão na idolatria dos consumidores [Felipe, Galactolatria, p. 219]. Estudando a produção do leite, sua composição atual carregada de hormônios e antibióticos, o sofrimento das vacas e vitelos e conhecendo um pouco dos números assombrosos da excreção e do consumo de cereais e água, bem como o montante do leite que é feito jorrar ao redor do planeta, não é possível manter-se inocente. Assim como o iconoclasta destrói ícones que escondem dos idólatras a verdade, a galactoclastia retira os véus que escondem dos galactômanos a verdade sobre o leite que consomem.

Algumas razões levaram à escrita de Galactolatria: mau deleite. Entre elas, a constatação de que as convicções gastronômicas galactomaníacas professadas pelos comedores humanos ao servirem seu prato animalizado, do desjejum ao jantar, passando pelos lanches e petiscos consumidos ao longo do dia, devem-se à propaganda galactocrática maciça que induz o consumidor humano à idolatria do leite e de seus derivados, mesmo quando sua (in)digestão se faz acompanhar de distúrbios galactogênicos, tais quais: inchaço abdominal, cansaço, mau humor, sonolência, insaciedade, prisão de ventre, diarreias e alergias, alguns dos males dos quais padece o sistema digestório humano na presença de uma matéria bovina que esse não evoluiu para digerir adequadamente.

A deferência recebida na mídia pelo leite e seus derivados não se deve, portanto, à sua leveza digestiva, mas ao modo pelo qual ele é configurado na mente humana, disfarçado em formas aprimoradas pela indústria dos queijos, iogurtes, sorvetes, tortas, biscoitos etc. Os gourmets e confeiteiros, por sua vez, cumprem os cânones sacerdotais da genuína galactolatria, criando formas e composições para induzir os comedores à galactofilia, sem que esses tenham condições de tomar consciência da presença do leite ou de seus derivados no alimento consumido. Para compor um almoço vegano, é possível encontrar nos balcões de autoatendimento alimentos preparados sem carnes. Mas, a menos que o restaurante seja vegano, é praticamente impossível um comedor brasileiro encontrar lanches ou doces preparados sem qualquer derivado do leite. Quando o alimento vem sem lactose, contém caseinato, ou soro de leite, ou leite em pó deslactosado e assim por diante.

A galactolatria na dieta humana de adultos tem raízes não na necessidade real do organismo humano de receber qualquer dos nutrientes presentes no leite da vaca, pois eles estão presentes em alimentos de origem vegetal, mas na necessidade de manutenção do mercado galactonômico, uma economia sustentada pela extração do corpo da vaca desse líquido destinado por sua natureza bovina a nutrir seu bezerro. Esse mercado movimenta centenas de bilhões de dólares anualmente ao redor do planeta. Para isso, mantém vínculos galactocráticos com o poder político e midiático. Do primeiro, saem leis favorecendo a atividade galactífera. A mídia, por sua vez, responde pela manipulação sedutora que leva os consumidores, hipnotizados pela propaganda, a comprarem os novos produtos, formulados com leite e seus derivados, lançados no mercado.

Na tabela abaixo apresentamos valores em Reais, movimentados pelos 20 maiores extratores de leite de vaca ao redor do mundo com a compra de grãos e cereais, forragens e água, destinados à alimentação dessas fêmeas, e o montante pago aos extratores por litro de leite entregue aos processadores de laticínios. Nas cifras abaixo não estão incluídos os valores relativos às instalações de extração e processamento do leite, remédios, antibióticos, hormônios, serviços veterinários, reposição contínua do plantel, perdas por descarte. Também não apresentamos a movimentação financeira nesses 20 maiores extratores de leite, oriunda das vendas no varejo. O total estimado no cálculo do que é pago ao produtor pela matéria prima, o leite entregue aos intermediários que respondem por seu processamento antes da venda aos consumidores, alcança R$340,284 bilhões ao ano. Com a venda de cereais e grãos, o montante alcança R$ 208,424 bilhões ao ano. As forragens movimentam outros R$ 292,765 bilhões ao ano. A água dada às vacas, considerando-se o valor de R$ 0,006 por litro, custam aos extratores a soma de R$ 21,331 bilhões ao ano, enquanto as águas usadas no processamento final chegam a R$ 22,152 trilhões ao ano. Apenas esses cinco itens movimentam nos 20 mais poderosos galactíferos do mundo o total de R$ 23,014 trilhões ao ano. Para se saber em dólares, basta calcular esse valor pelo câmbio do dia.

Países
2009
Leite extraído
toneladas
Grãos e cereais
toneladas
Forragens
toneladas
Água vacas
litros
Água processamento
litros
EUA
85.859.400
42.929.700
171.718.800
729.804.900.000
74.525.959.200.000
Índia
45.140.000
22.570.000
90.280.000
383.690.000.000
39.181.520.000.000
China
35.509.831
17.754.915
71.019.660
301.833.563.000
30.822.533.308.000
Rússia
32.325.800
16.162.900
64.651.600
274.769.300.000
28.058.794.400.000
Brasil
29.112.000
14.556.000
58.224.000
247.452.000.000
25.269.216.000.000
Alemanha
27.938.000
13.969.000
55.876.000
237.473.000.000
24.250.184.000.000
França
23.341.000
11.670.500
46.682.000
198.398.500.000
20.259.988.000.000
N. Zelândia
15.400.000
7.700.000
30.800.000
130.900.000.000
13.367.200.000.000
Inglaterra
13.236.500
6.618.250
26.473.000
112.510.250.000
11.489.282.000.000
Polônia
12.447.200
6.223.600
24.894.400
105.801.200.000
10.804.169.600.000
Itália
12.219.500
6.109.750
24.439.000
103.865.750.000
10.606.526.000.000
Paquistão
11.985.000
5.992.500
23.970.000
101.872.500.000
10.402.980.000.000
Turquia
11.583.300
5.791.650
23.166.600
98.458.050.000
10.054.304.400.000
Holanda
11.468.600
5.734.300
22.937.200
97.483.100.000
9.954.744.800.000
Ucrânia
11.363.500
5.681.750
22.727.000
96.589.750.000
9.863.518.000.000
México
10.549.000
5.274.500
21.098.000
89.666.500.000
9.156.532.000.000
Argentina
10.366.300
5.183.150
20.732.600
88.113.550.000
8.997.948.400.000
Austrália
9.388.000
4.694.000
18.776.000
79.798.000.000
8.148.784.000.000
Canadá
8.213.300
4.106.650
16.426.600
69.813.050.000
7.129.144.400.000
Japão
7.909.490
3.954.745
15.818.980
67.230.665.000
6.865.437.320.000
20 extratores leite mundo
Totais
Toneladas
425.355.721
Toneladas
212.677.861
Toneladas
836.473.442
Litros
3.655.523.629.000
Litros
369.208.765.828.000
 
Valor pago ao ano aos extratores
R$ 340,284 bilhões
Valor gasto com cereais a R$ 0,98 o kg
R$ 208,424 bilhões
Valor gasto com forragem R$ 0,35/ kg
R$292,765
bilhões
Valor gasto água vacas a R$ 0,006 o litro
R$ 21,331
bilhões
Valor gasto água produção laticínios a R$ 0,006 o litro
R$ 22,152
trilhões
 
 
Humanos grãos e cereais a 1kg/dia/1 ano 582.679.070
Humanos
2 kg/dia/1 ano
1.165.358.140
Humanos
3 litros/d/1 ano 3.301.848.063
Humanos/ higiene/ 150 litros/d/1ano
6.743.539.102

