Protetor não é acumulador: cuidado com essa construção especista!

Protetor não é acumulador: cuidado com essa construção especista!

Na última edição do programa global Profissão Repórter, mais uma vez, foi abordada a síndrome do hoarding, ou do acumulador. É um tema chamativo, que desperta no público aquela agradável sensação de descobrir-se normal e bem adaptado aos padrões vigentes, pela simples contemplação das esquisitices alheias. E não poderia faltar, é claro, o maluco mor, o acumulador/colecionador de animais, o transgressor insano que escolhe enxergar o outro nas espécies não humanas.

Na mesma proporção em que cresce a conscientização sobre a causa animal, está crescendo a associação da figura do protetor que mantém abrigos com essa patologia. Não questiono a existência de acumuladores/colecionadores de animais – muito pelo contrário – porém creio que é preciso mais cuidado e conhecimento do contexto da questão animal ao analisar se uma determinada conduta condiz com hoarding.

Pelo que percebo sempre que ouço profissionais da saúde se pronunciando sobre o tema, o hoarding de animais é estudado sobre os mesmos pressupostos do hoarding de objetos, desconsiderando que se tratam de seres sencientes, Na minha opinião, o estudo do hoarding de animais deveria obrigatoriamente levar em consideração questões afetivas entre o suposto colecionador e os “colecionados”. E essa postura, essa cegueira seletiva que iguala animais e lixo na mesma abordagem, emana de nosso viés especista e antropocêntrico, do qual ninguém escapa totalmente.

A maioria das pessoas, terapeutas ou leigos, crê que a síndrome do acumulador de animais começa a caracterizar-se quando alguém resgata ou adota mais animais do que pode abrigar em boas condições. É uma posição que desconsidera completamente o contexto do abandono, a falta de políticas públicas, e a existência de níveis diferenciados de empatia entre humanos e outros animais. Presta serviço à cultura hegemônica, que é de atribuir ao sofrimento de animais não humanos um valor inferior ao humano. E nesse passo,  não demorará para que veganos e ativistas da causa também sejam agraciados com uma síndrome toda sua, que transforme sua postura moral em obsessão.

Quase ninguém decide em algum momento declarar-se “protetor”. O que há é que indivíduos que demonstram empatia por animais não humanos acabam eventualmente identificados como protetores de animais pelos outros, pela sociedade, que lhes atribui esse papel num processo análogo ao de “interpelação” descrito  por Althusser. Essa qualificação imposta é fruto de discriminação, da necessidade de isolar uma atitude considerada fora do padrão – a empatia para com animais. Basta ver que não existe termo equivalente quando se trata de quem socorre outros indivíduos em situação de abuso, como crianças ou idosos, pois a empatia para com humanos é considerada a regra. Para com animais, exceção.

E a partir dessa interpelação, passam essas pessoas também a ser permanentemente induzidas, mesmo coagidas, a tomar mais animais sob sua proteção. Animais doentes ou ninhadas são abandonados em suas portas, parentes, amigos e até desconhecidos as procuram avisando que se não tomarem seus animais sob seus cuidados estes serão mortos ou abandonados nas ruas – e serão de fato, não duvide – e uma simples ida ao trabalho ou ao super se transforma num exercício de autocontrole ao expor-se continuamente a animais esquálidos, doentes ou atropelados na ruas.

Pois para esses animais não há nenhuma outra alternativa. Não há políticas públicas, não há abrigo municipal, não há ongs sempre abertas para encaminhá-los, não há nada do que as pessoas alheias à questão animal imaginam, uma mítica “sociedade protetora dos animais”. O cotidiano de um protetor se transforma numa permanente escolha de sofia, entre socorrer mais um sob pena de prejudicar todos que já abriga, ou simplesmente virar para o outro lado e ignorar um pedido desesperado de ajuda. Portanto soa absurda, se não cruel, a demanda para que “não pegue mais nenhum”, entoada como um mantra por aqueles que se dispõe a ajudar o “acumulador” a se “curar”, mas que não se dispõem em nenhum momento a ajudar os animais em situação emergencial. Essa sim, a única solução verdadeira.

