Sofrimento distante e a abordagem relacional à ética animal – Parte I

Sofrimento distante e a abordagem relacional à ética animal – Parte I

Um dos preconceitos mais enraizados na nossa tradição moral é a ideia segundo a qual a distância delimita as fronteiras da consideração moral. Isto é, enquanto temos a obrigação de ajudar alguém em necessidade que se encontra perto de nós, não temos tal obrigação para com aqueles em circunstâncias similares, em lugares distantes. Teóricos como Peter Singer (1972), Peter Unger (1996) e Shelly Kagan (1989), disputaram esta ideia defendendo que os interesses de estranhos devem contar tanto como os interesses de amigos ou compatriotas. A obrigação moral de ajudar os outros com base na proximidade relacional compromete-nos com diferenciações morais injustificadas entre indivíduos. Interesses iguais devem ser igualmente considerados.

Apesar das dificuldades da abordagem relacional à moralidade, existem ainda alguns defensores desta posição no seio da ética animal. Por exemplo, recentemente, Clare Palmer (2010) defende que a inexistência de certo tipo de relações com os animais distantes (i.e. animais selvagens), justifica a intuição de obrigações diferenciadas de prestar assistência ou ajuda aos animais que se encontram em necessidade.

Consideremos um dos casos que a autora analisa. Em Amersham, Buckinghamshire, agentes da Real Sociedade para a Prevenção da Crueldade com os Animais encontraram 114 cavalos abandonados pelos seus donos, sofrendo de inanição, desidratação e infeções várias, 32 dos quais foram encontrados já mortos. A reação generalizada a esta situação, considerado o pior caso de negligência animal alguma vez registado no Reino Unido, foi fazer todo o possível para ajudar os cavalos e aliviar o seu sofrimento. Seria errado deixá-los sofrer e morrer, uma vez que podíamos ajudá-los? Parece claro que sim. Mas se este é o caso, deveríamos, então, assistir todos os animais que se encontram em necessidade? Por exemplo, os animais que vivem na natureza?

Os animais selvagens sofrem de forma sistemática ao longo das suas vidas e morrem frequentemente, de forma prematura, por causas naturais. Por exemplo, todos os anos, há um afogamento massivo de gnus no trajeto migratório da Tanzânia para o Quénia. Para chegar ao destino, aproximadamente um milhão de gnus tem que atravessar o Rio Mara, famoso pelas fortes correntes e densidade de crocodilos. Mais de dez mil gnus não chegam à outra margem, vítimas de afogamento e predação. Caso estivesse em nosso poder fazê-lo, deveríamos intervir de modo a prevenir que tal acontecesse?

Em ambos casos (cavalos e gnus), está em jogo o sofrimento e a morte de animais. Contudo, tendemos a acreditar que enquanto estaríamos obrigados a ajudar os cavalos no primeiro caso, não deveríamos intervir para ajudar os gnus. A maioria das pessoas pensa que o que se passa na natureza não é da sua conta, em termos morais. Mas estará a diferença de resposta a estes casos moralmente justificada?

De acordo com alguns autores, como Palmer, esta intuição de diferentes obrigações face aos animais em necessidade, a que chamam “intuição laissez-faire”, parece ser uma resposta adequada ao que devemos aos animais. O que é necessário, dizem, é uma abordagem relacional a este problema, tal que a resposta à pergunta de se temos obrigações de ajudar animais em necessidade irá depender do contexto. O sofrimento animal (não causado diretamente pelo ser humano) é da nossa conta se, e apenas se, estamos causalmente relacionados com a situação particular de vulnerabilidade ou dependência na qual se encontram os animais (por exemplo, os animais domésticos). Se isto é certo, então, temos razões para prevenir ou aliviar o sofrimento dos cavalos, mas não deveríamos, mesmo que pudéssemos, assistir os gnus. Isto é assim porque os cavalos (e todos os animais domésticos) foram afetados negativamente pela ação humana do passado: pusemo-los numa situação de vulnerabilidade e dependência. Isto faz de nós causalmente responsáveis pelos danos que sofrem e, portanto, devendo-lhes a assistência correspondente. Pelo contrário, no que diz respeito aos gnus, estes não se encontram numa situação de vulnerabilidade e/ou dependência face aos humanos. Estão numa “zona de não contato”, pelo que não mantêm relações moralmente relevantes connosco. Portanto, segundo a abordagem relacional, não temos qualquer obrigação moral de ajudá-los.

Consequências inaceitáveis

Sendo certo que esta abordagem acomoda, como dissemos antes, certas intuições enraizadas na nossa tradição moral, se aceitarmos o argumento anterior somos levados a aceitar também a implicação altamente contraintuitiva de que não temos a obrigação moral de assistir seres humanos com quem não mantemos relações do tipo indicado. Isto parece particularmente inaceitável se considerarmos o caso de seres humanos em necessidade por causas naturais, em lugares distantes, tais como aqueles afectados por inanição ou outros desastres naturais (terramotos, tsunamis, etc.), com quem é certo que não estamos envolvidos em qualquer tipo de relação. Contudo, a maioria das pessoas estaria de acordo em que, sempre que estiver ao nosso alcance, devemos ajudar estes indivíduos.

Os proponentes de uma ética animal relacional estão conscientes desta implicação indesejada e procuraram resolvê-la de diferentes formas. Contudo, como se verá na segunda parte deste artigo, só há duas saídas possíveis a este problema: aceitar que não temos obrigações morais de ajudar estes seres humanos ou sucumbir ao especismo.

REFERÊNCIAS

Kagan, Shelly (1989). The Limits of Morality. Oxford: Clarendon Press.

Palmer, Clare (2010) Animal Ethics in Context. New York: Columbia University Press.

Singer, Peter (1972) “Famine, Affluence and Morality”. Philosophy and Public Affairs 1 (3): 229-243.

Unger, Peter (1996). Living High and Letting Die: Our Illusion of Innocence. New York: Oxford University Press. 

Por Catia Faria

Mantida a grafia lusitana original.

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