[Agradeço ao Dr. Cezar Corrêa (médico veterinário), os valores do custo de cereais e forragens, e a Henrique Schutel a conferência dos cálculos. Curso de extensão oferecido na UFSC entre 03/05/13 e 28/06/13]

Os 20 países mais galactíferos do mundo são também os que mais gastam com propaganda para induzir os consumidores à adicção ao leite e seus derivados: queijos, iogurtes, sorvetes e biscoitos em geral. As democracias e os regimes ditatoriais são mantidos igualmente pelo poder do mercado. A diferença é que na democracia o mercado é regulado pelos interesses privados, e nas ditaduras pelos interesses particulares de um indivíduo que atende ao comando dos interesses econômicos mais viáveis naquele momento em seu país. Nos países que assentam seu poder político no parque galactífero não há separação entre o Estado e a galactocracia, nem entre a galactocracia e a galactolatria. O que é bom para os produtores de leite, também o é para os representantes do povo nas Assembleias e Congressos. E são esses representantes que impões as leis que regem a dieta das crianças nas escolas e as que autorizam a produção e comercialização dos produtos animalizados que compõem a dieta de todos os adultos.

Juntos, empresários da indústria leiteira, políticos e mídia (o tripé da galactocracia), definem o conteúdo do prato de cada cidadão, impondo a dieta animalizada padronizada da qual os sacerdotes atuantes no mundo gastronômico não se afastam, sob pena de excomunhão. Esses poderes decidem por nós o que devemos, ou não, comer. Eles decidem os níveis de pus e de coliformes fecais autorizados nos alimentos lácteos.

Esses poderes (a galactocracia, a política, a gastronomia e a mídia que os serve acriticamente) não estão preocupados com nossa saúde, apenas com a de seus próprios negócios. Do mesmo modo, não estão preocupados com a saúde das vacas e vitelos, a não ser na medida em que as doenças e o sofrimento possam afetar os lucros daqueles negócios. Esses poderes não estão preocupados com a saúde do planeta, atormentado com tanto excremento e urina que o solo, o ar e as águas não evoluíram para digerir ou diluir, nem com o gás metano, repelente do ozônio presente na atmosfera que nos protege dos raios letais do sol.

Esses poderes também não estão aí para solidarizarem-se com os comedores que passam a vida atormentados com os gases e borbulhas, produzidos no interior de seus estômagos e intestinos, agredidos por um alimento estranho para os processos digestórios humanos. Mas esses poderes convencem toda gente de que, se um alimento contém leite bovino ou seus derivados, então ele contém nutrientes essenciais para a saúde e nutrição de humanos.

Quando se toma conhecimento de que um alimento ou um produto qualquer foi aprovado no território estadunidense, imediatamente ele passa a ser encarado como saudável, também no território brasileiro. Desavisados, os brasileiros não sabem que o ministério responsável pela promoção dos alimentos produzidos nas lavouras, lá, o United States Department of Agriculture – USDA, atende às demandas de fazendeiros e pecuaristas, não à saúde dos consumidores.

A saúde, tanto em nosso país quanto em qualquer outro, bem se sabe, é da competência do Ministério da Saúde, não do Ministério da Agricultura, muito menos do Ministério da Educação, o ministério no qual deveriam estar alocadas todas as políticas dietéticas. Sim, comer é algo que precisamos aprender. Somos a única espécie animal que nasce sem saber comer direito.

Essa separação de poderes é muito respeitada. Só esse pequeno detalhe já permite imaginar a fissura do poder que se instala, entre o bloco responsável pelo fomento das plantações e criações de gado, o bloco responsável pelo fomento da saúde humana e o bloco responsável por educar os novos cidadãos para terem uma vida com saúde, serem longevos e poderem completar seu plano racional de vida, seu projeto existencial, sem que esse projeto seja submetido inteiramente aos interesses farmacêuticos. Essas fissuras entre o poder produtor de alimentos, o poder regulador da saúde e o poder educativo é sentida apenas pelo “comedor-paciente”, aquele que adoece por ter idolatrado a dieta galactômana, inadequada para sua longevidade saudável, forjada em padrões propagandeados pelos que querem que os cidadãos comam aquilo que mais dá lucro produzir, não necessariamente o que mais beneficia a saúde humana. E o que mais beneficia a saúde humana não dá o lucro que os galactíferos estão acostumados a movimentar.

Se parássemos de extrair leite de vaca, hoje, ao redor do mundo, somente nos 20 maiores produtores de leite sobrariam grãos, cereais e forragens capazes de alimentar 1, 748 bilhões de humanos. Quer dizer, faltariam tantos humanos para conseguir comer o que é dado às vacas para que elas metabolizem esse alimento e secretem o leite. Com as águas dadas às vacas, caso abolíssemos hoje a extração do leite bovino nesses 20 centros galactíferos do mundo, poderíamos hidratar 3, 301 bilhões de humanos, praticamente a metade da população humana do planeta. E com as águas usadas no processamento dos laticínios, poderíamos garantir a higiene do lar e dos corpos de outros 6,743 bilhões de humanos, uma população equivalente à humana. Não temos falta de comida nem de água no planeta. Temos excesso de vacas devorando e excretando toda a comida e águas cultivadas e tratadas para fins galactíferos.

Mas a fissura entre os poderes, o do agronegócio, que também produz as doenças, o da saúde, que trata das doenças causadas no organismo humano pelo padrão alimentar que o agronegócio impõe ao resto da população, e o da educação que mantém a cegueira das crianças e jovens em relação ao que é ingerido e excretado, é perfeitamente sanada por um terceiro poder, o dos fabricantes de drogas legais, prescritas por profissionais habilitados para minimizar os efeitos da dieta inapropriada à saúde humana. O comedor-paciente, melhor dizer, o comedor passivo, vive esganando-se entre estes blocos poderosos da galactocracia: o da produção bélica de alimentos animalizados, o da produção de fármacos e o da manutenção da cegueira dos consumidores no que respeita a real natureza do que consomem.

Sob estas ditaduras da dieta animalizada, a do agronegócio, a dos fármacos e a da mídia blindada em sua cegueira tanto quanto o estão os consumidores (basta contar o número de jornalistas inscritos neste curso: 1 pessoa), fica difícil defender que estejamos vivendo em um regime dietético democrático.

A liberdade para a busca da própria saúde, sem a qual não é possível buscar a própria felicidade com autonomia e espaço de expressão individual, deveria ser o único poder a exercer influência sobre o comedor. A dieta adotada por um cidadão livre deveria resultar do juízo esclarecido, não pela propaganda galactocrática, mas pela observação das reações digestórias particulares aos alimentos ingeridos, da consciência do bem-estar e disposição para a vida com a abolição dos alimentos galactogênicos, e não de uma educação dietética serviçal aos interesses do poder galactífero e subserviente à indústria farmacêutica.

Em um regime democrático, os comedores deveriam ter autonomia para julgar se os alimentos que são estimulados a ingerir têm um teor saudável ou maléfico. Mas quando somos formatados por regimes dietéticos impositivos, entendemos que se o governo tem autoridade para impor alimentos em nossa dieta, então ele tem obrigação de nos proteger dos males que esses alimentos causam à nossa saúde. Quando não há iniciativa do governo para coibir determinados alimentos, cremos que esses alimentos são saudáveis.