Minha proposta é que os estudos sobre hoarding no caso específico de animais desloquem a ênfase que depositam sobre o número de animais que uma pessoa detém sob sua guarda para a forma como essa pessoa se relaciona – ou deixa de se relacionar – com eles, adicionando assim o elemento que o viés especista não lhes permite enxergar: animais não são a mesma coisa que entulho. O estudo deveria se ocupar de determinar se o possível acumulador percebe os animais como sujeitos das próprias vidas ou como objetos, se ela os percebe como seres sencientes, ou matéria inanimada.

Dessa forma, alguém que assuma a guarda de  dezenas de animais, mas o faça tendo em mente a individualidade e a capacidade de senciência de cada um, e movido por empatia, não pode ser chamado de “colecionador”. E ao limite, por esse novo parâmetro, seria acumulador aquele que compra um animal – atribuindo um valor pecuniário a uma vida senciente – e o escolhe por critérios de cor e tamanho, exatamente como se escolhe um objeto de decoração.Essa pessoa comete a insanidade de colecionar seres vivos como se fossem bibelôs.

A própria denominação “colecionador de animais” é uma metáfora. Ela transfere o sentido de uma palavra – “colecionador” -, que se refere a alguém que acumula COISAS segundo algum tipo de categorização (bibelòs de pinguins ou selos) – para uma outra ação que subverte o sentido da expressão inicial, pois consiste em coletar e reter seres sencientes, que não deveriam ser simplesmente acumulados pois são portadores de interesses próprios que emanam de sua capacidade de saber-se no mundo e fazer suas próprias escolhas. Portanto, a expressão “colecionador de animais” em si é denunciadora da perversidade – e propomos utilizar esse conceito de perverso no sentido psicanalitico, descolado de consideração moral –  que caracteriza essa desordem: tratar animais como se fossem coisas.

Mas não é à toa que o conceito de “acumulador/protetor” vem sendo cada vez mais utilizado pelos setores administrativos encarregados das míseras ações públicas em prol da questão animal. Para o poder público, o abrigo superlotado de animais é a materialização, é a maior denúncia de sua péssima atuação, é a prova de que nada faz de efetivo. Aquelas mesmas dezenas ou centenas de animais, se não estivessem ali, estariam abandonados e sofrendo terrivelmente ainda de forma pior, vagando pelas ruas, porém invisíveis, porque espalhados. Concentrados num mesmo local, tornam-se uma realidade inconveniente. O que sobra é tentar criminalizar (sob a acusação de perturbar a ordem e a saúde públicas) e/ou desqualificar, como mentalmente insano, o protetor, que seria o portador de uma patologia psíquica.

Creio que  mesmo muitos ativistas da proteção deixam-se iludir pela manipulação política desse conceito de “colecionar”, atingidos emocionalmente pela situação aguda, insustentável que a maioria dos abrigos de animais independentes experimenta, e por um natural sentimento de revolta diante do sofrimento dos animais envolvidos. Equivocadamente, culpam a janela por mostrar a paisagem e passam a responsabilizar não a falta de políticas públicas pela existência desses locais, e sim os protetores que os mantém, e que impossibilitados de evitar essa situação de penúria e caos, caem vítimas de circunstâncias extremamente adversas.

Perguntas essenciais – essenciais para quem percebe os animais como pessoas e não como lixo –  nunca são respondidas quando o poder público se ocupa de “tratar” os colecionadores de animais. O que será feito dos bichos? Irão de um abrigo para outro, do privado para o público? Supondo que exista um abrigo público, ali as condições serão melhores?

