Sobre a natureza

Sobre a natureza

‘NATUREZA’, ‘natural’, e o grupo de palavras derivadas delas ou associadas a elas na etimologia, ocupou em todos os tempos um grande lugar nos pensamentos e teve uma forte influência nos sentimentos da humanidade. Não é surpreendente que elas tenham feito isso quando consideramos o que as palavras, em seu significado primitivo e mais óbvio, representam; mas é lamentável que um conjunto de termos que desempenham um papel tão grande em especulações metafísicas e morais tenham adquirido vários significados diferentes do primário, e ainda ligados a este o suficiente para permitir confusão. As palavras assim se tornaram emaranhadas em tantas associações estranhas, na maioria de um caráter muito poderoso e tenaz, que elas vieram a excitar, e a ser seus símbolos, sentimentos que seu significado original não justificará de maneira nenhuma, e que fizeram delas uma das fontes mais abundantes de mal gosto, falsa filosofia, falsa moralidade, e mesmo más leis.

A aplicação mais importante do elenchus socrático[1], como apresentado e melhorado por Platão, consiste em dissecar grandes abstrações dessa descrição; fixando-se a uma definição precisa cujo significado como usado popularmente elas meramente obscurecem, e questionando e testando as máximas e opiniões comuns nas quais elas sustentam uma parte. É de se lamentar que entre os exemplos instrutivos desse tipo de investigação que Platão deixou, e aos quais os tempos posteriores são tão endividados por qualquer clareza intelectual que tenham alcançado, ele não tenha enriquecido a posteridade com um diálogo peri phuseos[2]. Se a ideia denotada pela palavra fosse sujeita à sua minuciosa análise, e os lugares-comuns populares nos quais ela figura fossem submetidos à provação de sua poderosa dialética, seus sucessores provavelmente não teriam se apressado, como eles rapidamente fizeram, em modos de pensar e raciocinar cuja pedra angular é formada pelo uso falacioso daquela palavra; um tipo de falácia do qual ele próprio foi singularmente livre.

De acordo com o método platônico, que é ainda o melhor tipo de tais investigações, a primeira coisa a ser feita com tão vago termo é determinar precisamente o que significa. Também é uma regra do mesmo método que o significado de uma abstração é melhor buscado no concreto – de um universal[3] em particular. Adotando esse rumo com a palavra “natureza”, a primeira questão precisa ser o que se quer dizer com a “natureza” de um objeto particular, como do fogo, da água, ou de certa planta ou animal individual? Evidentemente, o conjunto ou agregado de suas capacidades ou propriedades: os modos nos quais atua em outras coisas (contando entre essas coisas os sentidos do observador), e os modos nos quais outras coisas atuam sobre si; a que, no caso de um ser senciente, precisam ser adicionadas suas próprias capacidades de sentir, ou ser consciente. A natureza da coisa significa tudo isso; significa sua capacidade inteira de exibir fenômenos. E desde que os fenômenos que uma coisa exibe, por mais que muitos variem em diferentes circunstâncias, são sempre os mesmos nas mesmas circunstâncias, admitem ser descritos em formas gerais de palavras, que são chamadas as leis da natureza da coisa. Assim, é uma lei da natureza da água que, sob a pressão média da atmosfera no nível do mar, ela ferve a 212 graus Fahrenheit.

Como a natureza de qualquer determinada coisa é o agregado de suas capacidades e propriedades, então Natureza no abstrato é o agregado das capacidades e propriedades de todas as coisas. Natureza significa a soma de todos os fenômenos, junto com as causas que produzem eles; incluindo não só tudo o que acontece, mas tudo que é capaz de acontecer; as capacidades não usadas das causas sendo tanto parte da ideia de Natureza como aquelas que tenham efeitos. Visto que todos fenômenos que foram suficientemente examinados encontram-se a ocorrer com regularidade, cada um tendo certas condições fixas, positivas ou negativas, na ocorrência das quais invariavelmente acontece, a humanidade foi capaz de determinar, seja por observação direta ou por processos racionais baseados nisso, as condições de ocorrência de vários fenômenos; e o progresso da ciência consiste principalmente em determinar essas condições. Quando descobertas elas podem ser expressas em proposições gerais, que são chamadas leis do fenômeno em particular, e também, mais geralmente, Leis da Natureza. Assim a verdade que todos objetos materiais tendem em direção um do outro com força diretamente proporcional a suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles é uma lei da natureza. A proposição que ar e alimento são necessários à vida animal, se for, como temos boas razões para acreditar, verdadeira sem exceção, é também uma lei da natureza, embora o fenômeno do qual é a lei seja especial, e não, como a gravitação, universal.

Natureza, então, nessa acepção, a mais simples, é o nome coletivo para todos os fatos, reais e possíveis; ou (para falar mais precisamente) um nome para o modo, parcialmente conhecido a nós e parcialmente desconhecido, pelo qual todas as coisas acontecem. Pois a palavra sugere, não tanto os numerosos detalhes dos fenômenos, como a concepção que poderia ser formada de sua maneira de existência como um todo mental, por uma mente possuindo um completo conhecimento deles: cuja concepção é o objetivo da ciência construir, por sucessivos passos de generalização da experiência.

Tal, então, é a correta definição da palavra “natureza”. Mas essa definição corresponde apenas a um dos sentidos desse termo ambíguo. É evidentemente inaplicável a alguns dos modos em que a palavra é familiarmente empregada. Por exemplo, colide inteiramente com a forma comum de fala pela qual Natureza é oposta a Arte, e natural a artificial. Pois, no sentido da palavra “natureza” que foi recém-definida, e que é o verdadeiro sentido científico, Arte é tanto Natureza como qualquer outra coisa; e tudo que é artificial é natural – a Arte não tem capacidades independentes dos seus próprios: Arte é senão o emprego das capacidades da Natureza para um fim. Fenômenos produzidos pela atuação humana, não menos que aqueles que, na medida em que estamos preocupados, são espontâneos, dependem das propriedades das forças elementares, ou das substâncias elementares e seus componentes. Os poderes de toda a raça humana unidos não poderiam criar uma nova propriedade da matéria em geral, ou de uma de suas espécies. Nós podemos apenas tirar vantagem para nossos propósitos das propriedades que encontramos. Um navio flutua pelas mesmas leis de gravidade e equilíbrio específicos que uma árvore desenraizada pelo vento e soprada para dentro da água. O milho que os homens cultivam para alimentação cresce e produz seus grãos pelas mesmas leis da vegetação pelas quais a rosa selvagem e o morango da montanha produzem suas flores e frutos. Uma casa fica em pé e mantém-se unida pelas propriedades naturais, o peso e coesão dos materiais que a compõe: uma máquina a vapor funciona pela força expansiva natural do vapor, exercendo uma pressão sobre uma parte de um sistema de arranjos, pressão que, pelas propriedades mecânicas da alavanca, é transferida desta para outra parte onde levanta o peso ou remove o obstáculo em conexão consigo. Nessas e em todas as outras operações artificias o ofício do homem é, como frequentemente foi observado, algo muito limitado: consiste em mover coisas para certos lugares. Movemos objetos, e, ao fazer isso, colocamos algumas coisas que estavam separadas em contato, ou separamos outras que estavam em contato; e, por essa simples mudança de lugar, as forças naturais anteriormente dormentes são chamadas à ação, e produzem o efeito desejado. Mesmo a vontade que projeta, a inteligência que inventa, e a força muscular que executa esses movimentos, são eles próprios poderes da Natureza.

Assim parece que precisamos reconhecer ao menos dois principais significados na palavra “natureza”. Em um sentido, significa todos os poderes existentes tanto no mundo exterior como interior e tudo que tem lugar por meio desses poderes. Em outro sentido, significa, não tudo que acontece, mas só o que tem lugar sem a atuação, ou sem a atuação voluntária e intencional, do homem. Essa distinção está longe de esgotar as ambiguidades da palavra; mas é a chave para a maioria daquelas das quais importantes consequências dependem.

Tais sendo, então, os dois principais sentidos da palavra “natureza”, em qual deles ela é usada, ou é usada em algum deles, quando a palavra e suas derivadas são usadas para transmitir ideias de recomendação, aprovação, e até obrigação moral?

Transmitiu-se tais ideias em todos os tempos. Naturum sequi[4] foi o princípio fundamental da moral em muitas das mais admiradas escolas de filosofia. Entre os antigos, especialmente no período decadente do intelecto e pensamento antigos, era o teste ao qual todas doutrinas éticas eram trazidas. Os estoicos e os epicuristas, por mais irreconciliáveis que fossem no resto de seus sistemas, concordaram em manter-se unidos para provar que suas respectivas máximas de conduta eram os ditames da natureza. Sob sua influência os juristas romanos, quando tentavam sistematizar a jurisprudência, colocaram em frente a sua exposição um certo Jus Naturale, “quod natura”, como Justiniano declara nos Institutos, “omnia anmalia docuit”[5]: e como os modernos escritores sistemáticos, não apenas em lei mas em filosofia moral, geralmente tomaram os juristas romanos por seus modelos, tratados sobre a assim chamada Lei da Natureza abundaram; e referências a essa Lei como uma regra suprema e norma absoluta têm impregnada literatura. Os escritores sobre Lei Internacional fizeram mais que quaisquer outros para dar circulação a esse estilo de especulação ética; visto que, não tendo nenhuma lei positiva para escrever sobre, e ainda estando ansiosos para investir as opiniões mais aprovadas a respeito da moralidade internacional tanto quanto pudessem com de autoridade de lei, eles tentaram encontrar tal autoridade no imaginário código da Natureza. A teologia cristã durante o período de sua maior ascendência opôs algum, embora não um completo, obstáculo aos modelos de pensamento que erguiam a Natureza para dentro dos critérios de moral, visto que, de acordo com a crença da maioria das denominações de cristãos (embora certamente não de Cristo), o homem é por natureza perverso. Mas essa própria doutrina, pela reação que provocou, fez os moralistas deístas quase unânimes em proclamar a divindade da Natureza, e estabelecendo seus ditames fantasiosos como uma regra oficial de ação. Uma referência a essa suposta norma é o ingrediente predominante na linha de pensamento e sentimento que foi aberta por Rousseau, e que se infiltrou mais amplamente dentro da mente moderna, sem excetuar-se aquela porção que chama a si mesma de cristã. As doutrinas da cristandade em todas as idades foram largamente acomodadas à filosofia que por acaso era prevalente, e a cristandade de nossos dias pegou emprestada uma considerável parte de sua cor e aroma do deísmo sentimental. No tempo presente não pode ser dito que a Natureza, ou qualquer outra norma, é aplicada como costumava ser, para deduzir regras de ação com precisão jurídica, e com uma tentativa de fazer essa aplicação coextensiva com toda atuação humana. As pessoas dessa geração não aplicam comumente princípios com nenhuma exatidão tão estudiosa, nem possuem tal fidelidade obrigatória a nenhuma norma, mas vivem num tipo de confusão de várias normas; uma condição impropícia para a formação de convicções morais estáveis, mas conveniente o bastante para aqueles cujas opiniões morais sentam-se levemente sobre elas, já que isso lhes dá uma extensão muita mais ampla de argumentos para defender a doutrina do momento. Mas embora talvez ninguém possa ser encontrado agora que, como os escritores institucionais de tempos antigos, adote a assim chamada Lei da Natureza como a fundação da ética, e tentem consistentemente raciocinar a partir disso, a palavra e seus cognatos precisam ainda ser contados entre aquelas que carregam grande peso na argumentação moral. Que algum modo de pensar, sentir, ou agir, está “de acordo com a natureza” é comumente aceito como um forte argumento para sua bondade. Se pode ser dito com alguma plausibilidade que “a natureza prescreve” alguma coisa, a correção de obedecer à determinação é pela maioria das pessoas considerada como algo que deve ser feito; e, por outro lado, a imputação de ser contrário à natureza é considerada como fechar a porta contra qualquer pretensão, da parte da coisa assim designada, de ser tolerada ou perdoada; e a palavra “antinatural” não cessou de ser um dos mais afrontosos epítetos da linguagem. Aqueles que lidam com essas expressões podem evitar fazer de si mesmos responsáveis por algum teorema fundamental a respeito da norma de obrigação moral, mas não sugerem menos tal teorema, o qual necessita ser o mesmo em substância que aquele em que os pensadores mais lógicos de um tempo mais laborioso basearam seus tratados sistemáticos na Lei Natural.