Autoritarismo casa-se muito bem com falta de autonomia, mental e moral. Paternalismo, também. Somos comedores forjados para nos submetermos religiosamente a regimes dietéticos autoritários ou paternalistas. Poucos se dão conta de que seus hábitos alimentares foram impostos pelo agronegócio dos últimos 50 anos, sutil ou ostensivamente, na família, nos restaurantes e nos supermercados. Comemos o que esse sistema impõe. Obviamente, depois de comer certas comidas toda vez que sentimos fome, aprendemos a desejar essas comidas cada vez que a sentimos. Elas estão associadas à ideia de que são nutritivas. O galactômano obediente torna-se sacerdote da galactolatria e servo da galactocracia. Alimentos que contém betacasomorfina viciam. Esse é o caso do leite, queijos ou seus derivados. Os sacerdotes galactólatras são galactômanos.

Achamos que, se um novo alimento pode ser vendido, então ele não contém ingredientes venenosos. Enganamo-nos. Mas a maioria de nós só descobre que viveu comendo o que, se fosse para o equilíbrio do metabolismo do próprio organismo, não deveria ter comido, quando recebe a confirmação de que está com câncer, diabetes, alergias, artrite, hipercolesterolemia, obesidade, esteatose, litíase renal ou biliar, aterosclerose, mal de Parkinson etc.

Mesmo assim, a maioria das pessoas se conforma com tais males, pois acredita que eles sejam de ordem genética, familiar, ou que não há nada que possa ser feito para livrar-se deles, a não ser tomar alguns fármacos. A prescrição de livrar-se desses males tirando do prato os alimentos de origem animal e até alguns de origem vegetal (leite, carnes, farinhas, açúcares, óleos refinados, glúten, por exemplo), não é algo que os pacientes ouçam ao receberem o diagnóstico do que os aflige.

Quando ouvem tal sugestão, ela é feita de modo conciliador, para que o comedor não sofra nenhum impacto. Sem sofrer impacto algum na consciência, de uma crítica à dieta inadequada para a saúde, quem toma coragem para livrar-se dela? Restam, então, os medicamentos que acompanham a dieta do comedor persistente em produzir as doenças das quais padece por insistir em continuar comendo ou bebendo o que não lhe traz saúde alguma. A maior parte dos doentes trata bem suas doenças da abastança alimentar, mas não se cura delas. Para a cura é preciso abolir do prato o que causa desequilíbrio metabólico, é preciso, portanto, uma dieta abolicionista.

Em raros casos, as pessoas ficam sabendo que pode ser prejudicial ingerir determinado alimento. As pessoas pensam que esses alimentos só fazem mal se forem ingeridos em grande quantidade. Pouca gente imagina que um alimento consumido pela maioria da população possa ser nocivo para o bem-estar, a saúde e a longevidade humanas, ainda que consumido em pequena quantidade. Por outro lado, a noção de grande e de pouca quantidade, quando aplicada a alimentos idolatrados, é absolutamente subjetiva. Pouco sorvete, para uma pessoa, pode ser uma casquinha, uma vez por semana. Para outra, pode ser um litro por dia. O mesmo se dá em relação à ingestão de quaisquer outros alimentos nocivos à saúde. Pouca gente sabe que a repetição do estresse digestório gerado pelo alimento sobre os órgãos e tecidos, incluindo o que reveste o interior das artérias, causa baixa imunológica e disfunções metabólicas, ou lesões que levam à formação de ateromas, morte das células do pâncreas que produzem a insulina, cânceres variados, para citar apenas alguns.

Mas, se não tivermos ninguém à nossa volta adoecido pela agressão causada por alimentos inapropriados, pode ocorrer que continuemos a ingeri-los por mais alguns anos, até que nosso organismo canse de se defender deles, ou de algum de seus componentes, e comece a reproduzir células deformadas. Mesmo assim, há poucos médicos que dizem aos pacientes para pararem de comer leite e laticínios, a fim de sustar o crescimento de certos tumores cancerígenos. Se a quimioterapia e a radioterapia estão aí, por que sugerir um tratamento baseado em alimentos para barrar o crescimento de tumores cancerígenos? Terapias abolicionistas não dão lucro à indústria farmacêutica.

Uma das razões pelas quais ainda se silencia sobre a galactokakia, o mal causado pela ingestão de leite ou de seus derivados, é que nem todas as pessoas que o fazem apresentam o quadro de lesões a órgãos e tecidos associado ao consumo dele. Há quem conclua, então, que, se uma pessoa que consome leite e laticínios não apresenta um quadro de câncer, diabetes, aterosclerose, alergia, distúrbios gástricos, litíase, hipercolesterolemia, mal de Parkinson, para citar apenas alguns, então, quando esses ocorrem no organismo de outro indivíduo, não se deve atribuí-los à ingestão do leite. Infelizmente, retardando a consciência dos consumidores e levando milhões deles à sepultura, o mesmo raciocínio e essa conclusão foram adotados por muitos médicos, inclusive por aqueles que posaram de garoto-propaganda em defesa do cigarro e da indústria tabagista, há trinta ou quarenta anos [Felipe, Galactolatria, p. 225].

Há alimentos tão ou mais nocivos à saúde da maioria das pessoas, leite e laticínios, glúten, óleos, açúcares e farinhas refinados, por exemplo, quanto o são o cigarro e o álcool. Para muitas pessoas, os laticínios podem constituir ameaça letal, embora as mortes não ocorram de forma intempestiva, mas após décadas de mazelas que sequelam pouco a pouco os órgãos e tecidos. Para poucas pessoas, o cigarro e o álcool não são letais. Na mente dos galactólatras, analogamente ao que se passa na dos fumantes, “se não faz mal para um, então, não pode ser verdade que faça mal para milhões de outros”.

Cada organismo é único. As respostas metabólicas, embora sigam um padrão em cada espécie e, por vezes, em muitas delas de modo similar, não são exatamente as mesmas em todos os casos individuais, em todas as idades e contextos étnicos. Já se tem como detectar se alguém é “persistente” na produção da enzima lactase. Basta fazer os exames. O mesmo é possível em relação aos reagentes à betacasomorfina. E esse é outro tema, o dos opioides, ligado à ingestão de leite ou laticínios por pessoas incapazes de digerirem eficientemente um de seus componentes: a caseína. Ainda há quem pense que o único problema humano na ingestão do leite seja o da lactose. Engana-se. A gordura, o excesso de cálcio, a caseína e a lactose oneram, cada um a seu modo, a saúde humana.

Há quem busque alimentos processados, chocolates e sorvetes, por exemplo, e leia os rótulos apenas para se certificar de que tal produto não contém lactose. Ainda assim, muitas pessoas continuam a sofrer distúrbios na digestão, ainda que só consumam produtos livres de lactose. Mesmo um alimento que não contenha lactose pode conter derivados da proteína, da caseína, tão difíceis de digerir e absorver, para muitos organismos, quanto o é a lactose, para outros. Enfim, cuidar da lactose e desproteger-se frente aos alimentos que contêm caseinato, ou soro de leite, por exemplo, pode resultar em mau deleite.