Sabemos que a eutanásia em animais saudáveis não é mais permitida na maioria dos CCZs, mas qual a expectativa e qualidade de vida nos animais abrigados nesses locais? Sabemos também que por lei e por conveniência, órgãos públicos não podem selecionar os candidatos a adotantes. Qualquer um pode adotar. Como seria então garantida adoção responsável para esse animais? Adoções irresponsáveis são certeza de novo abandono.

Mas cada vez que se levanta o debate sobre o colecionismo de animais, estranhamente essas questão são completamente ignoradas,  como se existisse um contexto institucional favorável aos animais que só a teimosia e doença do “acumulador” os impede de desfrutar. Na verdade, o poder público não está se ocupando em absoluto dos interesses dos animais, e sim do incômodo que eles estão causando à comunidade humana, com sua mera existência. A solução é muito próxima daquela nefasta “solução final”: suprimi-los, simplesmente. Nem que seja excluindo o protetor do mundo dos “normais”.

A verdade é que pouquíssimos ativistas ou  protetores de animais podem alegar jamais terem enviado um animal para um abrigo miserável e superlotado. E o fizeram porque viram-se sem alternativas, pelo menos alternativas que não implicassem sair de sua zona de conforto. Os abrigos são uma realidade imposta pelas circunstâncias, não uma estratégia proposta pelos protetores. São um paliativo extremamente insatisfatório a ser aplicado numa situação extremamente estreita de opções. Que é exatamente a situação dos animais urbanos abandonados.

Nas últimas décadas o movimento de proteção aos animais vem ganhando dimensão e destaque na mídia. Um sintoma evidente é o discurso político – é digno de nota o número de candidatos que incluiu a proteção de animais em sua plataforma, de uma hora para outra. Dai decorre também que, mais organizados, os protetores de animais vem exercendo pressão sobre o poder público para que torne concreta o que era uma abstração jurídica: a responsabilidade desse mesmo poder sobre os animais abandonados. E a caça às bruxas do “colecionismo” promovida por ele parece ser apenas uma reação de contra-ataque a essa pressão, já que não resulta em melhoria para os próprios animais.

É histórico que protetores de animais sejam percebidos pelo senso comum como desajustados e loucos, fato notadamente linkado à misoginia, visto que a maioria são mulheres.  No passado, outras condutas que não condiziam com o pensamento hegemônico também foram reduzidas a patologia, como mulheres que sofreram lobotomia para controlar seu desejo sexual, inaceitável pela moral vitoriana. Bruxas eram queimadas com seus animais. E a figura da “louca dos gatos” ainda persiste no imaginário popular – agora na forma do acumulador que não é, mero preconceito revestido de verniz científico. Por essa razão, vejo com alarme o retrocesso que pode representar a interpretação equivocada, e o uso político, do conceito de “colecionador de animais”.

Se alguém resgata animais em situação de risco e morte iminente, mesmo ciente de que não tem condições ideais para oferecer ao animal, mas ciente também de que o socorro imediato que aquele animal desesperadamente necessita não virá de nenhuma outra parte, discordo de que essa pessoa seja qualificada como desequilibrada por causa disso. Ela é portadora talvez de um grau de altruísmo diferenciado, diferente da média, mas é curioso notar que só quando se trata de animais não humanos é que a conduta altruísta extremada é reduzida a patologia.

Quando se trata de altruísmo para com humanos, essas pessoas tornam-se legendárias e reverenciadas, como são os casos de Madre Teresa e Oscar Schindler, apenas para utilizar alguns exemplos mais óbvios, ainda que controversos e batidos. É por esse sistema de dois pesos e duas medidas que se percebe o especismo envolvido. Só num contexto especista, onde as necessidades de animais estão abaixo das de humanos, é que o altruísmo para com animais pode ser reduzido a doença mental.  Só cabe chamar alguém que resgata animais por motivações altruístas de “colecionador” sob um paradigma especista, em que animais tenham status de objetos e seus interesses sejam desconsiderados. Nesse contexto, sacrificar-se para salvar um animal é desvio ou doença.