É necessário reconhecer nessas formas de fala outro significado distinto da palavra “natureza”? Ou elas podem estar conectadas, por algum elo de ligação, com qualquer dos dois significados já tratados? Primeiro pode parecer que não temos nenhuma opção senão admitir outra ambiguidade no termo. Todas investigações são ou sobre o que é ou sobre o que deve ser: ciência e história pertencendo à primeira divisão; arte, moral e política à segunda. Mas os dois sentidos da palavra “natureza” anteriormente apontados concordam ao referir-se apenas ao que é. No primeiro significado, Natureza é um nome coletivo para tudo que é. No segundo, é um nome para tudo que é por si próprio, sem voluntária intervenção humana. Mas o emprego da palavra “natureza” como um termo de ética parece revelar um terceiro significado, no qual Natureza não representa o que é, mas o que deve ser, ou a regra ou norma do que deve ser. Uma pequena consideração, contudo, mostrará que não é o caso de ambiguidade; não há aqui um terceiro sentido da palavra. Aqueles que estabelecem a Natureza como uma norma de ação não pretendem uma proposição verbal meramente; eles não querem dizer que a norma, qualquer que seja deveria ser chamada Natureza; eles pensam que estão dando alguma informação quanto ao que a norma de ação realmente é. Aqueles que dizem que devemos agir conforme a Natureza não querem dizer a mera proposição idêntica que nós devemos fazer o que devemos fazer. Eles pensam que a palavra “natureza” concede algum critério externo do que devemos fazer e se eles estabelecem como uma regra para o que deve ser uma palavra que em seu significado próprio denota o que é, eles fazem isso porque têm uma noção, seja clara ou confusamente, que o que é constitui a regra e norma do que deve ser.

O exame dessa noção é o objetivo do presente ensaio. Ele é proposto para investigar a verdade das doutrinas que fazem da Natureza uma prova de certo e errado, bom e mal, ou que em algum modo ou grau atribuem mérito ou aprovação a seguir, imitar, ou obedecer à Natureza. Para essa investigação a discussão anterior a respeito do significado dos termos foi uma indispensável introdução. A linguagem é, como foi, a atmosfera da investigação filosófica, que precisa ser feita transparente antes que alguma coisa possa ser vista através de si na verdadeira figura e posição. No presente caso é necessário vigiar contra uma maior ambiguidade, que, embora abundantemente óbvia, algumas vezes enganou mesmo mentes sagazes, e da qual é bom tomar nota distinta antes de proceder além. Nenhuma palavra é mais comumente associada com a palavra “natureza” que “lei”; e esta última palavra tem distintamente dois significados, em um dos quais denota alguma definida porção do que é, na outra do que deve ser. Falamos da lei da gravitação, as três leis do movimento, a lei das proporções definidas em combinações químicas, as leis vitais dos seres organizados. Todas essas são porções do que é. Também falamos da lei criminal, lei civil, lei de honra, lei da veracidade, lei da justiça; todas as quais são porções do que deve ser, ou das suposições, sentimentos, ou ordens de alguém sobre o que deve ser. O primeiro tipo de leis, como as leis do movimento e de gravitação, não são nem mais nem menos que as uniformidades observadas na ocorrência dos fenômenos; parcialmente uniformidades de antecedência e sequência, parcialmente de concomitância. Essas são as que, em ciência, e mesmo em linguagem ordinária, são consideradas por leis da natureza. Leis no outro sentido são as leis da terra, a lei das nações, ou leis morais; entre as quais, como já observado, é arrastada, por juristas e publicistas, algo que eles pensam apropriado chamar Lei da Natureza. Da tendência desses dois significados da palavra de serem confundidos, não pode haver melhor exemplo que o primeiro capítulo de Montesquieu, onde ele nota que o mundo material tem suas leis, os animais inferiores têm suas leis, e o homem tem suas leis; e chama atenção ao rigor muito maior com que os primeiros dois conjuntos de leis são observados que o último; como se fosse uma inconsistência, e um paradoxo, que coisas sempre fossem o que elas são, mas os homens nem sempre fossem o que devem ser. Uma confusão similar de ideias permeia os escritos de Mr. George Combe, de onde transbordou sobre uma grande zona da literatura popular, e nós estamos agora continuamente lendo prescrições para obedecer as leis físicas do universo, como sentido obrigatórias no mesmo sentido e maneira que a moral. A concepção que o uso ético da palavra “natureza” implica, de uma relação estreita se não de absoluta identidade entre o que é e o que deve ser, certamente deriva parte de seu domínio sobre a mente do costume de designar o que é pela expressão “leis da natureza”, enquanto a mesma palavra “lei” é também usada, e mesmo mais familiar e empaticamente, para expressar o que deve ser.

Quando é afirmado, ou sugerido, que Natureza, ou as leis da Natureza, deve ser obedecida, é a Natureza que quer dizer Natureza no primeiro sentido do termos, significando tudo que é – as capacidades e propriedades de todas as coisas? Mas nesse significado não há necessidade de uma recomendação de agir de acordo com a natureza, visto que isso é algo que ninguém pode possivelmente ajudar a fazer, e igualmente se agir bem ou mal. Não há modo de agir que não seja conforme à Natureza nesse sentido do termo, e todos os modos de agir são assim exatamente no mesmo grau. Toda ação é o esforço de algum poder natural, e seus efeitos de todos os tipos são muitos fenômenos da natureza, produzidos pelas capacidades e propriedades de alguns dos objetos da natureza, em exata obediência a alguma lei ou leis da natureza. Quando eu voluntariamente uso meus órgãos para ingerir comida, o ato e suas consequências tem lugar de acordo com leis da natureza: se em vez de comida eu engolir veneno, o caso é exatamente o mesmo. Ordenar as pessoas obedecerem às leis da natureza quando elas não têm poder senão o que as leis da natureza lhes dão – quando é uma impossibilidade física para elas fazer a menor coisa de outra forma que através de alguma lei da natureza, é um absurdo. A coisa que elas necessitam ser contadas é de queparticular lei da natureza elas devem fazer uso em um caso particular. Quando, por exemplo, uma pessoa está atravessando um rio por uma ponte estreita na qual não há parapeito, ela fará bem em regular suas ações pelas leis do equilíbrio de corpos em movimento, em vez de se conformar apenas à lei de gravitação e cair dentro do rio.

Contudo, inútil como é exortar pessoas a fazer o que elas não podem evitar, e absurdo como é prescrever como uma regra de conduta correta o que concorda exatamente da mesma forma com a errada, mesmo assim uma regra racional de conduta pode ser construída a partir da relação que devemos suportar as leis da natureza nessa acepção mais ampla do termo. O homem necessariamente obedece as leis da natureza, ou em outras palavras as propriedades das coisas; mas ele não necessariamente guia a si mesmo por elas. Embora toda conduta esteja em conformidade com as leis da natureza, toda conduta não está baseado no conhecimento delas e inteligentemente dirigido à realização de propósitos por meio delas.

Embora não possamos emancipar-nos das leis da natureza como um todo, podemos escapar de alguma particular lei da natureza, se formos capazes de retirar-nos das circunstâncias em que ela age. Embora não possamos fazer nada exceto através das leis da natureza, podemos usar uma lei para neutralizar outra. Segundo a máxima de Bacon, podemos obedecer a natureza de tal maneira a comandá-la. Toda alteração das circunstâncias altera mais ou menos as leis da natureza sob as quais agimos; e a cada escolha que fazemos tanto de fins como de meios colocamo-nos numa maior ou menor extensão sob um conjunto de leis da natureza em vez de outro. Se, portanto, o preceito inútil de seguiu a natureza fosse alterado a um preceito para estudar a natureza; para conhecer e prestar atenção nas propriedades das coisas com que temos que lidar, na medida em que essas propriedades sejam capazes de fomentar ou obstruir algum dado propósito; deveríamos ter chegado ao primeiro princípio de toda ação inteligente, ou mesmo na própria definição da ação inteligente. E uma noção confusa desse verdadeiro princípio está, não tenho dúvida, nas mentes de muitos daqueles que estabelecem a doutrina sem sentido que superficialmente se assemelha a ele. Eles percebem que a essencial diferença entre a conduto sábia e a tola consiste em atender, ou não atender, às particulares leis da natureza de que algum resultado importante depende. E pensam que de uma pessoa que atende a uma lei da natureza a fim de moldar sua conduta por ela pode ser dito que a obedece, enquanto de uma pessoa que praticamente desconsidera-a, e age como se tal lei não existisse, pode ser dito que a desobedece; a circunstância sendo negligenciada, aquilo que é assim chamado desobediência a uma lei da natureza é obediência a uma outra, ou talvez à própria lei. Por exemplo, uma pessoa que entra num depósito de pólvora seja sem conhecer, ou descuidadamente esquecendo-se de pensar sobre, a força explosiva da pólvora, é suscetível a fazer alguma ação que lhe causará ser explodida em átomos em obediência à própria lei que ela negligenciou.

Mas, por mais que a doutrina do “Naturam sequi” possa dever muito de sua autoridade a ser confundida com o preceito racional “Natarum observare”, seus protetores e promotores inquestionavelmente pretendem muito mais com ela que aquele preceito. Adquirir conhecimento das propriedades das coisas, e fazer uso do conhecimento para orientação, é uma regra de prudência, pela adaptação dos meios aos fins; por dar efeito a nossos desejos e intenções, quaisquer que possam ser. Mas a máxima de obediência à Natureza, ou conformidade com a Natureza, é sustentada não como uma simples máxima prudente mas como uma máxima ética; e para aqueles que falam de jus naturae até como uma lei, cabe ser administrada por tribunais e executada por sanções. Ação correta precisa significar algo mais e diferente que apenas ação inteligente; mas nenhum preceito além desse último pode ser conectado com a palavra “natureza” na acepção mais ampla e mais filosófica. Precisamos tentar, portanto, no outro sentido, no qual Natureza é distinguida de Arte, e denota, não o curso todo dos fenômenos que acontecem sob nossa observação, mas só seu curso espontâneo.