Dado que a ingestão do leite puro é um hábito com menos de meio século, pelo menos na quantidade hoje ingerida direta e indiretamente (bebidas lácteas, batidas de frutas), é preciso se perguntar pela necessidade real que essa dependência atende. Obviamente, a praticidade com a qual nos servimos dos alimentos processados pode ser um fator decisivo na explicação do fenômeno da galactomania, a dependência química em relação aos opióides do leite e seus derivados. Antes das embalagens e do sistema de refrigeração, não havia consumo de leite puro a não ser pelos membros da família onde a vaca era explorada, ou por aqueles por onde passava a carrocinha do leiteiro todas as manhãs. Antes da refrigeração, as pessoas viviam sem depender da ingestão de leite. Ele era usado para fazer manteiga e queijos, raramente para beber. Com a refrigeração e o acondicionamento, tornou-se uma bebida. Desnecessária, como o são os refrigerantes. O cérebro cria dependência de alimentos ricos em opióides, quando ingeridos habitualmente. Essa dependência passa a ser interpretada como necessidade nutricional. Não temos, de fato, necessidade alguma de ingerir leite ou consumir laticínios, embora estejamos tão dependentes deles que possamos nos considerar adictos a seus opioides.

O fator que fomenta a pseudonecessidade de ingestão de leite ou laticínios, conforme vimos, é a dependência química real que a betacasomorfina causa, levando nosso cérebro a impor escolhas galactocínicas (escolhas que se impõem sem considerar os malefícios finais que representam para o galactômano), sem que tenhamos autonomia mental para fazer escolhas alimentares genuínas. No leite encontram-se nutrientes do cérebro: glicose, lipídios e cálcio. Junto com os opióides, esses nutrientes formam uma combinação ideal para gerar a galactofilia, precursora da galactomania, sem as quais não seria possível configurar-se a galactolatria. Esses sistemas tecem conceitos, escondendo a galactokakia, o mal do leite que leva sua ingestão por humanos a se transformar num mau deleite.

Muitas pessoas afirmam que não teriam problema algum em abandonar o consumo de carnes, mas sofreriam muito se tivessem que abandonar os laticínios: manteiga, iogurte, creme, queijo, tortas e doces em geral, feitos com esses ingredientes. A clareza sobre os condicionamentos metabólicos cerebrais e mentais parece tornar-se mais ampla a cada dia. Quem a alcança consegue reconhecer que há impulsos alimentares programando-se no cérebro antes mesmo de o indivíduo haver feito qualquer escolha no balcão da confeitaria ou da sorveteria. Esses impulsos gerados pela fome do cérebro conduzem o autômato comedor à confeitaria ou ao restaurante. Para atender a eles, tudo o mais é sacrificado: da saúde à longevidade, sem falar dos casos em que até mesmo as relações pessoais ficam em segundo plano frente aos impulsos comedores gerados pelo cérebro. Atendendo a tais comandos, o sujeito comedor se sente livre, acha que se autodetermina.

Para assegurar ao cérebro açúcar, gordura, cálcio e opióides, não é preciso extrair leite das vacas. Especialmente no caso brasileiro, temos fontes vegetais de gordura nutritivas, saborosas e saudáveis: castanhas, nozes, coco, abacate, amendoim, feijão, lentilhas, semente de girassol, de linhaça e de gergelim, para citar apenas alguns exemplos. Quanto ao açúcar, não se pode falar da necessidade do leite para provimento dele, porque temos frutas numa variedade invejável, comparada aos padrões de países onde as temperaturas gélidas dominam a maior parte do ano, ou onde o ambiente natural desértico responde pela escassez de alimentos. Dizer que receitas preparadas com leites de oleaginosas e sementes, cereais e frutas, não teriam sabor algum, é uma afronta aos milhões de neurônios disponíveis para formarem novas sinapses olfativas e gustativas.

Além da glicose e dos lipídios, o cérebro também precisa de cálcio, sem o qual os neurônios não podem exercer convenientemente suas funções. Mas, ainda uma vez, não é preciso consumir leite de vaca para obter cálcio e, conforme vimos nas sessões 5 e 6, o excesso de cálcio em vez de beneficiar prejudica a saúde humana. Por outro lado, temos fontes vegetais saudáveis para obtenção do cálcio, entre elas as folhas verde-escuro, a aveia, o arroz integral, as oleaginosas, as sementes de gergelim, de abóbora e de girassol, para citar apenas algumas. Quanto à biodisponibilidade do cálcio de origem vegetal, também vimos que o magnésio e a vitamina D, além do cuidado em não ingerir antagonistas (cafeína, sódio, açúcar refinado, proteína em excesso, álcool, alimentos processados), são aliados da absorção do cálcio e sua fixação nos ossos, fortalecidos pela prática de exercícios físicos. Em vez de inundar o organismo com cálcio, a orientação mais sensata é no sentido do cuidado para evitar sua perda.

A dieta tradicional condiciona os comedores a apreciarem poucos sabores, e esses têm origem em derivados de algum tecido ou secreção animal. Dada a plasticidade do cérebro humano, não se pode dizer que seja difícil ou impossível fazer a transição dos sabores animalizados para os vegetalizados. De fato, conforme o diziam os filósofos greco-romanos e os anarquistas do século XIX, nossas convicções morais e políticas estão formatadas sobre nosso padrão alimentar e, por sua vez, o reforçam. Não há nada que deixe a mente humana mais conservadora do que o apego aos únicos sabores gravados na infância. E, convenhamos, a infância dos cidadãos que hoje beiram os cinquenta ou sessenta anos, e a dos que já ultrapassaram essa faixa etária, pode ter sido bem limitada no que respeita à formação dos mapas mentais relacionados à ingestão e apreciação de alimentos.

Receitas veganas estão disponíveis em diferentes sítios na rede internacional de computadores. Basta acessar a internet com o verbete “receitas veganas” e somos remetidos a sítios contendo orientações de como preparar alimentos sem usar qualquer ingrediente de origem animal. Há quem tome a decisão de abolir da dieta alimentos de origem animal e, a partir desse dia, jamais volte a ingerir algo que contenha tais ingredientes. Infelizmente, para os animais, também há quem ponha cada vez mais carne e laticínios em seu prato, como sinônimo de abastança, uma ideia obsoleta, disseminada pelo agronegócio do pós-guerra, na metade do século XX. Por fim, também há quem tire a carne um dia na semana e, com isso, passe a crer que já faz o máximo que pode, por si mesmo, pelo planeta e pelos animais que não serão abatidos para o consumo naquele dia. Por conseguinte, essas pessoas não refletem sobre o sofrimento, a morte, a devastação ambiental e à própria saúde ao consumirem carnes nos demais dias.

Os animais estão à mercê de todo tipo de convicções religiosas humanas, entre elas, a mais poderosa, a dietética, por isso o título deste livro, Galactolatria: mau deleite, apresentando criticamente aos leitores, no Brasil, dados da extração do leite no mundo, capaz de apoiar decisões morais que chegam à raiz, não apenas da devastação ambiental, mas também das mazelas e doenças humanas, associadas com a ingestão indevida de certos alimentos, e do sofrimento das vacas e vitelos. Para uns, deixar de comer carne é um ato claro de defesa da vida dos animais que já receberam a senha na fila do abate. A responsabilidade moral dos galactômanos pelo destino das vacas e vitelos não é menor do que a dos onívoros carnistas e seus hábitos alimentares mantidos com o leite, o sangue e a dor dos animais.

Trata-se, em qualquer caso, de considerar os animais, não importa a espécie ou o sexo, sem qualquer tipo de especismo elitista ou eletivo, quer dizer, com o mesmo respeito com o qual gostaríamos de ser tratados, justamente porque também somos animais, quer dizer, somos seres da mesma natureza, sencientes, capazes de sentir dor e de sofrer, tanto quanto capazes de sentir prazer e fruir a vida.