Não pretendo negar que existem, sim, pessoas que manifestam um comportamento perverso, narcisista, que envolve o acúmulo de animais em condições impraticáveis. Porém essas pessoas nada tem a ver com o movimento da proteção, simplesmente porque não são movidas pelo altruísmo. Conheci o que considero uma autêntica colecionadora de animais – e que por sinal, também praticava o hoarding de entulho – e posso garantir que sua conduta tinha feições muito específicas e completamente alheias à prática da proteção.

Ela afirmava ter grande amor pelos animais, razão pela qual mantinha dezenas de gatos. Nenhum desses animais foi resgatado de situação de risco; aliás, a maioria nasceu na sua própria casa, pois ela se negava a castrá-los mesmo quando lhe ofereciam a cirurgia gratuita. Dizia que tal coisa contrariava suas crenças religiosas – a religião costuma também ser abrigo favorito de narcisistas -, ou que tinha pena de submeter os animais ao desconforto cirúrgico, ou que gostava de filhotes, etc… Os animais se reproduziam indiscriminadamente, doentes e subnutridos pois não recebiam alimentação adequada, e agonizavam em grande sofrimento, mas quando tratamento e medicação eram oferecidos gratuitamente, ela se recusava “por orgulho”, preferindo deixar o animal definhar.

Na verdade, parecia tirar grande prazer em observar a evolução das doenças até a morte, comprazendo-se em relatar o processo com muitos detalhes, enfatizando sempre o quanto se penalizava e sofria pela situação, ou seja, colocando-se a si própria em evidência no papel de vítima e mártir. Chegava a reagir violentamente quando alguém tentava assumir o socorro ao animal doente, ressentindo-se do que qualifica um desrespeito à sua autonomia. Embora alardeie grande afeição pelos animais, o comportamento destes não confirma essa informação. Parecem acuados, deprimidos e desacostumados de interação afetiva, fugindo ao contato. E também, embora proteste grande afeição, eventualmente descarta um, ou vários, sem manifestar nenhum interesse por seu futuro bem-estar ou segurança, entregando-os a passantes desconhecidos.

Eventualmente, mesmo nesse quadro precário, ela toma a iniciativa de procurar e apossar-se de novos animais desde que correspondam a determinadas características ou raças, em eventos ou anúncios, ou que sua ação receba atenção pública, pois só funciona com platéia. E esses contatos oportunizam mais comportamentos exibicionistas, onde se apresenta, novamente, como uma grande amante dos animais. Por mais que abra mão de condições de higiene e conforto doméstico – fato que atrai atenção constante sobre ela e mantém familiares reféns de seus caprichos –  nunca contraiu dívidas ou promoveu alterações significativas em seu estilo de vida – como mudar-se de residência – em função dos animais.

O contingente de animais é assunto constante entre parentes e amigos da família, que penalizam-se com sua situação. – “tão bondosa” –  e insistem para que uma solução seja encontrada. Ao manter a situação em suspenso, recusando as soluções apresentadas, como a castração, tem sucesso também em manter-se como o centro das atenções, alternando lamentações sobre as dificuldades e indignação pelos fato de que queiram interferir na sua vida – o sofrimento dos animais é considerado um assunto privado dela.

Nesse ponto, é interessante notar comportamento análogo nos episódios do reality show de TV intitulado “Acumuladores de animais”. Ali se percebe que quando do desfecho irreversível de todos os casos, o recolhimento dos animais a um abrigo público, o colecionador se mantém apático e indiferente, imerso e deleitando-se na sensação de auto-comiseração proporcionada pela atenção dispensada, e em momento nenhum indaga sobre o destino dos animais, mesmo sabendo que na maioria dos casos será a eutanásia. A própria estrutura do programa reforça a proposição de que se tratam apenas de objetos/problema que estão sendo removidos, cujo destino é indiferente. Jamais é dita uma palavra sobre o que foi feito dos animais, o que aconteceu com eles. Infere-se…  E jamais se confere a algum deles, entre os animais, status de pessoa, ou é mostrada sua história, seu nome, sua personalidade. Permanecem anônimos, quase inanimados, como coisas.