Vamos, então, considerar se podemos unir algum significado à suposta máxima prática de seguir a Natureza, nesse segundo sentido da palavra, no qual Natureza significa aquilo que tem lugar sem intervenção humana. Na Natureza assim entendida é o curso espontâneo das coisas, quando deixadas a si mesmas, a regra a ser seguida ao tentar adaptar as coisas ao nosso uso? Mas é evidente de imediato que a máxima, tomada nesse sentido, não é meramente, como é no outro sentido, supérflua e sem sentido, mas palpavelmente absurda e autocontraditória. Já que enquanto a ação humana não pode ajudar a conformar-se à Natureza num sentido do termo, o próprio alvo e objetivo de ação é alterar e melhorar a Natureza no outro sentido. Se o curso natural das coisas fosse perfeitamente certo e satisfatório, agir de qualquer modo seria uma intromissão gratuita, que, como não poderia fazer as coisas melhores, deve fazê-las piores. Ou se a ação de qualquer modo pudesse ser justificada, seria apenas quando em direta obediência a instintos, visto que estes poderiam talvez ser considerados parte da ordem espontânea da Natureza; mas fazer qualquer coisa com premeditação e propósito seria uma violação daquela perfeita ordem. Se o artificial não é melhor que o natural, para quem fim são todas as artes da vida? Cavar, arar, construir, usar roupas, são infrações diretas à prescrição de seguir a natureza.

De acordo com isso seria dito por todo mundo, mesmo aqueles mais sob a influência dos sentimentos que induzem a prescrição, que aplicar isso a casos tais como aqueles recém-falados seria ir longe demais. Todo mundo professa aprovar e admirar vários grandes triunfos da Arte sobre a Natureza: a junção através de pontes de margens que a Natureza fez separadas, a drenagem dos Pântanos da Natureza, a escavação de seus poços, o arraste à luz do que ela enterrou a imensas profundidades na terra; o desvio dos seus raios por para-raios, de suas inundações por aterros, do seu oceano por molhes. Mas elogiar essas e outras façanhas é reconhecer que os meios da Natureza devem ser conquistados, não obedecidos; que seus poderes estão com frequência na posição de inimigos em relação ao homem, de quem ele precisa tirar, por força e ingenuidade, o pouco que puder para seu próprio uso, e merece ser aplaudido quando aquele pouco é em vez disso mais que poderia ser esperado de sua fraqueza física em comparação àqueles poderes gigantes. Todo louvor da Civilização, ou Arte, ou Invenção, é da mesma forma uma depreciação da Natureza; uma admissão da imperfeição que é afazer e mérito do homem estar sempre buscando corrigir ou mitigar.

A consciência de que tudo que o homem faz para melhorar sua condição é tanto uma censura como uma frustração da ordem espontânea da Natureza causou em todos os tempos novas e inéditas tentativas de melhoria que ficaram geralmente em primeiro lugar sob uma sombra de suspeita religiosa; como sendo em qualquer caso descortês, e muito provavelmente ofensiva aos seres poderosos (ou, quando o politeísmo cedeu lugar ao monoteísmo, ao Ser todo-poderoso) supostos a governar os vários fenômenos do universo, e de cuja vontade o curso da natureza foi concebido como sendo a expressão. Qualquer tentativa de moldar os fenômenos naturais à conveniência da humanidade pode facilmente parecer uma interferência no governo daqueles seres superiores; e embora a vida não pudesse ser mantida, muito menos feita agradável, sem perpétuas interferências do tipo, cada uma foi, sem dúvida, feita com medo e tremor, até a experiência mostrar que ela poderia ser arriscada sem baixar a vingança dos Deuses. A sagacidade dos sacerdotes mostrou-lhes um meio para reconciliar a impunidade de infrações particulares com a manutenção do medo geral de invadir a administração divina. Isso foi realizado representando cada uma das principais intervenções humanas como um presente ou favor de certo deus. As antigas religiões também proporcionaram várias fontes para consultar os Deuses, e obter sua expressa permissão para o que de outra forma pareceria uma violação de sua prerrogativa. Quando os oráculos cessaram, qualquer religião que reconhecesse uma revelação proporcionou meios para o mesmo propósito. A religião católica teve o recurso de uma Igreja infalível, autorizada a declarar quais esforços da espontaneidade humana eram permitidos ou proibidos; e por padrão o caso era sempre aberto a argumentar pela Bíblia se qualquer prática em particular havia expressa ou implicitamente sido sancionada. A noção permaneceu sendo que essa liberdade de controlar a Natureza foi concedida ao homem apenas por especial indulgência, e tanto quanto requerido por suas necessidades; e houve sempre uma tendência, embora reduzida, de considerar qualquer tentativa de exercer poder sobre a natureza além de um certo grau e um certo alcance admitido como um esforço ímpio de usurpar o poder divino e ousar mais do que foi permitido ao homem. As linhas de Horácio em que as artes familiares de construção naval e navegação são reprovadas como vetitum nefas[6] indicam mesmo naquela época cética uma veia ainda não exaurida do velho sentimento. A intensidade do sentimento correspondente na Idade Média não é um paralelo preciso, por causa da superstição sobre negociar com maus espíritos com que foi complicado; mas a imputação de espreitar os segredos do Todo Poderoso permaneceram por muito tempo uma poderosa arma de ataque contra investigações impopulares sobre a natureza; e a acusação de presunçosamente tentar derrotar os projetos da Providência ainda retém bastante da sua força original para ser jogada como um tapa-buracos junto com outras objeções quando há um desejo de encontrar falha em qualquer novo esforço de premeditação e artifício humanos. Ninguém, de fato, afirma ser a intenção do Criador que a ordem espontânea da criação não deva ser alterada, ou mesmo que não deva ser alterada de qualquer nova maneira. Mas ainda existe uma noção vaga que, embora seja muito adequado controlar esse ou outro fenômeno natural, o esquema geral da natureza é um modelo a ser imitado por nós; que com mais ou menos liberdade nos detalhes, nós devemos no todo ser guiados pelo espírito e concepção geral dos próprios meios da natureza; que eles são trabalho de Deus, e como tal perfeitos; que o homem não pode rivalizar sua excelência inacessível, e pode mostrar melhor sua habilidade e devoção tentando, não importa de que maneira imperfeita, reproduzir sua imagem; e que, se não o todo, pelo menos algumas partes particulares da ordem espontânea da natureza, selecionadas conforme as predileções do orador, são num sentido peculiar manifestações da vontade do Criador – uma espécie de sinalização apontando a direção que as coisas em geral, e portanto nossas ações voluntárias, são pretendidas a tomar. Sentimentos dessa espécie, embora reprimidos em ocasiões ordinárias pelo curso contrário da vida, estão prontos para irromper sempre que o costume está em silêncio, e as inspirações nativas da mente não têm nada contrário a eles além da razão; e apelos são continuamente feitos a eles por retóricos, com o efeito, se não de convencer oponentes, pelo menos de fazer aqueles que já mantêm a opinião que o retórico deseja recomendar, melhor satisfeitos com ela. Pois nos dias de hoje é provável que raramente acontece que alguém é persuadido a aprovar qualquer linha de ação porque ela parece suportar uma analogia com o governo divino do mundo, embora o argumento diga a ele com grande força, e é sentido por ele como sendo um grande apoio, em favor de qualquer coisa que ele já esteja inclinado a aprovar.

Se essa noção de imitar os métodos da Providência como manifestados na Natureza é raramente expressa clara e francamente como um assunto de aplicação geral, também raramente é contradita diretamente. Aqueles que a encontram em seu caminho preferem desviar o obstáculo em vez de atacá-lo, frequentemente não sendo livres do sentimento, e em qualquer caso receosos de incorrer na acusação de impiedade por dizer qualquer coisa que possa ser considerada que esteja depreciando os trabalhos do poder do Criador. Eles, portanto, na maior parte, antes se esforçam para mostrar que têm tanto direito aos argumento religioso quanto seus oponentes, e que, se o caminho que recomendam parecer estar em conflito com alguma parte dos métodos da Providência, há uma outra parte com que eles concordam melhor que aquilo que é defendido pelo outro lado. Nesse modo de lidar com as maiores falácias a priori, o progresso de melhoras afasta erros particulares enquanto as causas dos erros são ainda deixadas de pé, e muito pouco enfraquecidas através de cada conflito; no entanto, por uma longa série de tais vitórias parciais, precedentes são acumulados, aos quais um apelo pode ser feito contra tais poderosos preconceitos, e que concedem uma esperança crescente em que a sensação equivocada, após ter com frequência aprendido a recuar, possa um dia ser compelida a uma renúncia incondicional. Pois, por mais ofensiva que a proposição possa parecer a muitas pessoas religiosas, elas devem estar desejando olhar na face o fato inegável que a ordem da natureza, na medida em que esteja inalterada pelo homem, é tal que nenhum ser, cujos atributos são justiça e benevolência, a teria feito com a intenção de que suas criaturas racionais devam segui-la como um exemplo. Se feita totalmente por tal Ser, e não parcialmente por seres de qualidades muito diferentes, poderia apenas ser um trabalho intencionalmente imperfeito, no qual o homem, em sua esfera limitada, deve exercer a justiça e a benevolência para alterá-lo. As melhores pessoas sempre sustentaram ser a essência da religião que o dever primordial do homem na terra é alterar-se; mas todas exceto quietistas monásticos anexaram a isso em suas mentes íntimas (embora raramente desejando enunciar a obrigação com a mesma clareza) o dever religioso adicional de alterar o mundo, e não somente sua parte humana, mas a material – a ordem da natureza física.