Caso caíssemos nas malhas de um sistema consumidor de proteína humana, secreção das glândulas mamárias humanas e sêmen humano, gerenciado por seres de uma espécie com a qual não conseguíssemos estabelecer qualquer comunicação para expressar nosso tormento, ainda assim, apesar dessa impossibilidade de comunicação pela linguagem, seu manejo dos nossos corpos seria fonte de tormento e dor para nós. Certamente, não pensaríamos que tais seres teriam apenas o dever de diminuir nossa dor e sofrimento, uma proposta bem-estarista.

Nossa convicção seria de que eles teriam o dever de abolir de sua vida o uso das matérias extraídas de nós, portanto, a ética com a qual julgaríamos seus atos abusivos e violentos contra nossos corpos seria a ética vegana abolicionista. Se avaliarmos a dor e o sofrimento dos animais a partir da perspectiva das vacas, dos vitelos, das galinhas e das porcas, tornamo-nos abolicionistas. Se estivéssemos no lugar desses animais desejaríamos apenas uma coisa: o fim do sistema de exploração no qual nos houvessem confinado. Desprezando a coerência moral, temos mantido o sistema de expropriação e confinamento ao qual condenamos os animais de outras espécies. A única coisa que nos interessa é satisfazer nossa demanda glutona.

Escolhas éticas: um pouco da história

Quatro questões morais e políticas formam a urdidura a partir da qual as decisões éticas são tomadas: a equidade ou justiça no tratamento aos iguais; a não-violência nas interações pessoais; a coerência entre o que se espera do mundo e dos outros humanos e o que se oferece a eles; e a honestidade entre o que se prega e o que se pratica. Conforme visto na primeira sessão deste curso, as ações éticas visam formar uma segunda natureza humana, na qual não têm lugar a injustiça ou discriminação, a destruição ou violência contra os iguais e os não-iguais, a incoerência e a hipocrisia. Aquelas quatro virtudes têm caráter ao mesmo tempo moral e político. Sem elas, a vida não pode ser compartilhada neste planeta com os que se encontram em condições vulneráveis, sejam eles ecossistemas naturais, animais não-humanos e humanos. Na ética prática contemporânea, já não se pode falar apenas dos deveres morais em relação à própria espécie animal. O dever da justiça passa a ser o da equidade, sem discriminar classe, etnia, origem territorial, sexo, idade ou espécie.

Por outro lado, a decisão de um agente moral de configurar a própria existência nos padrões éticos referidos implica liberdade de escolha, entre fazer aos animais algo que representa injustiça, violência, incoerência e hipocrisia, ou fazer-lhes algo que se desdobre em benefício para os afetados por nossa ação.

Os seres humanos têm o privilégio e, portanto, o encargo moral de se moverem nesse espaço da liberdade. Ela tem sido pensada como um pilar da democracia modelada no padrão estadunidense, mas pouco tem sido associada com o pilar da decência moral. Se, para os gregos, díaita significa “modo de vida”, por conseguinte, o comer faz parte da dieta de cada um, e precisa ser finalmente trazido para a esfera da ética, um apelo inadiável da moralidade em nosso tempo.

Crescemos em uma sociedade profundamente discriminadora, antropocêntrica e especista. Há apenas cento e vinte anos foram abolidos o comércio e a escravização legal de afrodescendentes em nosso país. Há menos de um século foi abolida a interdição das mulheres no espaço político. Até hoje, ainda não abolimos o direito humano de assenhorear-se do corpo e da vida de animais de outras espécies, de escraviza-los e de exterminá-los.

Portanto, apesar do progresso alcançado em relação às duas formas mais combatidas de preconceito – o racismo e o machismo –, ainda não abolimos o especismo, a discriminação somatofóbica e violenta contra seres que não nascem na nossa espécie. Lamentavelmente, nossa moralidade ainda não alcançou seu primor, justamente por causa do especismo elitista e eletivo não abolido da nossa mente. Dado que somos também animais, tudo o que julgamos ter o direito de fazer contra os animais das outras espécies, liberamos para ser feito também com certos animais da nossa própria espécie.

Quando se trata da moral que alicerça o padrão alimentar, muito pouco foi pensado, no Brasil, em relação ao direito dos animais de não serem forçados ao nascimento para serem submetidos ao manejo industrial que visa extrair deles o máximo de matéria da qual se pode fazer algum produto para consumo humano: alimentos, roupas, acessórios, cosméticos, remédios, divertimento e lazer.

São estimadas dez milhões de espécies vivas, habitando o planeta Terra. Apenas um milhão delas foi catalogada e menos de 250 mil espécies foram estudadas. Mesmo não conhecendo nada a respeito da forma de expressão na qual a vida aparece em nosso planeta para nove milhões e setecentas e cinquenta mil espécies, os seres humanos contribuem sistematicamente para o desaparecimento delas.

Também a humana é a única espécie animal que se serve de outros seres vivos, mesmo quando há alternativas ou substitutivos para suprir tais necessidades. Por exemplo: come proteína de origem animal, quando há proteína vegetal; bebe leite animal, mesmo que seja possível extrair leite de oleaginosas e sementes; usa animais para tração, quando pode usar energia solar para mover cargas ou produzir força; estima e dedica-se a cães e gatos, quando pode estimar e cuidar de humanos; visita zoológicos e aquários, em vez de ver filmes e documentários dos animais ao vivo em seu ambiente natural; prestigia circos com animais, quando há circos livres de espetáculos cruéis; testa químicos em animais, quando dispõe da ciência molecular, da nanotecnologia e de complexos sistemas matemáticos para construir novos modelos e adaptá-los aos padrões metabólicos celulares humanos, e assim por diante.

Se os hábitos alimentares são arraigados na mente de um mamífero desde a primeira mamada, também o são as primeiras refeições de desmame, quando os pequenos começam a aprender a mastigar a matéria sólida da qual obterão nutrientes para suprir o cérebro ansioso por energia pelo resto de suas vidas. Posta a dentição, continuar a dar leite aos bebês humanos, quando a digestão estranha sua composição, para quê? A espécie humana não é uma exceção natural às leis que regem o crescimento de mamíferos. Uma vez dotados de dentes, os mamíferos passam imediatamente a comer alimentos sólidos disponíveis no ambiente natural que os cerca. Deles obtêm os nutrientes necessários para prosseguir em seu desenvolvimento físico e mental. O que parece natural, no caso humano, resulta de construção social. Vamos, ainda uma vez, aos números!

Para Aristóteles, conforme vimos na primeira sessão, nascemos com uma bagagem genética herdada de nossos progenitores e ancestrais. Através dos hábitos, construímos nossa segunda natureza, nosso caráter. Repetir, repetir e repetir, são as três formas de forjar uma segunda natureza em todos os animais. Nesse sentido, não nascemos galactômanos. Fomos forçados a nos tornar galactômanos pelo hábito. Para isso, uma rede de crenças acerca do leite (galactolatria) precisou ser cultivada e introjetada na criança que fomos, antes mesmo de podermos fazer qualquer juízo sobre o que punham em nossa mamadeira ou em nosso prato.