Essa pessoa, em minha opinião, não poderia de forma alguma ser tomada como protetora, por questões fundamentais e bem objetivas: ela não atua na causa animal diminuindo o contingente de animais maltratado/abandonados, mas ao contrário, aumentando-o deliberadamente através da procriação. Ela não age ideologicamente nem de forma prática na causa animal, não tem ação política, aliás, nem toma conhecimento de que há um movimento pelos direitos animais, que ela na verdade desrespeita continuamente. Ela não demonstra sequer verdadeira empatia. Suas motivações são de fundo narcisista, perverso, e não altruísta, mas egoísta.

Já a trajetória de um protetor é completamente diferente. Em geral, é alguém que desde  infância demonstrou especial interesse pelos animais, e a partir dessa afeição, passou a tomar conhecimento da situação de abandono e maus tratos sofrida por eles, e dos esforços da causa animal. Gradativamente, assumiu a tutela de mais animais do que seria confortável para sua renda e estilo de vida; esses novos animais nunca fizeram parte de seu projeto pessoal, mas chegam até ela de diversas formas: ou ela os resgata pessoalmente quando depara com animais em situação de risco ou morte iminente nas ruas – atropelados, abandonados, doentes, ninhadas descartadas – ou atende a pedidos de vizinhos, parentes e até desconhecidos que a procuram quando deparam com os mesmo casos, mas não querendo assumi-los pessoalmente, resolvem passá-los às mãos de uma protetora que julgam – que fantasia – dispor de recursos diferenciados para resolver o problema.

Com o tempo, vai se tornando conhecida na comunidade como “protetora”, e a ela todos recorrem com os mais diversos pedidos de ajuda, já que o poder público nada oferece. Aliás, quando poder público se refere às que qualifica como acumuladores, escolhe ignorar que ao deparar-se com um animal abandonado e/ou ferido a pessoa comum não tem absolutamente nenhuma outra alternativa além dessas duas: recolhê-lo ela mesma, ou virar-lhe as costas e deixá-lo morrer. E mais recentemente, é claro, apelar para uma protetora.

Muitas vezes, esse pedido de ajuda nada mais é do uma chantagem, deixando implícito que se não aceitar o animal, o mesmo será devolvido às ruas. Raramente é oferecido algum suporte para os procedimentos padrão de um resgate – consulta veterinária, vacina, higiene, anti-pulgas, anti-vermes, castração – muito menos auxiliam na busca pelo  lar definitivo. Depois que o animal é deixado nas mãos da protetora, os leigos acreditam ou querem acreditar que ela dispõe de soluções facilitadas e quase mágicas para gerir a situação – clinica gratuitas, ração mais barata, fontes inesgotáveis de ótimos lares amorosos para onde encaminhar o bichinho. Sentem-se tranquilos com sua consciência e é comum ouvir a afirmação “fiz minha parte”, quando não se fez absolutamente nada a não ser remover o problema inquietante de diante dos seus olhos e transferi-lo a outra pessoa, já sobrecarregada.

Como protetora, ela só promove a adoção responsável dos animais sob sua tutela, o que significa não doar a quem não assuma inteiramente a responsabilidade tanto sobre a higiene, saúde, bem estar físico e emocional desse animal como entenda a importância da castração e do planejamento a longo prazo, pois cães e gatos podem viver até 20 anos. Bons adotantes são extremamente raros, ainda que se faça pequenas concessões.