Ao considerar esse assunto é necessário despojar-nos de certas preconcepções que podem justamente ser chamadas de preconceitos naturais, sendo baseadas em sentimentos que, por eles próprios naturais e inevitáveis, penetram em questões com que eles não deviam ter nenhuma relação. Um desses sentimentos é o espanto, chegando a se tornar temor, que é inspirado (mesmo independentemente de todos os sentimentos religiosos) por qualquer dos maiores fenômenos naturais. Um furacão; um precipício de uma montanha; o deserto; o oceano, seja agitado ou em repouso; o sistema solar, e as grandes forças cósmicas que o mantêm unido; o ilimitado firmamento, e para uma mente educada qualquer simples estrela – excitam sentimentos que fazem todos empreendimentos e poderes humanos parecerem tão insignificantes que, para uma mente assim ocupada, parece uma presunção sofrível uma criatura tão frágil como o homem olhar criticamente para coisas tão acima de si, ou ousar medir-se contra a grandeza do universo. Mas uma pequena interrogação da nossa própria consciência será suficiente para convencer-nos que o que faz esses fenômenos tão impressionantes é simplesmente sua imensidão. A enorme extensão em espeço e tempo, ou o enorme poder que eles exemplificam, constitui sua sublimidade; um sentimento, em todos os casos, mais aliado a terror que a emoção moral. E embora a vasta escala desses fenômenos possa bem excitar admiração, e estabeleça como rebeldia toda ideia de rivalidade, o sentimento que inspira é de um caráter totalmente diferente de admiração da excelência. Aqueles em quem o terror produz admiração podem ser esteticamente desenvolvidos, mas são moralmente incultos. É um dos dons da parte imaginativa de nossa natureza mental que concepções de grandeza e poder, vividamente percebidas, produzam um sentimento que, embora em seus graus mais elevados se aproxime estreitamente da dor, nós preferimos à maioria dos que são considerados prazeres. Mas estamos igualmente bastante capazes de experimentar esse sentimento para o poder maléfico; e nunca o experimentamos tão fortemente para a maioria dos poderes do universo como quando temos mais presente em nossa consciência uma sensação vívida de sua capacidade de infligir mal. Porque esses poderes naturais têm o que nós não podemos imitar, um enorme poder, e intimidam-nos por tal atributo, seria um grande erro inferir que seus outros atributos são tais que nós devemos simular, ou que nós devemos estar justificados ao usar nossos pequenos poderes após o exemplo que a Natureza nos mostra com suas vastas forças. Como se sustenta o fato que, ao lado da grandeza dessas forças cósmicas, a qualidade que mais forçosamente atinge todo aquele que não desviar seus olhos é sua imprudência perfeita e absoluta? Elas vão direto para seu fim, sem considerar o que ou quem esmagam no caminho. Otimistas, em suas tentativas de provar que “tudo que é, é certo”, são obrigados a manter, não que a Natureza alguma vez desvia um passo de seu caminho para evitar atropelar-nos à destruição, mas que seria muito irracional esperarmos que ela devesse fazê-lo. A frase de Pope[7] “Deve a gravitação cessar quando você passar?” pode ser uma justa repreensão a qualquer um que seja tão tolo para esperar moralidade humana comum da natureza. Mas se a questão fosse entre dois homens, em vez de entre um homem e um fenômeno natural, aquela apóstrofe triunfal seria considerada um exemplo raro de insolência. Um homem que persista em lançar pedras ou disparar um canhão quando outro homem “passar”, e tendo matado-o inste um apelo semelhante como desculpa, muito merecidamente seria considerado culpado de assassinato.

Na grande realidade, quase todas as coisas pelas quais os homens são punidos ou aprisionados por fazerem uns aos outros são performances cotidianas da natureza. Matar, o ato mais criminoso reconhecido pelas leis humanas, a Natureza faz uma faz a todo ser que vive; e, em grande número de casos, após prolongadas torturas como só os maiores monstros de quem lemos sobre alguma vez infligiram propositadamente em suas criaturas vivas. Se, por uma ressalva arbitrária, recusamos considerar qualquer coisa como assassinato além do que engloba um certo termo suposto a ser atribuído à vida humana, a natureza também o faz para todas exceto uma pequena porcentagem de vidas, e o faz por todos os modos, violentos ou traiçoeiros, com os quais os piores seres humanos tiram a vida uns dos outros. A Natureza empala os homens, quebra-os como num moinho, atira-os para serem devorados por bestas selvagens, queima-os até a morte, esmaga-os com pedras como os primeiros mártires cristãos, mata-os de fome, congela-os com frio, intoxica-os pelos venenos rápidos ou lentos de suas exalações, e tem centenas de outras mortes hediondas na reserva, como a crueldade engenhosa de um Nabis ou um Domiciano nunca superaram. Tudo isso a Natureza faz com o maior desprezo arrogante tanto de piedade como de justiça, cobrindo indiferentemente o melhor e o mais nobre com o mais vil e o pior; o mesmo àqueles que estão envolvidos com as empresas mais elevadas e mais dignas, frequentemente como direta consequência dos atos mais nobres; e isso pode quase ser imaginado como uma punição por eles. Ela ceifa aqueles em cuja existência encontra-se o bem-estar de um povo inteiro, talvez a esperança da humanidade para gerações futuras, com tão pouco remorso como àqueles cuja morte é um alívio para si, ou uma benção àqueles sob sua influência nociva. Tais são as condutas da Natureza com a vida. Mesmo quando ela não pretende matar ela inflige as mesmas torturas com aparente libertinagem. Na provisão desastrosa que ela fez para a perpétua renovação da vida animal, tornada necessária pelo fim imediato que ela coloca em cada caso individual, nenhum ser humano nunca vem ao mundo exceto se outro ser humano é literalmente torturado por horas ou dias, não raramente levando-o à morte. Após retirar a vida (equivalendo a isso de acordo com certa grande autoridade) retira os meios pelos quais vivemos; e a Natureza faz isso também na escala mais ampla e com a indiferença mais insensível. Um único furacão destrói a esperança de uma estação; um voo de gafanhotos, ou uma inundação, desola um distrito; uma insignificante mudança química numa raiz comestível matade fome um milhão de pessoas. As ondas do mar, como bandidos, confiscam e se apropriam da riqueza dos ricos e do pouco dos pobres ao mesmo tempo em que despe, fere e mata como seus equivalentes humanos. Tudo, em resumo, que os piores homens cometem contra a vida ou apropriedade é perpetrado em maior escala por agentes naturais. A Natureza tem Noyades[8] mais fatais que aqueles de Carrier; suas explosões de grisu são tão destrutivas quanto a artilharia humana; sua praga e cólera superam em muito os envenenamentos dos Borjas[9]. Até mesmo o amor à “ordem”, que é considerado ser uma consequência dos métodos da Natureza, é, na verdade, uma contradição delas. Tudo que as pessoas estão acostumas a desaprovar como “desordem” e suas consequências são precisamente uma duplicata dos fatos da Natureza. A Anarquia e o Reino do Terror são superados em injustiça, ruína e morte por um furacão e uma epidemia.

Mas, dizem, todas essas coisas são para fins sábios e bons. Sobre isso eu preciso primeiro observar que se elas são assim ou não é totalmente irrelevante. Supondo que seja verdadeiro que, ao contrário das aparências, esses horrores, quando cometidos pela Natureza, promovem bons fins, ainda assim, como ninguém acredita que bons fins seriam promovidos por seguirmos seu exemplo, o rumo da Natureza não pode ser um modelo apropriado para imitarmos. Ou está correto que devemos matar porque a natureza mata; torturar porque a natureza tortura; arruinar e devastar porque a natureza faz assim; ou não devemos considerar absolutamente o que a natureza faz, mas o que é bom fazer. Se existe tal coisa como um reductio ad absurdum, isso certamente equivale a um. Se é uma razão suficiente para fazer algo, que a natureza o faça, por que não outra coisa? Se nem tudo é uma razão, por que o é alguma coisa em particular? O governo físico do mundo sendo cheio das coisas que quando feitas por homens são consideradas as maiores atrocidades, não pode ser religioso ou moral guiarmos nossas ações pela analogia da conduta da natureza. Essa proposição permanece verdadeira, qualquer qualidade oculta de produzir o bem que possa residir naqueles fatos da natureza que para nossas percepções são mais nocivos, e que ninguém considera-os senão como crime produzir artificialmente.

Mas, na realidade, ninguém acredita consistentemente em qualquer dessas qualidades ocultas. As frases que atribuem perfeição à conduta da natureza podem apenas ser consideradas como exageros de sentimentos poéticos ou devotos, não planejadas para resistir ao teste de um exame sóbrio. Ninguém, seja religioso ou não, acredita que as dolorosas ações da natureza, consideradas como um todo, promovem bons propósitos, de qualquer outro modo além de incitar criaturas humanas racionais a erguerem-se e lutarem contra elas. Se acreditássemos que aquelas ações são designadas por uma Providência benevolente como os meios de cumprir sábios propósitos que não poderiam ser alcançados se elas não existissem, então tudo feito pela humanidade que tende a atenuar essas ações naturais ou restringir suas operações maliciosas, de drenar um pântano pestilento a curar a dor de dentes, ou levantar um guarda-chuva, deveria ser considerado ímpio; o que seguramente ninguém o considera, apesar de uma corrente de sentimentos apontando nessa direção que é ocasionalmente perceptível. Pelo contrário, as melhorias de que a parte civilizada da humanidade mais se orgulha consistem em afastar com maior sucesso aquelas calamidades naturais que, se realmente acreditássemos no que a maioria das pessoas professa acreditar, deveríamos valorizar como medicamentos fornecidos para nossa situação terrena pela sabedoria infinita. Visto que, igualmente, cada geração ultrapassa largamente suas antecessoras na quantidade de mal natural que consegue evitar, nossa condição, se a teoria fosse verdadeira, deveria atualmente ter se tornado uma manifestação terrível de uma tremenda calamidade, contra a qual os males físicos que aprendemos a subjugar haviam operado previamente como prevenção. Qualquer um, contudo, que agisse como se considerasse ser esse o caso seria mais provavelmente, penso eu, confinado como um lunático que reverenciado como um santo.