Disciplina alimentar é como uma espécie de formão com o qual se esculpe o cérebro humano e se in-forma a mente. Todas as manhãs, pelos últimos vinte, trinta, quarenta, setenta anos, dissemos ao cérebro que ele pode sossegar, que sua energia está ali, fornecida nas matérias alimentares processadas a partir da secreção das glândulas mamárias de fêmeas da espécie bovina. Todas as manhãs, o cérebro libera a química necessária para avisar aos órgãos do nosso sistema digestório sobre o tipo de matéria recebida pelo estômago, a fim de que eles iniciem o processo de desmanche sem o qual os nutrientes dessa matéria não podem ser aproveitados pelo organismo. Repetição e mais repetição acabam por formatar na mente a ideia de que essas fontes de nutrientes não apenas são fundamentais, mas também desejáveis, pois com elas vemos saciada a fome e apaziguada a ansiedade que a desnutrição cerebral causa.

Se, conforme afirma Aristóteles, o hábito cria uma segunda natureza, após dez anos de vida teremos feito nosso organismo passar 18.250 vezes pelo trabalho de digerir, fazer circular, assimilar, fixar, usar e excretar resíduos do leite bovino. Impossível não se tornar um galactômano depois de tanto exercício. Nenhum outro mamífero força seus filhos à ingestão de leite de espécie estranha. Nenhum outro mamífero cria em seus filhos a dependência química que os humanos criam aos ingredientes do leite de outra fêmea. Algumas fêmeas adotam filhotes de outra espécie e os amamentam. Entretanto, uma vez findo o período da amamentação, não há qualquer traço de dependência química ao leite delas.

Do que foi dito acima, que a repetição cria o hábito e a dependência química, não se pode deduzir que seja então “natural”, após anos de rígida disciplina alimentar, ingerir leite de vaca. O organismo humano continua a arcar com o ônus da digestão de um alimento inapropriado para sua saúde. Acostumar-se a algo que não presta não exerce sobre isso o poder de mudar sua natureza e torná-lo bom. Se esse fosse o caso, o álcool passaria a ser benéfico para os que sofrem de cirrose, pois se acostumaram a ingeri-lo por décadas, até que os tecidos do fígado não aguentam mais terem de renovar-se lutando contra algo que os destrói. O mesmo pode ser pensado em relação à gordura saturada, ao açúcar, aos refrigerantes, cigarros e drogas em geral. Quando a pessoa pensa que está muito bem acostumada, vem o resultado do exame dizendo que os tecidos e órgãos agonizam. Tais costumes são suicidas.

Entretanto, se algo é incorporado por força do hábito, então também pode ser desincorporado por força de novos hábitos. Pode não ser fácil, assim como não o é, para um dependente do álcool, do tabaco, das gorduras animais, dos açúcares e farinhas refinadas, livrar o cérebro do condicionamento que o impulsiona em direção aos alimentos que contêm lactose e caseína.

Contudo, há uma diferença qualitativa entre o difícil e o impossível. Essa diferença pode ser marcada por uma decisão moral vegana abolicionista, uma chance de redesenhar a própria biografia, renovar a mente, livrar o corpo do ônus que a dieta padrão representa para ele. Algum dever temos em relação aos animais. E nosso primeiro animal de estimação, um animal que recebemos no dia em que nascemos, é nosso corpo. Tratá-lo bem implica em escolher para nutri-lo apenas os alimentos que não o atormentem, que não encurtem sua longevidade, que não o impeçam de exercer suas funções, de modo a que possamos, habitando-o, realizar nossos projetos de vida.

Por isso, para atender com equidade, não violência, coerência e autenticidade os interesses do próprio corpo, é preciso dar finalmente um pouco de atenção a ele. Não adianta ficar malhando na academia e continuar a ingerir o que o agride ou intoxica. Isso só gera mais radicais livres.

No caso da dependência química aos produtos lácteos, da galactomania, não se trata apenas de um condicionamento metabólico. Trata-se ainda mais de um condicionamento moral. Uma coisa é tornar-se dependente metabólico de chocolates e sorvetes lácteos, por ambos conterem lactose e gordura, julgando que consumir lactose e gordura láctea seja salutar. Outra, é professar que essa seja a “única” forma saudável de conduzir a dieta humana. Mais grave ainda, do ponto de vista da ética animalista, é professar que comer derivados de animais seja um “direito humano fundamental”, fundado numa espécie de autoridade divina, sem querer ver que tais dogmas apenas servem aos propósitos galactocráticos. Por mais que enfeitemos o prato, tal dieta continua a ser baseada em secreções animais. De divina, ela não tem nada. É uma dieta animalizada.

Quando falamos de alimentação, lidamos com formas mentais rígidas, inculcadas na mente da criança antes mesmo de ela pronunciar a primeira palavra de modo articulado. O primeiro leite que o recém-nascido recebe, em qualquer espécie, é o da mãe. Na espécie humana eurodescendente, tentando prorrogar a cena da amamentação, que deveria cessar com a conclusão da primeira dentição, ainda que o afeto da progenitora por seu bebê não cesse aí, as mães e os cuidadores continuam a oferecer leite aos pequenos. Contrariando a natureza humana mamífera, atestam, com tal gesto, que seus bebês são incapazes de obter glicose, lipídios, proteínas e cálcio, a não ser que sejam forçados a ingerir o leite que a fêmea de outra espécie produz. No entanto, a vaca o produz para garantir esses mesmos nutrientes numa composição específica para o desenvolvimento do organismo bovino, não para os da espécie humana.

Uma das vantagens da dieta vegana é, sem sombra de dúvida, de ordem moral. A partir do momento em que não se usa mais alimentos de origem animal, está-se livre do peso que representa pensar que aquele pedaço de comida no seu prato resulta da morte ou da agonia de um ser vivo dotado de capacidade de sentir e sofrer, uma capacidade não menos fundamental para ele, do que nossa própria sensibilidade e consciência são para nós e para nossa vida. Essa libertação moral não tem preço, porque ela beneficia não o agente, mas o paciente, afetado positivamente por ela. Uma decisão moral abolicionista vegana reverte o benefício para todos os animais que a partir daquele momento deixam de ser mortos ou explorados para encher o prato do sujeito que decidiu abolir de sua vida a dieta animalizada.

No dia 7 de julho de 2012, renomados neurocientistas da cognição e da computação, neurofarmacologistas, neurofisiologistas e neuroanatomistas reuniram-se na Universidade de Cambridge (Inglaterra) para rever as teses científicas sobre a experiência da consciência e do comportamento semelhante entre animais humanos e não-humanos. Desse congresso resultou A Declaração de Cambridge sobre a Consciência, através da qual os cientistas reconhecem publicamente que todos os animais, dos mamíferos às aves e outras espécies, são conscientes, têm emoções e afetos, diferindo dos humanos somente na forma em que tudo isso se expressa. Redigiram e assinaram a Declaração de Cambridge sobre a Consciência Humana e não-Humana: Philip Low, Jaak Panksepp, Diana Reiss, David Edelman, Bruno Van Swinderen e Christof Koch. A Declaração foi proclamada no Francis Crick Memorial Conference on Consciousness in Human and non-Human Animals, na Churchill College, University of Cambridge, por Low, Edelman and Koch. A declaração foi assinada pelos participantes do congresso na presença de Stephen Hawking, no Balfour Room do Hotel du Vin [Cf. Felipe, Galactolatria, p. 237]. Portanto, o que fazemos aos animais não difere do que fazemos aos humanos. A consciência e a senciência não são atributos específicos nem exclusivos dos humanos. Elas são o que caracteriza todos os animais.