Mesmo se utilizando das redes sociais e dos eventos de adoções, surgem sempre mais animais precisando de socorro do que ela consegue doar. Ela pode organizar-se com outras protetoras em associações ou ONGs para tentar ganhar algum tipo de facilidade, mas em geral isso é uma faca de dois gumes: ao tornar-se pública, a associação atrai ainda mais pedidos de resgates; com isso contrai ainda mais dívidas e aumenta ainda mais o número de animais abrigados com suas integrantes.

Aos poucos, a situação da protetora torna-se insustentável. Sofre censura da família e da sociedade em geral, mas ao contrário da colecionadora, que não hesitará em descartar todos os animais quando isso se tornar necessário aos seus próprios interesses, a protetora não concordará em entregar seus resgatados a qualquer destino. As dívidas com compras de rações, medicamentos e atendimentos veterinários multiplicam-se e ela não consegue mais honrá-las.

Com isso, é comum que a família se afaste e até casamentos de desfaçam, principalmente porque a protetora, ao contrário da acumuladora, não hesita em comprometer seu patrimônio em prol dos animais. Se ela vive num apartamento ou casa de dimensões reduzidas, as questões da higiene e barulho começam a se tornar um problema; é ameaçada pelos vizinhos, tem seus animais agredidos ou até mesmo envenenados, ou é processada pelo seu condomínio. Agora, ela já é abertamente chamada de “acumuladora”, e não mais tem a aura condescendente de “protetora”, a não se quando convém para despejar-lhe mais um animal.

Se conseguir, acabará por deslocar-se para um sítio fora da região mais urbanizada, na esperança de pelo menos ter um pouco de paz; mas aí começam problemas de uma nova ordem. Rapidamente detectada por aquela misteriosa rede de informações que cobre as zonas rurais, em pouco tempo sua propriedade torna-se o destino de todas as ninhadas indesejadas e animais velhos ou doentes da região, além dos pedidos desesperados de outras protetoras que não tem mais realmente um lugar sequer para colocar um novo resgatado. Ela apenas acorda para encontrar novos animais jogados em seu terreno durante a noite, ou amarrados ao seu portão; o que deve fazer? A promessa tantas vezes renovadas e tantas vezes adiada de “não pegar mais nenhum” dissolve-se diante da crueza da situação: Deixá-los ali para que morram de fome ou frio, às portas de seu abrigo superlotado? Dificilmente.

E é assim que uma protetora, em poucos anos, se vê aprisionada num pesadelo, tendo sob sua tutela centenas de animais aos quais não pode dar sequer alimentação em quantidade suficiente ou um ambiente salubre para viverem. Alguns, quando contemplam esses abrigos miseráveis, dizem que os animais estariam melhor na rua. Não tenho tanta certeza, embora a situação de alguns abrigos chegue a beirar o dantesco. Na rua, a fome, o frio e a doença seriam ainda maiores, e além disso existiriam os maus tratos e a solidão. Na verdade, a expectativa de vida de um animal nas ruas, a não ser que tenha a sorte de tornar-se um animal comunitário – que recebe a proteção de uma determinada comunidade embora não tenha um tutor definido – é curtíssima e atroz. No abrigo miserável da protetora, ele tem pelo menos um momento de amor, um olhar de carinho, um nome, é reconhecido como pessoa e não como coisa.

Assim, no meu entender, colecionador/acumulador e protetor são conceitos excludentes, se tomados pelo critério do altruísmo. E para tornar mais fácil essa compreensão, sugiro contemplar o quadro abaixo. (É claro que descreve tipos puros, mas não há como trabalhar de outra forma inicialmente.) Ele é o embrião da hipótese, na esperança de colaborar para neutralizar o que percebo como uma manipulação do senso comum contrária à causa animal. Meu objetivo, repito, é contribuir para a construção de um conceito de hoarding de animais diferenciado dos propostos até hoje, que leve em consideração outros conceitos como altruísmo x narcisismo, senciência, especismo, e sobretudo, aceite contextualização.


Por Liège Copstein

Fonte: Olhar Animal

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