É sem dúvida um fato muito comum que o bem resulta do mal, e quando isso ocorre é muito agradável não encontrar pessoas ansiosas para expandi-lo. Mas, em primeiro lugar, isto é verdadeiro tão frequentemente para crimes humanos como para calamidades naturais. O fogo de Londres, que é considerado ter tido um efeito tão salutar na higiene da cidade, teria produzido aquele efeito igualmente se fosse na verdade o trabalho do “furor papisticus” comemorado a tanto tempo no Monumento. As mortes daqueles que tiranos ou perseguidores fizeram mártires em qualquer causa nobre fizeram um serviço à humanidade que não seria obtido se eles tivessem morrido por acidente ou doença. Contudo, por mais que benefícios incidentais e inesperados possam resultar de crimes, eles são crimes mesmo assim. Em segundo lugar, se o bem frequentemente resulta do mal, o fato inverso, o mal resultar do bem, é igualmente comum. Todo evento, público ou privado, que, lamentado em sua ocorrência, foi declarado providencial mais tarde devido a uma boa consequência imprevista, pode ser acompanhado por um outro evento, julgado feliz na hora, mas que provou-se calamitoso ou fatal a quem aparentava beneficiar. Tais conflitos entre o começo e o fim, ou entre o evento e a expectativa, não são apenas tão frequentes, mas igualmente são notados, nos casos dolorosos como nos agradáveis; mas não há a mesma inclinação a generalizá-los; ou eles não são considerados em todos os eventos pelos modernos (embora fossem pelos antigos) como similarmente uma indicação do propósito divino: os homens satisfazem-se moralizando a natureza imperfeita de nossa previsão, a incerteza dos eventos, e a vaidade das expectativas humanas. O fato simples é que os interesses humanos são tão complicados e os efeitos de qualquer incidente, não importa qualquer que seja, são tão numerosos, que, se isso toca a humanidade absolutamente, sua influência nela é, na grande maioria dos casos, tanto boa quanto má. Se a maior parte dos infortúnios pessoais tem seu lado bom, dificilmente qualquer boa sorte aconteceu alguma vez para alguém que não deu à mesma ou a outra pessoa algo para lamentar: e infelizmente há muitos infortúnios tão esmagadores que seu lado favorável, se existir, é inteiramente eclipsado e feito insignificante; enquanto a afirmação correspondente raramente pode ser feita a respeito de bem-aventuranças. Os efeitos, também, de toda causa, dependem tanto das circunstâncias que acidentalmente acompanham-na que muitos casos são certos para ocorrer nos quais mesmo o resultado total é nitidamente oposto à tendência predominante: e assim não só o mal tem seu lado bom e o bem seu lado mau, mas o bem com frequência produz um excedente de mal e o mal um excedente de bem. Essa, seja como for, não é de jeito nenhum a tendência geral de nenhum fenômeno. Ao contrário, ambos bem e mal naturalmente tendem a frutificar cada um em sua própria classe, bem produzindo bem, e mal, mal. É uma das regras gerais da Natureza, e parte de sua injustiça habitual, que “ao que tem será dado, mas do que não tem será tirado até o que tem”. A tendência ordinária e predominante do bem é em direção a mais bem. Saúde, força, riqueza, conhecimento, virtude, não são apenas bons por si mesmos, mas facilitam e promovem a aquisição de bem, tanto do mesmo como de outros tipos. A pessoa que pode aprender facilmente é quem já sabe bastante: é a pessoa forte e não a doentia quem pode fazer tudo que mais conduz à saúde; aqueles que acham mais fácil ganhar dinheiro não são os pobres, mas os ricos; ao passo que saúde, força, conhecimento, talentos são todos meios de adquirir riquezas, e riquezas são com frequência um meio indispensável de adquiri-los. Outra vez, e converso, não importa o que possa ser dito sobre mal virando bem, a tendência geral do mal é em direção a maior mal. Enfermidades corporais deixam o corpo mais suscetível à doença; produz incapacidade de esforço, às vezes fraqueza da mente, e muitas vezes a perda dos meios de subsistência. Toda dor severa, tanto física como mental, tende a aumentar as suscetibilidades à dor para sempre. Pobreza é parente de mil males físicos e mentais. O que é ainda pior, ser injuriado ou oprimido, quando habitual, reduz o caráter inteiro. Uma má ação leva a outras, tanto do próprio agente, dos espectadores, e dos sofredores. Todas más qualidades são fortalecidas pelo hábito, e todos os vícios e loucuras tendem a se espalharem. Defeitos intelectuais geram defeitos morais, e morais, intelectuais; e todo defeito intelectual ou moral gera outros, e assim por diante sem fim.

Essa classe muito aplaudida de autores, os autores de teologia natural, ouso dizer, perderam inteiramente o seu rumo, e deixaram escapar a única linha de raciocínio que poderia ter feito suas especulações aceitáveis a qualquer um capaz de perceber quando duas proposições se contradizem. Eles esgotaram os recursos de sofisma para fazer parecer que todo o sofrimento no mundo existe para prevenir um maior – que a miséria existe, por medo de que deva haver miséria: uma tese que, caso sempre seja tão bem mantida, poderia apenas auxiliar a explicar e justificar os trabalhos de seres limitados, compelidos ao trabalho sob condições independentes da sua própria vontade; mas não podem ter nenhuma aplicação a um Criador suposto onipotente, que, caso curve-se a uma suposta necessidade, faz ele mesmo a necessidade a que se curva. Se o fabricante do mundo pode tudo o que deseja, ele deseja a miséria, e não existe fuga dessa conclusão. Os mais consistentes daqueles que julgaram-se qualificados para “reivindicar os caminhos de Deus ao homem” esforçaram-se para evitar a alternativa endurecendo seus corações e negando que a miséria é um mal. A bondade de Deus, dizem, não consiste em desejar a felicidade de suas criaturas, mas sua virtude; e o universo, se não é feliz, é um universo justo. Mas, brandindo [sic] as objeções a esse esquema de ética, não se livra da dificuldade de qualquer modo. Se o Criador da humanidade desejou que eles devessem ser todos virtuosos, seus desígnios são tão completamente confusos quanto se ele desejasse que eles devessem ser todos felizes: e a ordem da natureza é construída com ainda menos consideração às exigências da justiça que àqueles da benevolência. Se a lei de toda a criação fosse a justiça e o Criador, onipotente, então, em qualquer quantidade que sofrimento e felicidade pudessem ser distribuídos ao mundo, a quota de cada pessoa seria exatamente proporcional às ações boas ou más daquela pessoa; nenhum ser humano teria uma pior porção que outro, sem piores merecimentos; acidente ou favoritismo não existiriam em tal mundo, mas toda vida humana seria a reprodução de um drama construído como uma perfeita história moral. Ninguém é capaz de cegar a si mesmo do fato que o mundo em que vivemos é totalmente diferente disso; de tal maneira que a necessidade de restabelecer o equilíbrio é considerada um dos argumentos mais fortes para outra vida após a morte, que equivale a uma admissão de que a ordem das coisas nessa vida é com frequência um exemplo de injustiça, não justiça. Se é dito que Deus não leva o suficiente em consideração o prazer e a dor para fazê-los a recompensa ou punição do bom ou do perverso, mas que a virtude é em si mesma o maior bem e o vício o maior mal, então estes pelo menos deveriam ser distribuídos a todos de acordo com o que ele fizeram para merecê-los; em vez disso, todo tipo de depravação moral é herdado por multidões através da fatalidade do seu nascimento; através da falha de seus pais, ou da sociedade, ou de circunstâncias incontroláveis, certamente sem nenhuma falha de si próprios. Nem mesmo na mais distorcida e diferenciada teoria do bem que já foi construída por fanatismo religioso ou filosófico pode o governo da Natureza ser feito para se assemelhar ao trabalho de um ser ao mesmo tempo bom e onipotente.

A única teoria moral da Criação admissível é que o Princípio do Bem não pode subjugar de uma só vez e completamente os poderes do mal, seja físico ou moral; não poderia colocar a humanidade em um mundo livre da necessidade de uma luta incessante com os poderes maléficos, ou fazê-la sempre vitoriosa naquela luta, mas poderia fazer e fez ela capaz de prosseguir na luta com vigor e com sucesso aumentando progressivamente. De todas as explanações religiosas da ordem da natureza, essa por si só não é nem contraditória a si mesma nem aos fatos pelos quais ela tenta explicar. De acordo com isso, o dever do homem consistiria, não em simplesmente tomar conta de seus próprios interesses obedecendo um poder irresistível, mas em se colocar como um auxiliar não ineficaz de um Ser de perfeita beneficência; uma fé que parece muito melhor adaptadapor encorajá-lo ao esforço que uma vaga e inconsistente confiança num Autor do Bem que é suposto ser também o autor do mal. E eu ouso afirmar que tal foi realmente, embora com frequência inconscientemente, a fé de todos que chamaram por força e auxílio dignos por confiarem em uma Providência comandante. Não existe nenhum assunto em que a crença prática dos homens é mais incorretamente indicada pelas palavas que usam para expressá-la que a religião. Muitos derivaram uma confiança vil ao imaginarem-se favoritos de uma Divindade onipotente mas caprichosa e despótica. Mas aqueles que se fortaleceram na bondade confiando no apoio compassivo de um Governador poderoso e bom do mundo, estou convencido, nunca realmente acreditaram ser aquele governador, no sentido estrito do termo, onipotente. Eles sempre salvaram sua bondade em detrimento de seu poder. Eles acreditaram, talvez, que ele poderia, se desejasse, remover todos os espinhos de seu caminho individual, mas não sem causar maior dano a outrem, ou frustrar algum propósito de maior importância para o bem-estar geral. Eles acreditaram que ele poderia fazer qualquer coisa, mas não qualquer combinação de coisas; que seu governo, como o governo humano, foi um sistema de ajustes e compromissos; que o mundo é inevitavelmente imperfeito, ao contrário da sua intenção. E já que o esforço de todo seu poder para fazê-lo tão menos imperfeito quanto possível não deixa-o melhor do que é, eles não podem senão considerar aquele poder, embora vastamente além das estimativas humanas, não meramente finito, mas extremamente limitado mesmo por si próprio. Eles são obrigados, por exemplo, a supor que o melhor que ele poderia fazer por essas criaturas humanas foi fazer uma imensa maioria de todos que já existiram nascer (sem qualquer culpa) patagones, ou esquimós, ou algo tão brutal e degradado, mas dá-los capacidades que, sendo cultivadas por muitos e muitos séculos em labuta e sofrimento, e após muitos dos melhores espécimes da raça terem sacrificado suas vidas pelo propósito, pelo menos permitiram a algumas porções escolhidas da espécie crescer para algo melhor, capaz de ser melhorado ao longo dos séculos em algo realmente bom, de que até agora só existem casos individuais para serem encontrados. É possível acreditar com Platão que a bondade perfeita, limitada e frustrada em toda direção pela rebeldia da matéria, fez isso porque não poderia fazer melhor. Mas que o mesmo Ser perfeitamente sábio e bom teve poder absoluto sobre a matéria, e a fez, por escolha voluntária, o que é; admitir isso pode ser considerado impossível a qualquer um que tenha as noções mais simples de bem e mal morais. Nem pode tal pessoa, qualquer seja o tipo de frases religiosas que use, deixar de acreditar que, se a Natureza e o homem são ambos trabalho de um Ser de perfeita bondade, aquele Ser planejou a Natureza como um esquema a ser alterado, não imitado, pelo homem.

Mas apesar de incapaz de acreditar que a Natureza, como um todo, é a realização dos projetos de uma sabedoria e uma benevolência perfeitas, os homens não renunciam voluntariamente à ideia de que uma parte da Natureza, pelo menos, precisa ser destinada como um modelo, ou um padrão; que em certa porção ou outra dos trabalhos do Criador a imagem das qualidades morais que eles estão acostumados a atribuir a ele precisa estar impressa; que se não tudo que existe, pelo menos algo que existe, precisa não só ser um modelo impecável do que deveria ser, mas precisa ser destinado a ser nosso guia e padrão para retificar o resto. Não lhes basta acreditar que aquilo que tende ao bem é para ser imitado e aperfeiçoado, e o que tende ao mal é para ser corrigido: eles são ansiosos por alguma indicação mais definitiva dos desígnios do Criador; e, estando persuadidos que isso precisa ser encontrado em algum lugar dentro de seus trabalhos, empreendem a perigosa responsabilidade de selecionar e escolher entre eles em busca disso. Uma escolha que, exceto se dirigida pela máxima geral que ele planeja todo o bem e nada do mal, necessariamente deve ser perfeitamente arbitrária; e se ela leva a quaisquer conclusões diferentes das que podem ser deduzidas daquela máxima, precisa ser, exatamente nessa proporção, perniciosa.