Além do benefício moral que a decisão abolicionista vegana traz para o sujeito que a toma, há um benefício de ordem material, embora praticamente impossível de ser visualizado pelo comedor que retira do prato os alimentos de origem animal: a economia de alimentos vegetais, ricos em proteínas e calorias, dados aos animais usados para extração de leite ou para o corte de carne, da água potável que hidrata as vacas e higieniza as instalações do processamento de laticínios. Quem se abstém de ingerir produtos de origem animal economiza as toneladas equivalentes de excrementos que não serão mais excretados nem depositados sobre o planeta. Enfim, autonomia moral e libertação econômica do planeta podem ser cultivadas na mesma decisão.

Um terceiro benefício resulta da dieta vegana e da abolição de produtos lácteos. O sujeito moral que decide abster-se de ingerir produtos derivados do leite liberta seu próprio organismo do ônus da digestão desses alimentos e das sequelas sobre a saúde de seus órgãos, que a má digestão ou a indigestão repetidas do açúcar, gordura, proteínas e cálcio presentes no leite representam para eles.

Um quarto benefício, também difícil de ser visto “a olho nu”, resulta da abolição dos produtos animalizados da dieta humana: a herança cultural ou moral que podemos deixar como legado para as gerações futuras. Esse benefício nos engrandece justamente por sermos filhos da revolução verde, do pós-guerra, que deu início ao agronegócio, estabelecido hegemonicamente ao redor do planeta. Como filhos obedientes dessa revolução, adotamos a dieta animalizada que ela impôs ao mundo ocidental desde os idos dos anos cinquenta do século XX. E, como adultos graduados e pós-graduados nas melhores universidades do país e do exterior, por mais de quarenta ou cinquenta anos, jamais nos ocupamos do assunto “alimentação saudável” desanimalizada. Engolimos o dogma da ditadura alimentar animalizada. Somos coautores do extermínio de trilhões de animais a cada ano para a produção de carnes e da escravização sexual e abate de centenas de milhões de vacas usadas para extração do leite. Embora nunca tenhamos lido o contrato que nos confinou nessa dieta, somos cúmplices desse sistema, no mínimo, por omissão, ou melhor, por adesão passiva. Da perspectiva dos animais atormentados, isso não diminui em nada nossa responsabilidade pelo seu sofrimento e morte.

Deixamos que as engenharias de todo tipo, da química à alimentar, cuidassem de formatar alimentos compostos artificialmente para nós. Por comodidade física, inércia intelectual e conformismo, somos os filhos bem comportados de uma geração que sofreu, sem se rebelar, a revolução tecnológica na dieta animal e humana. Achamos que, se os cientistas inventam uma forma de aditivar um alimento, isso deve ser muito benéfico para nossa saúde, porque foram os cientistas quem a inventaram. Nessa hora, esquecemos que eles também inventaram de usar o glifosato nos pesticidas usados em larga escala para pulverizar as plantações de grãos e cereais transgênicos, dados às vacas usadas para extração de leite.

Também foram os cientistas quem inventaram de recombinar o hormônio do crescimento bovino na bactéria E. coli e injetá-lo outra vez nas vacas, para disparar sua produção láctea. Esse e os demais hormônios bovinos naturais escorrem do leite diretamente para dentro do nosso organismo. Ali desencadeiam reações danosas que esses cientistas cautelosamente escondem do consumidor para não causar prejuízos às empresas que produzem o hormônio, nem às que vendem leite e laticínios. Mas, quanto aos danos que os hormônios de crescimento bovino causam às células do organismo humano, o que dizem esses mesmos cientistas?

Somos a geração obediente que come sem resmungar o que lhe é colocado no prato, nas caixinhas, saquinhos, latinhas, garrafas e pacotes revestidos internamente com alumínio. E os que já passaram dos cinquenta são também a primeira geração acoplada, em suas cinco ou sete refeições diárias, aos tetos das vacas, a primeira geração de galactômanos genuínos, aliciada, sem opor resistência, pela propaganda galactólatra.

Ainda que sejamos galactófilos herdeiros dessa geração, nossos hábitos alimentares não são de ordem natural, nem divina. Se a galactofilia foi socialmente construída, então ela também pode ser socialmente abolida. Se a repetição forja uma segunda natureza, isso não quer dizer que ela seja determinista. Se, nem mesmo a primeira natureza, a bagagem genética, determina coisa alguma em nossa existência, como é que se pode pensar que a segunda natureza, a de ordem religiosa, seja determinante de nossa essência humana?

Não somos, por natureza, galactômanos, embora sejamos galactófagos por um curto período de nossa vida, ao nos alimentarmos exclusivamente do leite materno. Tudo o mais é construção social em nossa mente. Por isso, para assumirmos nossa autonomia moral, sem a qual não é possível defender que somos agentes morais plenos, é preciso assumir que, se, por um lado, não tivemos liberdade ao comermos por décadas o que nos foi imposto, temos, por outro lado, liberdade para abolir do nosso prato tudo o que representa confinamento, sofrimento, exploração e morte dos animais. Pode não ser fácil, mas é possível e saboroso. Essa pode ser uma decisão deliciosa genuína. Abolicionista.

Este é o legado moral que somos convidados a deixar para as gerações seguintes: libertar as vacas e os vitelos do sofrimento ao qual estão condenados no mercado de extração do leite, libertar o planeta dos excrementos produzidos por eles, espalhados pelos rios, lençóis freáticos, lagoas e oceanos, libertar a atmosfera do gás metano produzido pelo sistema digestório bovino não evoluído para a digestão de grãos e cereais, libertar o planeta dos excrementos e urina das vacas, e libertar o organismo humano da carga indigesta que o leite bovino representa para ele.

Especismo eletivo

Há especistas eletivos, pessoas que protegem certos animais, mas continuam comendo carne de animais, bebendo leite de animais, usando acessórios feitos com matéria animal e produtos de higiene e beleza feitos com derivados de animais e testados neles. As pessoas que sustentam atitudes contraditórias como essas, restringem-se à leitura da parte pós-diluviana do Gênesis. A verdade é que estamos mais próximos do Apocalipse do que do início dos tempos. As verdades genesianas não nos servem de guia para interagir com os outros animais na era apocalíptica. A maioria das pessoas defensoras dos animais, que come animais e bebe leite, continua a dizer que “Deus ordenou que os humanos comessem carne”. Essa ordem dada na escassez pós-diluviana, no mesmo texto bíblico, foi precedida de outra, antediluviana, relativa ao tempo da fartura, no qual a autoridade divina determinara que todos os animais fossem veganos, inclusive os chamados carnívoros, os felinos, por exemplo.

Não deixa de ser intrigante ver uma pessoa agarrada a um bichinho de estimação, dizendo-se protetora dos animais e, ao mesmo tempo, passando a mão na faca, cortando pedaços de animais e levando-os à boca, mastigando-os com volúpia e engolindo-os. Protegendo-os, de quem? Do comedor ao lado, que teria feito o mesmo com a mesma indiferença, mas sem nenhuma incoerência moral, dado que não se diz protetor dos animais?

Em primeiro lugar, não se pode dizer que se é protetor dos animais, quer dizer, não se pode usar essa expressão genérica, se se come animais de várias espécies. Essa é uma contradição quase obscena. Seria o mesmo um pedófilo se declarar defensor dos direitos das crianças e adolescentes, enquanto seleciona algumas delas para praticar sexo. Para alguém sensível ao sofrimento dos animais, não importa a aparência deles. Todos os animais sencientes são iguais em sua vulnerabilidade ao sofrimento, aliás, algo que constitui nossa identidade com eles, nossa animalidade. Por isso, se a pessoa tem realmente compaixão pelos animais, ou defende direitos para eles, ela não os come.