Nunca foi estabelecido por qualquer doutrina acreditada que setores particulares da ordem da natureza devessem ser julgados como sendo projetados para nossa instrução e orientação morais; e de acordo com as predileções individuais de cada pessoa, ou conveniência momentânea, decidiram a que partes do governo divino as conclusões práticas que ele era desejoso em estabelecer devem ser recomendadas à aprovação como sendo análogas. Uma tal recomendação precisa ser tão falaciosa quanto qualquer outra, pois é impossível decidir que certos dentre os trabalhos do Criador são mais verdadeiramente expressões do seu caráter que o resto; e a única seleção que não leva a resultados imorais é a seleção daqueles que mais conduzem ao bem geral – em outras palavras, daqueles que apontam para um fim que, se o esquema inteiro é a expressão de uma única vontade onipotente e consistente, evidentemente não é o fim pretendido por ela.

Existe, contudo, um elemento particular na construção do mundo que, para mentes à procura de indicações especiais da vontade do Criador, apareceu, não sem plausibilidade, peculiarmente ajustado para apoiá-las; ou seja, os impulsos ativos de humanos e outros seres animados. Pode-se imaginar tais pessoas argumentando que, quando o Autor da Natureza fez apenas circunstâncias, ele pode não ter pretendido indicar a maneira na qual suas criaturas racionais deviam se ajustar àquelas circunstâncias; mas que quando ele implantou estímulos positivos nas próprias criaturas, incitando-as a um particular tipo de ação, é impossível duvidar que ele pretendeu essa espécie de ação para ser praticado por elas. Esse raciocínio, seguido consistentemente, levaria à conclusão que a Divindade pretendeu, e aprova, o que quer que os seres humanos façam; sendo tudo que fazem a consequência de um dos impulsos com que seu Criador deve tê-los dotado, tudo deve igualmente ser considerado como feito em obediência à sua vontade. Como essa conclusão prática foi desprezada, foi necessário fazer uma distinção, e pronunciar que não o todo, mas só partes da natureza ativa da humanidade apontam uma intenção especial do Criador a respeito da sua conduta. Essas partes, pareceu natural supor, devem ser aquelas em que a mão do Criador está manifestada em vez da do homem; e por isso a frequente antítese entre homem como Deus o fez e homem como ele fez a si mesmo. Já que o que é feito com deliberação parece mais o ato do próprio homem, e ele fica mais completamente responsável por isso que pelo que faz de súbito impulso, a parte refletida da conduta humana é apta a ser considerada a parte do homem no negócio, e a imprudente como a parte de Deus. O resultado é o estilo de sentimento tão comum no mundo moderno (embora desconhecido aos filósofos antigos) que exalta o instinto às custas da razão; uma aberração tornada ainda mais maliciosa pela opinião comumente mantida em conjunto consigo, de que todo, ou quase todo, sentimento ou impulso que atua prontamente sem esperar para fazer perguntas é um instinto. Assim quase toda variedade de impulso irrefletido e espontâneo recebe um tipo de consagração, exceto aqueles que, embora irrefletidos no momento, devem sua origem a hábitos anteriores de reflexão: esses, sendo evidentemente não instintivos, não recebem a benevolência concedida ao resto; de modo que todos impulsos irrefletidos são vestidos com autoridade sobre a razão, exceto os únicos que mais provavelmente estão certos. Não quero dizer, é claro, que esse modo de julgamento seja sequer fingido ser consistentemente executado: a vida não poderia seguir se não fosse admitido que impulsos devem ser controlados, e que a razão deve governar nossas ações. A pretensão não é retirar a Razão do comando, mas sim prendê-la com artefatos para que conduza apenas de um modo particular. O Instinto não deve governar, mas a razão deve praticar uma quantia vaga e intransferível de deferência ao Instinto. Apesar da impressão em favor do instinto como sendo uma manifestação peculiar dos propósitos divinos não ter sido lançado com a forma de uma teoria geral consistente, ela continua sendo um preconceito permanente, capaz de ser incitado em hostilidade à razão em qualquer caso em que o ditame da faculdade racional não adquiriu a autoridade de prescrição.

Não devo aqui entrar na difícil questão psicológica, o que são ou não são instintos: o assunto requiriria um volume para si. Sem tocar em qualquer ponto teórico disputado, é possível julgar quão pouco digna é a parte instintiva da natureza humana de ser sustentada como sua principal excelência, como a parte em que a mão da bondade e da sabedoria infinitas é peculiarmente visível. Permitindo a tudo ser um instinto que ninguém nunca afirmou sê-lo, permanece verdade que quase todo atributo respeitável da humanidade é o resultado não do instinto, mas de uma vitória sobre o instinto; e que há dificilmente qualquer coisa valiosa no homem natural exceto capacidades – um mundo inteiro de possibilidades, todas elas dependente de disciplina eminentemente artificial para serem realizadas.

É apenas numa condição altamente artificializada da natureza humana que cresceu a noção, ou, acredito, alguma vez poderia ter crescido, de que a bondade era natural: porque só após um longo caminho de educação artificial os bons sentimentos se tornaram tão habituais, e tão predominantes sobre os maus, para surgirem espontaneamente quando a ocasião chamasse por eles. Nos tempos em que a humanidade estava próxima ao seu estado natural, observadores cultos consideraram o homem natural como uma espécie de animal selvagem, distinguido principalmente por ser mais astuto que as outras bestas do campo; e todo valor de caráter foi considerado o resultado de uma espécie de domesticação; uma frase aplicada com frequência pelos filósofos antigos para a disciplina apropriada dos seres humanos. A verdade é que há dificilmente um único ponto de excelência pertencente ao caráter humano que não seja decididamente repugnante aos sentimentos incultos da natureza humana.

Se há uma virtude que esperamos encontrar mais que qualquer outra, e realmente encontramos, num estado não civilizado, é a virtude da coragem. Ainda essa é do início ao fim uma vitória alcançada sobre uma das emoções mais poderosas da natureza humana. Se há qualquer sentimento ou atributo mais natural que todos os outros para seres humanos, é o medo; e não pode ser dada maior prova do poder da disciplina artificial que a conquista que em todos os tempos e lugares ela mostrou-se capaz de alcançar sobre um sentimento tão poderoso e tão universal. Sem dúvida, existe a diferença mais ampla entre um ser humano e outro na facilidade ou dificuldade com que eles adquirem essa virtude. Dificilmente existe qualquer setor da excelência humana em que a diferença de temperamento original vai tão longe. Mas pode justamente ser questionado se qualquer ser humano é naturalmente corajoso. Muitos são naturalmente combativos, ou irritáveis, ou apaixonados, e essas paixões quando fortemente excitadas podem torná-los insensíveis ao medo. Mas tire a emoção conflitante, e o medo reafirma seu domínio: a coragem consistente é sempre o efeito do cultivo. A coragem que é ocasionalmente, embora de jeito nenhum geralmente, encontrada entre tribos de selvagens é tanto o resultado da educação como aquela dos espartanos ou romanos. Em todas tais tribos existe uma direção mais enfática do sentimento público para toda forma de expressão através da qual a honra pode ser paga à coragem e a covardia sustentada até o desprezo e o escárnio. Talvez seja dito que, como as expressões de um sentimento implicam o próprio sentimento, o treinamento dos jovens para a coragem pressupõe um povo originalmente corajoso. Pressupõe apenas o que todos bons costumes pressupõem – que precisa haver indivíduos, melhores que o resto, que estabelecem os costumes vigentes. Uns indivíduos, que como as outras pessoas tiveram medos a conquistar, devem ter tido força de mente e vontade de conquistá-los por si mesmos. Esses obteriam a influência pertencente a heróis, pois aquilo que é ao mesmo tempo surpreendente e obviamente útil nunca deixa de ser admirado: e em parte por essa admiração, em parte pelo medo que eles mesmos excitam, obteriam o poder de legisladores, e poderiam estabelecer quaisquer costumes que lhes contentassem.

Deixe-nos a seguir considerar uma qualidade que forma a mais visível e uma das mais radicais das distinções entre seres humanos e a maioria dos animais inferiores; aquela cuja ausência, mais que qualquer outra coisa, torna os homens bestiais – a qualidade da limpeza. Pode algo ser mais inteiramente artificial? Crianças, e as classes inferiores de muitos países, parecem ser realmente afeiçoados pela sujeira. A vasta maioria da raça humana é indiferente a ela: nações inteiras de seres humanos que caso contrário seriam civilizados e cultos toleram-na em uma de suas piores formas, e apenas uma minoria muito pequena é ofendida consistentemente por ela. De fato, a lei universal desse assunto parece ser que a sujeira ofende só aqueles a quem ela é estranha, de modo que aqueles que viveram em um estado tão artificial como não ser acostumado a ela de nenhuma forma são as únicas pessoas que ela repugna em todas as formas. De todas as virtudes essa é mais evidentemente não instintiva, mas um triunfo sobre o instinto. Seguramente nem a limpeza, nem o amor pela limpeza são naturais ao homem, mas só a capacidade de adquirir um amor pela limpeza.

Nossos exemplos até agora foram tomados das virtudes pessoais, ou, como são chamadas por Bentham, virtudes auto-relativas, porque essas, se for o caso, podem ser supostas ser agradáveis mesmo à mente inculta. Das virtudes sociais é quase supérfluo falar, tão completamente é o veredito de toda experiência que o egoísmo é natural. Com isso eu não pretendo de modo algum negar que a solidariedade também é natural; acredito, ao contrário, que nesse importante fato reside a possibilidade de qualquer cultivo da bondade e da nobreza, e a esperança em toda supremacia final. Mas os caráteres solidários, deixados incultos e abandonados aos seus instintos solidários são tão egoístas quanto os outros. A diferença está no tipo de egoísmo: o deles não é solitário mas sim solidário; l’egoisme à deux, à trois, or à quatre;e eles podem ser muito amáveis e encantadoresàqueles com quem simpatizam, e grosseiramente injustos e insensíveis com o resto do mundo. De fato, os sistemas nervosos mais finos que são mais capazes de e mais requerem solidariedade tem, por sua delicadeza, tantos impulsos mais fortes de todas as espécies que eles frequentemente fornecem os exemplos mais marcantes de egoismo, embora de um tipo menos repulsivo que o de naturezas mais frias. Se alguma vez houve uma pessoa em quem, aparte de todo ensino de professores, amigos ou livros, e de toda auto-modelagem conforme um ideal, a benevolência natural foi um atributo mais poderoso que o egoísmo em qualquer de suas formas, pode permanecer incerto. Que tais casos são extremamente raros todo mundo deve admitir, e isso é suficiente para o argumento.

Mas (para não falar mais do autocontrole para o benefício dos outros) o autocontrole mais comum para seu próprio benefício – aquele poder de sacrificar um desejo presente a um objetivo distante ou um propósito geral que é indispensável para fazer as ações do indivíduo concordarem com suas próprias noções do seu bem individual; mesmo esse é muitíssimo antinatural ao ser humano indisciplinado: como pode ser visto pela longa aprendizagem que crianças gastam com ele; a própria maneira em que é adquirido por pessoas nascidas para o poder, cuja vontade raramente é resistida, e por todos que foram precocemente e muito favorecidos; e a ausência dessa qualidade marcada em selvagens, soldados e marinheiros, e em um grau um pouco menor em quase a totalidade das classes pobres nesse e em muitos outros países. A principal diferença, no ponto em questão, entre essa virtude e outras, é que apesar de, como elas, ela requirir um caminho de ensinamento, é mais suscetível que a maioria delas de ser aprendida por si. É trivial o axioma que autocontrole só é aprendido pela experiência; e esse dom é só assim muito mais próximo de ser natural que os outros de que falamos, na medida que a experiência pessoal, sem inculcação externa, tem uma certa tendência de gerá-lo. A natureza não outorga por si mesma essa, mais que as outras virtudes; mas a natureza frequentemente administra as recompensas e punições que cultivam-na, e que em outros casos têm de ser criadas artificialmente para o propósito expresso.

A veracidade pode parecer, de todas as virtudes, ter o apelo mais plausível de ser natural, já que na ausência de motivos para o contrário, a fala normalmente obedece ao fato, ou pelo menos não se desvia intencionalmente dele. Portanto, essa é a virtude com que escritores como Rousseau se deliciam em decorar a vida selvagem, e colocam-na em vantajoso contaste com a traição e a trapaça da civilização. Infelizmente essa é uma mera fantasia imaginária, contradita por todas as realidades da vida selvagem. Selvagens são sempre mentirosos. Eles não têm a mais fraca noção de não trair, como de não ferir de alguma outra maneira, as pessoas feridas a quem estão ligados por algum laço especial de obrigação; seu chefe, seu hóspede, talvez, ou seu amigo: sendo esses sentimentos de obrigação a moralidade ensinada do estado selvagem, crescendo fora de suas circunstâncias características. Mas de qualquer ponto de honra a respeito da causa da verdade pela verdade, eles não têm a ideia mais remota; não mais que o Ocidente inteiro e a maior parte da Europa; e nos poucos países que são aperfeiçoados o suficiente para ter tal ponto de honra, ele está confinado a uma pequena minoria, que o pratica sozinha, sob quaisquer circunstâncias de verdadeira tentação.

Do uso geral da expressão “justiça natural”, deve presumir-se que a justiça é uma virtude geralmente considerada como sendo diretamente implementada pela Natureza. Acredito, contudo, que o sentimento de justiça é inteiramente de origem artificial; a ideia de justiça natural não precedendo mas seguindo a de justiça convencional. Quanto mais distante olharmos de volta aos primitivos modos de pensar da raça humana, se considerarmos os velhos tempos (incluindo aqueles do Velho Testamento) ou as porções da humanidade que ainda estão numa condição não mais avançada que a dos velhos tempos, tão mais completamente achamos as noções dos homens de justiça definidas e limitadas pela designação expressa da lei. Os direitos legítimos de um homem significam os direitos que a lei deu a ele: um homem justo era aquele que nunca infringiu, nem tentou infringir, a propriedade legal ou outros direitos legais dos outros. A noção de uma justiça superior, a que as próprias leis são submissas, e pela qual a consciência é limitada sem uma prescrição positiva da lei, é uma extensão posterior da ideia, sugerida pela justiça legal, e seguindo a analogia dela, à qual ela mantém uma direção paralela através de todos os tons e variedades do sentimento e da qual toma emprestada quase a totalidade de sua fraseologia. As próprias palavras justus e justitia são derivadas de jus, lei. Cortes de justiça, administração da justiça, sempre significam os tribunais.

Se for dito que deve haver os embriões de todas essas virtudes na natureza humana, de outra forma a humanidade seria incapaz de adquiri-las, estou pronto, com uma certa quantidade de explicações, a admitir o fato. Mas as ervas daninhas que disputam a terra com esses embriões benéficos são elas próprias não embriões, mas tumores espessos e exuberantes, e iriam, em todos exceto um caso entre mil, sufocar e destruir os primeiros, não fosse tão forte o interesse da humanidade em nutrir os bons germes uns nos outros, que eles sempre fazem assim, na medida em que seu grau de inteligência (nesse e em outras circunstâncias ainda muito imperfeito) permite. É através desse incentivo iniciado cedo, e não contrariado por influências desfavoráveis, que, em alguns exemplares felizmente circunstanciados da raça humana, os sentimentos mais elevados de que a humanidade é capaz tornam-se uma segunda natureza, mais forte que a primeira, e sem subjugar a natureza original ou fundi-la em si mesma. Mesmo aqueles organismos talentosos que atingiram perfeição análoga pela autodidática devem isso essencialmente à mesma causa; como a autodidática seria possível sem ajuda do sentimento geral da humanidade fornecida através de livros, e da contemplação dos caráteres exaltados, reais ou ideais? Essa natureza dos melhores e mais nobres seres humanos criada artificialmente, ou pelo menos aperfeiçoada artificialmente, é a única natureza que é louvável seguir. É quase supérfluo dizer que mesmo essa não pode ser erguida num padrão de conduta, já que é por si o fruto de um treinamento e cultura cuja escolha, se racional e não acidental, deve ter sido determinada por um padrão já escolhido.

Essa breve pesquisa é amplamente suficiente para provar que o dever do homem é o mesmo para sua própria natureza que para a natureza de todas as outras coisas – nomeadamente, não seguir mas corrigi-la. Algumas pessoas, todavia, que não tentam negar que o instinto deve ser subordinado à razão, prestam deferência à Natureza como para manter que toda inclinação natural deve ter um campo de ação que lhe foi concedido, alguma abertura deixada para sua satisfação. Todos desejos naturais, dizem, devem ter sido implantados por um propósito: e esse argumento é levado tão longe que ouvimo-lo com frequência sustentar que todo desejo que é supostamente natural acolher deve ter uma provisão correspondente na ordem do universo para sua satisfação; de modo que (por exemplo) o desejo de uma continuação indefinida da existência é aceitado por muitos como uma prova suficiente por si mesma da realidade da vida futura.

Eu concebo que há um absurdo radical em todas essas tentativas de descobrir, em detalhe, quais são os planos da Providência, a fim de ajudar a Providência a realizá-los, quando forem descobertos. Aqueles que argumentam, por indicações particulares, que a Providência pretende isso ou aquilo, ou acreditam que o criador pode fazer tudo o que deseja ou que não pode. Se a primeira suposição é adotada – se a Providência é onipotente, a Providência deseja o que quer que aconteça, e o fato do seu acontecimento prova que a providência o deseja. Se assim, tudo que um ser humano pode fazer é predestinado pela Providência e é um cumprimento de seus planos. Mas se, como é a teoria mais religiosa, a Providência deseja não tudo o que acontece, mas só o que é bom, então realmente o homem tem em seu poder, por suas ações voluntárias, auxiliar as intenções da Providência; mas ele só pode aprender essas intenções considerando quais tendem a promover o bem geral, e não a quais o homem tem uma inclinação natural; visto que, limitado como, nessa manifestação, o poder divino deve ser, por obstáculos impenetráveis mas insuperáveis, quem sabe o homem poderia ter sido criado sem desejos que nunca possam ser, e mesmo que nunca deveriam ser, cumpridos? As inclinações com que o homem foi dotado, bem como qualquer das outras sugestões que observamos na Natureza, podem ser a expressão não da vontade divina, mas dos grilhões que impedem sua livre ação; e tomar dicas destes como guia de nossa própria conduta pode ser cair numa armadilha deixada pelo inimigo. A hipótese que tudo que a infinita bondade pode desejar realmente vem a acontecer nesse universo, ou, pelo menos, que nunca devemos dizer ou supor que não, é digna só daqueles cujo medo servil os faz oferecer a homenagem de mentiras a um Ser que, eles declaram pensar, é incapaz de ser enganado e abomina toda a falsidade.

A respeito dessa hipótese particular, que todos impulsos naturais, todas tendências universais e espontâneas o suficiente para serem capazes de passar por instintos, devem existir por bons objetivos, e deveriam ser só regulados, não reprimidos; esta é certamente verdadeira da maioria deles, pois as espécies não poderiam ter continuado a existir exceto se a maioria das suas inclinações fossem dirigidas a coisas necessárias ou úteis à sua preservação. Mas exceto se os instintos puderem ser reduzidos a um número muito pequeno da fato, deve ser admitido que temos também maus instintos, que deveria ser o alvo da educação não simplesmente regular, mas extirpar, ou de preferência (o que pode ser feito mesmo a um instinto) matar pelo desuso. Aqueles que são inclinados a multiplicar o número de instintos, normalmente incluem entre eles um que podem chamar destrutividade: um instinto de destruir pelo amor à destruição. Eu não posso conceber nenhuma boa razão para preservar isso, mais que outra tendência que, se não um instinto, é muito semelhante a um – o que foi chamado o instinto da dominação; um prazer em exercer o despotismo, em ter outros seres em submissão à nossa vontade. O homem que tem prazer no mero exercício da autoridade, aparte do propósito pelo qual deve ser empregada, é a última pessoas em cujas mãos alguém confiaria voluntariamente. Novamente, há pessoas que são cruéis pelo caráter, ou, como se diz, naturalmente cruéis; que têm um prazer real em infligir, ou ver a inflição de dor. Esse tipo de crueldade não é mera dureza de coração, ausência de piedade ou remorsos; é uma coisa positiva; um tipo particular de excitação voluptuosa. O Ocidente e a Europa Meridional deram, e provavelmente ainda dão, abundantes exemplos dessa tendência odiosa. Suponho que será admitido que essa não é uma das inclinações naturais que seria errado suprimir. A única questão seria se não é um dever suprimir o próprio homem junto com ela.

Mas mesmo se fosse verdade que cada um dos impulsos elementares da natureza humana tem seu lado bom, e pode ser mais útil que danoso por uma quantidade suficiente de treinamento artificial; quão pouco isso alcançaria, quando deve em qualquer caso ser admitido que sem tal treinamento todos eles, mesmo aqueles que são necessários à nossa preservação, encheriam o mundo com miséria, dando à vida humana uma semelhança exagerada com a odiosa cena de violência e tirania que é exibida pelo resto do reino animal, exceto quando domesticado e disciplinado pelo homem. Aí, de fato, aqueles que lisonjeiam a si mesmos com a noção de ler os propósitos do Criador em seus trabalhos deveriam com consistência ter visto fundamentos para as inferências a partir das quais eles se esquivaram. Se há absolutamente quaisquer marcas de um plano especial na criação, umas das coisas mais evidentemente planejadas é que uma grande proporção de todos os animais deve passar sua existência atormentando e devorando outros animais. Eles foram ricamente equipados com os instrumentos necessários para esse propósito; seus instintos mais fortes impelem-nos a isso e vários deles parecem ter sido construídos incapazes de sustentarem-se por qualquer outra alimentação. Se uma décima parte das dores que foram gastas em encontrar adaptações benevolentes em toda natureza tivessem sido empregadas em coletar evidências para difamar o caráter do Criador, que oportunidade para criticar não teria sido encontrada na existência inteira dos animais inferiores, divididos, raramente com alguma exceção, em devoradores e devorados, e de uma presa com mil males dos quais lhe são negadas as faculdades necessárias para se proteger. Se não somos obrigados a acreditar que a criação animal seja um trabalho de um demônio, é porque não precisamos supô-la ter sido feita por um Ser de poder infinito. Mas se a imitação da vontade do Criador como revelada na natureza fosse aplicada como uma regra de ação nesse caso, as monstruosidades mais atrozes dos piores homens estariam mais que justificadas pela aparente intenção da Providência que por toda a natureza animada o forte deve cair sobre o fraco.