A dor do porco, do frango, do boi e do cão tem o mesmo impacto dilacerante sobre a qualidade de suas vidas, quanto o tem a dor sobre a qualidade da nossa própria vida. Então, se alguém se condói na dor animal, precisa assumir uma atitude coerente, tanto do ponto de vista emocional, quanto moral. Não dá para sair classificando a dor de outros animais de modo hierárquico. Não dá para escolher um ou dois animais que não sofrerão com nosso impulso glutão, cães e gatos, ou, cavalos e coelhos, por exemplo, como se os outros, as porcas, as galinhas, as vacas e as ovelhas não merecessem consideração. No Brasil, cães, gatos, cavalos e coelhos não são abatidos para consumo interno, mas os demais o são.

O especista eletivo classifica o valor da dor e do sofrimento animal a partir da espécie à qual o animal pertence. Há cem anos, os eurodescendentes também julgavam que a dor dos negros valia menos do que a dos brancos. Há quinhentos anos, os eurodescendentes também julgavam que a dor dos índios valia menos do que a deles. Há milênios, os ricos julgam que a dor dos pobres vale menos do que a deles. Fomos acostumados a fazer isso com a dor humana, então, formamos a convicção de que temos o direito de fazer o mesmo com a dor, o sofrimento e a vida de outros animais. Quando elegemos um tipo de animal para estimar, passamos a considerar que sua dor ou prazer são dignos de respeito. Mas ao ignorarmos que a dor é uma experiência igualmente má para todo ser senciente, não importando sua aparência externa, espécie, sexo, idade ou etnia, o que fazemos é reproduzir um preconceito especista eletivo: proteger uma espécie para nos sentirmos com mais direito de maltratar as outras.

A dor é uma experiência maléfica, pois o sujeito que a sofre fica impedido de fruir a vida, os movimentos, as ações que constituem sua expressão animal específica. A dor dilacera a mente, porque a bloqueia, imobiliza e afasta, inclusive, dos meios de subsistência, monopoliza o cérebro a tal ponto que o sujeito não pode dizer que sente dor, ele se transforma apenas em um ser dorente.

Merenda escolar vegana

No dia 19 de julho de 2012, o Comitê de Médicos por uma Medicina Responsável solicitou que o Departamento de Agricultura estadunidense “coloque os interesses das crianças acima dos interesses da indústria de laticínios”. Na petição, os mais de 6.000 médicos congregados nesse comitê pedem ao Governo de Barak Obama que elimine o leite animal do cardápio escolar e o substitua pelo de soja e de outras fontes vegetais e por suco de frutas. Na mesma petição, os médicos pedem ao Departamento de Agricultura estadunidense que faça um relatório recomendando ao Congresso uma emenda à Lei Nacional de Merendas Escolares, para a exclusão da passagem do texto do Programa Nacional de Merenda Escolar na qual se afirma que o leite de vaca é um alimento necessário à saúde humana [Cf. Felipe, Galactolatria, p. 252].

Os malefícios de um sistema digestório cheio de gases não são apenas os que se manifestam como barriga inchada. A indisposição mental afeta as habilidades cognitivas, pois com o abdômen a ocupar a mente, não há criança nem adulto capaz de aprender qualquer coisa. É preciso investigar se o baixo rendimento escolar de boa parte das crianças brasileiras não está associado à ingestão de leite bovino e de seus derivados, além de outros alimentos processados, contendo aspartame, glutamato monossódico e gordura vegetal hidrogenada, sabidamente matadores dos neurônios da área cognitiva [Cf. Felipe, Galactolatria, p. 252].

Há quem possa questionar essa hipótese com a afirmação de que as crianças com alto rendimento escolar também fazem parte da sociedade galactólatra e galactômana. É verdade. Há quem seja persistente na produção da lactase, mesmo após cessar o período de lactação. Pode ser que muitas das crianças que nunca sentem esses sintomas desconfortáveis enquadrem-se nessas exceções. Em não se tendo certeza da disposição do organismo de cada criança brasileira em continuar a produzir lactase, o mais sensato seria que o Ministério da Educação, em parceria com o Ministério da Saúde, determinasse a investigação de todas as crianças matriculadas no ensino fundamental. Com base nesse resultado, a política da merenda escolar poderia ser reformulada, atendendo às necessidades étnicas das crianças. Afinal, impedimentos digestórios também constituem “necessidades especiais”. Admitimos isso com relação à insulina, à lactose e ao glúten, por que não em relação a outros elementos que constituem o leite e estão em todos os alimentos processados com ele?

Para além da saúde das crianças, há outros argumentos que sustentam a proposta de abolição da ingestão de leite e laticínios pelas crianças, jovens e adultos: o sistema de extração de leite implica em exploração dolorosa das vacas e, portanto, em causar-lhes sofrimento pelas repetidas gestações seguidas de perda dos vitelos e pelo manejo alimentar que altera violentamente seu metabolismo.

O sistema escolar deve primar por passar às gerações futuras informações relevantes para que o jovem faça escolhas alimentares não violentas em relação a si mesmo, aos animais e aos ecossistemas naturais. Hoje, a moralidade humana expressa-se fundamentalmente através das decisões alimentares. Podemos adotar o provérbio: “diga-me o que comes e dir-te-ei quem és”. Em não havendo informações acessíveis não se pode falar de escolhas esclarecidas no caso de adultos, muito menos no de crianças.

Cada um toma decisões morais de acordo com certos padrões internalizados, ou abre mão desses padrões e toma as decisões justamente no sentido de redefini-los. A leitura do livro Galactolatria: mau deleite pode contribuir para a libertação de muitas pessoas do jugo que a ingestão de derivados animais representa para a sua consciência de consumidor. Somente a liberdade de expressão e de acesso às informações pode garantir que não percamos a autonomia moral da qual nossa espécie tanto se orgulha. Que a partir dessa autonomia possamos incluir todos os animais não-humanos em nossas considerações éticas, sem discriminar em relação à sua espécie, sexo, utilidade ou aparência exterior.

Para tomar decisões libertárias desse porte é preciso deixar de ser ingênuo e admitir que a dieta alimentar imposta nos últimos cinquenta anos é danosa para os animais, para o planeta e para a própria saúde, tanto física quanto moral. É preciso sair da zona da inocência na qual estão os bebês humanos, aos quais é dado leite de vaca. Somente eles estão inocentes nesse comer. E até mesmo eles terão que perder a inocência um dia, quando precisarem entender o quanto uma dieta baseada em alimentos animalizados devasta o planeta, a própria saúde e o bem dos animais. Para isso, é urgente mudar a pergunta tradicional, tão cara aos ambientalistas: “qual planeta queremos deixar de herança para nossos filhos?”, para a pergunta abolicionista vegana, mais ética: “que tipo de filhos estamos forjando para deixar de herança ao planeta?” Conforme o dito de J. J. Audubon, nascido em 1800, “O autêntico conservacionista é alguém que sabe que o mundo não é uma herança deixada pelos pais a seus filhos, mas um empréstimo antecipado tomado deles, pelos pais.”

Para citar:

FELIPE, Sônia T. Princípios da ética vegana abolicionista. Palestra apresentada no Curso de Extensão Implicações éticas, ambientais e nutricionais do consumo de leite bovino – uma abordagem crítica. Florianópolis: UFSC, Auditório do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 28/06/13, das 18:45 às 21:30.

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