As observações anteriores estão longe de ter esgotado a variedade quase infinita de modos e ocasiões em que a ideia de conformidade à natureza é introduzida como um elemento na apreciação ética de ações e disposições. Os mesmos preconceitos favoráveis seguem a palavra “natureza” nas numerosas acepções em que é empregada com um termo distintivo para certas partes da estrutura da humanidade contrastadas com outras partes. Temos até agora limitado-nos a uma dessas acepções, na qual sustenta uma designação geral para aquelas partes de nossa constituição mental e moral que são supostas como sendo inatas, em oposição àquelas que são adquiridas; como quando natureza é contrastada com educação; ou quando um estado selvagem, sem leis, artes, ou conhecimento, é chamado o estado de natureza; ou quando é questionado se benevolência, ou o sentimento moral, é natural ou adquirido; ou quando algumas pessoas são poetas ou oradores por natureza e outras não. Mas, em outro sentido mais flexível, quaisquer manifestações por seres humanos são frequentemente denominadas naturais quando pretende-se meramente dizer que elas não são estudadas ou assumidas intencionalmente num caso particular; como quando diz-se que uma pessoa move-se ou fala com graça natural; ou quando é dito que a maneira ou caráter natural de uma pessoa é isso e aquilo; querendo dizer que isso é assim quando ela não tenta controlar ou disfarçar isso. Numa acepção ainda mais ampla, diz-se que uma pessoa é naturalmente aquilo que ela era até alguma causa especial agir sobre ela, ou que é suposto que ela seria se tal causa fosse retirada. Assim diz-se que uma pessoa é naturalmente estúpida, mas fez-se inteligente pelo estudo e perseverança; que é naturalmente alegre, mas amargada pela desgraça; naturalmente ambiciosa, mas reprimida pela falta de oportunidade. Finalmente, a palavra “natural”, aplicada a sentimentos ou conduta, frequentemente parece significar não mais que eles são tal como são normalmente encontrados em seres humanos; como quando é dito que uma pessoa agiu, numa ocasião particular, como era natural fazer; ou que ser afetado numa forma particular por uma visão, ou som, ou pensamento, ou incidente na vida, é perfeitamente natural.

Em todos esses sentidos do termo, a qualidade chamada natural é muitas vezes reconhecidamente uma pior qualidade que aquela contrastada a si; mas sempre que isso é assim não é tão óbvio para ser questionado, parecer ser entretida a ideia que ao descrever algo como natural foi dita alguma coisa equivalente a uma presunção considerável em seu favor. De minha parte, posso perceber só um sentido em que natureza, ou naturalidade, num ser humano, é realmente um termo de elogio; e então o elogio é apenas negativo – nomeadamente, quando usada para denotar a ausência de afetação. Afetação pode ser definida como o esforço para aparentar o que não se é, quando o motivo ou a ocasião não é tal ou para desculpar a tentativa ou para carimbá-la com o nome mais odioso de hipocrisia. Deve ser acrescentado que com frequência tenta-se praticar o engano no próprio enganador assim como em outros; imita os sinais externos de qualidades que gostaria de ter, na esperança de persuadir-se que as tem. Tanto na forma de engano como de autoengano, ou de algo pairando entre os dois, a afetação é muito certamente considerada uma censura, e naturalidade, entendida como o inverso de afetação, um mérito. Mas um termo mais apropriado para expressar essa estimável qualidade seria sinceridade: um termo que caiu de seu significado original elevado, e popularmente denota só um ramo subordinado da principal virtude que uma vez designou como um todo.

Algumas vezes também, em casos onde o termo “afetação” seria inapropriado, já que a conduta ou comportamento abordado é realmente louvável, dizem, em menosprezo à pessoa em questão, que tal conduta ou comportamento não é natural a ela; e fazem comparações descorteses entre ela e uma outra pessoa, a quem é natural: querendo dizer que o que numa pareceu excelente foi o efeito de uma excitação temporária, ou de uma grande vitória contra si mesma, quando na outra é o resultado a ser esperado do caráter habitual. Esse modo de falar não está aberto à censura, já que natureza é aqui simplesmente um termo para a disposição comum da pessoa, e se ela é elogiada não é por ser natural, mas por ser naturalmente boa.

Conformidade à natureza não tem nenhuma conexão com certo nem com errado. A ideia nunca pode ser adequadamente introduzida de qualquer modo em discussões éticas. Exceto, ocasionalmente e parcialmente, na questão de graus de culpabilidade. Para ilustrar esse ponto, consideremos a frase pela qual a maior intensidade de sentimento condenatório é transmitida em conexão com a ideia de natureza – a palavra “antinatural”. Que uma coisa é antinatural, em qualquer significado preciso que possa ser ligado à palavra, não é um argumento para sua essência condenável; visto que as ações mais criminosas são para um ser como o homem não mais antinaturais que a maioria das virtudes. A aquisição da virtude tem em todos os tempos sido considerada um trabalho de labor e dificuldade, enquanto o descensus Averni[10], ao contrário, é de proverbial facilidade; e seguramente requer na maioria das pessoas uma conquista maior sobre um maior número de inclinações naturais para se tornar eminentemente virtuosa em vez de transcendentemente perversa. Mas se uma ação, ou uma tendência, foi decidida ser por outros motivos condenável, pode ser uma circunstância agravante que é antinatural – isto é, repugnante a algum sentimento forte normalmente encontrado em seres humanos; já que a inclinação má, qualquer que seja, concedeu evidência de ser tanto forte quanto profundamente enraizada, por ter superado aquela repugnância. Essa presunção, é claro, falha se o indivíduo nunca teve a repugnância; e o argumento, portanto, não é apto para ser exortado a menos que o sentimento que é violado pelo ato seja não apenas justificável e racional, mas tal que seja culpável estar sem.

O apelo correspondente a atenuação de uma ação culpável porque ela foi natural, ou porque foi induzida por um sentimento natural, nunca, acredito, deveria ser admitida. Há dificilmente uma má ação já cometida que não seja perfeitamente natural, e os motivos que não sejam sentimentos perfeitamente naturais. Ao olho da razão, portanto, isso não é uma desculpa, mas é bastante “natural” que deva ser assim aos olhos da multidão; porque o significado da expressão é que têm uma simpatia pelo ofensor. Quando dizem que algo que não podem deixar de admitir condenável é, entretanto, natural, querem dizer que podem imaginar a possibilidade de serem eles mesmos tentados a cometê-lo. A maioria das pessoas tem uma considerável quantidade de indulgência para todos atos dos quais elas sentem uma possível fonte dentro de si mesmas, reservando seu rigor àqueles que, embora talvez realmente menos maus, elas não conseguem de nenhuma maneira entender como é possível cometer. Se uma ação os convence (o que frequentemente faz por motivos muito inadequados) que a pessoa que a faz deve ser um ser totalmente diferente delas próprias, são raramente minuciosos em examinar o grau preciso de culpa devido a ela, ou mesmo se a culpa é apropriadamente devido a ela. Medem o grau de culpa pela força de sua antipatia; e por isso diferenças de opinião, e mesmo diferenças de gosto, tem sido objetos de tão intensa aversão moral quanto os crimes mais atrozes.

Será útil resumir em poucas palavras as principais conclusões desse ensaio.

A palavra “natureza” tem dois significados principais: ou denota o sistema inteiro das coisas, com os conjuntos de todas suas propriedades, ou denota coisas como elas seriam aparte da intervenção humana.

No primeiro desses sentidos, a doutrina que o homem deve seguir a natureza é sem sentido; já que o homem não tem poder de fazer qualquer coisa além de seguir a natureza; todas suas ações são feitas através de, e em obediência a, uma ou várias das leis físicas ou mentais da natureza.

No outro sentido do termo, a doutrina que o homem deve seguir a natureza, ou, em outras palavras, deve fazer do curso espontâneo das coisas o modelo de suas ações voluntárias, é igualmente irracional e imoral.

Irracional, porque toda ação humana qualquer que seja consiste em alterar, e todas as ações úteis em melhorar, o curso espontâneo da natureza.

Imoral, porque o curso dos fenômenos naturais sendo repleto de tudo que quando cometido por seres humanos é mais digno de repulsa, qualquer um que tentasse em suas ações imitar o curso natural das coisas seria universalmente visto e reconhecido como o mais perverso dos homens.

O arranjo da Natureza, considerado em toda sua extensão, não pode ter tido, por seu único ou mesmo principal objetivo, o bem de humanos ou outros seres sencientes. O que ele traz de bom a eles é na maioria o resultado de seus próprios esforços. Tudo o que, na natureza, dá indicação de um plano beneficente prova que essa beneficência é armada apenas com limitado poder; e o dever do homem é cooperar com os poderes beneficentes, não imitando, mas perpetuamente esforçando-se para corrigir o curso da natureza – e trazendo a parte sobre a qual podemos exercer controle mais de perto em conformidade com um elevado padrão de justiça e bondade.

Notas

[1] O método socrático consiste em uma técnica de investigação filosófica feita em diálogo que consiste em conduzir a um processo de reflexão e descoberta dos próprios valores do interlocutor. Para isso se faz uso de perguntas simples e quase ingênuas que têm por objetivo, em primeiro lugar, revelar as contradições presentes na forma de pensar. (N.T.)

[2] Do grego, “sobre a natureza”. (N.T.)

[3] O universal é um conceito filosófico que diz que existe algo que é partilhado por objetos particulares diferentes. Por exemplo, a circularidade é um universal que todas as coisas que são circulares partilham. (N.T)

[4] Seguir a natureza. (N.T.)

[5] “Direito natural é aquele que a natureza ensinou a todos os animais”. (N.T.).

[6] Crime proibido. (N.T.)

[7] Alexander Pope, poeta britânico do século XVIII. (N.T.)

[8] Tipo de execuções por afogamento. (N.T.)

[9] Família nobre hispano italiana conhecida por acusações de envenenamento e outros crimes. (N.T.)

[10] Referência a Eneida de Virgílio, onde Avernus é um lago profundo considerado como uma entrada para o submundo. (N.T.)

Título original: On Nature, em Nature, The Utility of Religion, and Theism, London: Longmans, Green, Reader, and Dyer, 1874, fac-símile disponível em: https://archive.org/details/a592828200milluoft1874. Texto original também disponível em: http://www.lancaster.ac.uk/users/philosophy/texts/mill_on.htm.Por John Stuart Mill / Tradução de Ricardo Torres

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