Tiradentes – como nascem as revoluções

Sinopse: Este ensaio, de cunho histórico, trata de um movimento de libertação que aconteceu em Minas Gerais, fins do século XVIII. Tiradentes e outros trinta ativistas políticos, ao desafiarem a ordem vigente planejando uma insurreição contra a Coroa, arriscaram suas vidas por uma causa. O texto fala de liberdade, de utopias, de repressão, de tortura e da morte que sublima a vida. É dedicado a todos aqueles que acreditam em seus ideais.

INTRODUÇÃO

Este artigo se propõe a analisar, sob o ponto de vista histórico, o tema da liberdade, que, a exemplo da vida, constitui valor supremo de qualquer ser. O cenário remonta a Minas Gerais do século XVIII, quando um grupo de idealistas aderiu aos planos libertários do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, formando uma conjuração pela independência da colônia, então sob o domínio da Coroa lusitana. Importa dizer que Tiradentes, homem de poucas letras, porém, de grande conhecimento prático, falava a linguagem do povo. Depois de um providencial encontro que teve no Rio de Janeiro com o jovem jurista José Álvares Maciel, que retornava da Europa com as notícias da independência das colônias norte-americanas e do Iluminismo que impulsionava a Revolução Francesa, Tiradentes se empolgou em seu sonho de libertação, antecipando o movimento republicano que aconteceria, no Brasil, apenas um século depois.

Ocorre que a conspiração, pela legislação da época (Código Filipino, livro V), submetia o réu ao crime de lesa-majestade, cujas penas eram o degredo perpétuo ou a morte. Tiradentes e os conjurados mineiros, denominados pela história como “inconfidentes”, resolveram correr o risco e levar adiante seu ideal. A delação, entretanto, impediu que a ação revolucionária tivesse início, restando apenas seus atos preparatórios. Mesmo assim, por determinação da Coroa, o Tribunal processou e condenou a maioria dos conjurados, no julgamento político mais célebre de nossa história. Tiradentes, ao contrário dos outros inconfidentes prisioneiros, permaneceu convicto em seus princípios, até o fim, apesar da tortura psicológica que se lhe impuseram. Foi ele o único a receber a pena capital. Seu exemplo mostra que as revoluções surgem em meio a determinadas circunstâncias históricas, quando o inconformismo individual se torna coletivo, quando o povo toma consciência da necessidade e, mais que isso, da possibilidade de mudanças, quando, enfim, o ideal passa a conduzir as pessoas em busca daquilo que acreditam.

A história brasileira mostra exemplos bem claros, como a abolição da escravatura no século XIX, a emancipação feminina no século XX, assim como a conquista de direitos trabalhistas aos operários e o reconhecimento dos direitos das minorias, pela Constituição-cidadã de 1988, que também consagra a proteção ao ambiente e veda a crueldade para com os animais, inclusive. Um dos maiores desafios éticos do século XXI, aliás, é o de justamente efetivar os direitos animais, criaturas sensíveis que ainda permanecem submetidos à prepotência humana, na condição de bens ou de propriedade. Espera-se que esta última barreira da libertação seja vencida um dia, não pela luta armada, mas por meio de uma profunda revolução interior.

A REVOLUÇÃO SONHADA

Joaquim José da Silva Xavier nasceu em um sítio, Pombal, em Minas Gerais, no ano de 1746. Filho de agricultores, aos dez anos de idade já estava órfão. Ao contrário dos irmãos mais velhos, não pode completar os estudos regulares e, criado por um padrinho, aprendeu o ofício de extrair dentes, fazendo-o com extrema habilidade e precisão, o que lhe rendeu a alcunha de Tiradentes. Não obstante esse ofício, ele foi tropeiro e exerceu atividades ligadas à mineração e ao comércio. Fez-se, enfim, soldado no Regimento da Cavalaria de Minas Gerais, onde atingiu o posto de alferes.

É importante, para melhor compreensão do significado da Conjuração Mineira, que se analise a situação política e econômica daquela época. No século XVIII o Brasil estava submetido às leis de Portugal, dada à sua condição de colônia. Minas Gerais passou a ser a província mais explorada daqui, pela abundância em ouro e pedras preciosas. Mas todo metal valioso extraído em Vila Rica – local em que Tiradentes viveu – passava pelo crivo daqueles que detinham o poder político e econômico, surgindo daí a cobrança coercitiva de impostos como o Quinto do Ouro. Aqueles que se insurgissem contra o sistema vigente estariam sujeitos a processo por crime de lesa-majestade, nos termos do livro V, título VI, do Código Filipino, que previa pena de degredo perpétuo ou morte aos condenados.

Tiradentes não se conformava com esse cenário opressivo. O providencial encontro que teve em 1788, no Rio de Janeiro, com José Álvares Maciel – jovem que retornara da Europa com idéias revolucionárias – mudou sua vida. Animado com a notícia da independência das colônias norte-americanas (1776) e da célebre declaração de liberdade proposta por Thomas Jefferson, ele passou a acreditar que um levante poderia também vingar no Brasil, criticando abertamente os abusos da Coroa portuguesa sobre Minas Gerais e os brasileiros, de modo a conclamar o povo à revolta. Contrário à política extorsiva do Quinto do Ouro, Tiradentes dizia que as riquezas brasileiras deveriam ser destinadas aos próprios brasileiros, não a aventureiros do além-mar. Também falava que o Brasil, a exemplo do que acabara de ocorrer na América do Norte, poderia tornar-se uma república, libertando-se de vez do domínio lusitano.

Dessas conversas entre Tiradentes e Maciel nasceu a idéia da Conjuração Mineira, que contou com a participação de vários intelectuais, militares e religiosos da região de Vila Rica, atual Outro Preto, onde os inconfidentes passaram a se reunir nos meses de janeiro e fevereiro de 1789. Tiradentes acreditava no êxito do levante, tanto que o tema da liberdade passou a habitar, de forma obsessiva, os seus pensamentos. Ele não mais queria protelar a sonhada emancipação, passando então a contatar aqueles que se irmanavam nesse propósito. Sua empolgação, porém, não o deixou enxergar os riscos da atividade conspiratória, conduta considerada “abominável” pelo texto das Ordenações Filipinas.

O historiador OILIAM JOSÉ, estudioso do tema da Inconfidência Mineira, explica porque Tiradentes foi escolhido como líder da Insurreição:

“Pertence a Tiradentes o primeiro posto nesse movimento que visava dar a Minas nova ordem social e política, cimentada na compreensão entre os homens, na liberdade e na justiça. Era ele o mais bem indicado para isso. Homem do povo, conhecedor da linguagem e dos anseios do povo, devia, por isso, falar da Revolução a esse mesmo povo. No desempenho dessa missão, que lhe reservaram nas conversações revolucionárias, ninguém o superaria. Fidelidade aos compromissos assumidos, entusiasmo e eloqüência natural para conversar eram qualidades que, nele, se revestiam de força rara”.1

Não tardou para que o governador da capitania de Minas Gerais, Visconde de Barbacena, fosse informado da conspiração. Ao saber do plano libertário dos inconfidentes, por intermédio de um delator que se infiltrara nas reuniões secretas, Barbacena suspendeu a “Derrama” – ameaça de cobrança coativa, à população, de uma dívida de quinhentos e trinta e oito arrobas de ouro, em razão dos impostos atrasados referentes ao Quinto do Ouro, em favor da Real Fazenda – e, estrategicamente, enfraqueceu o movimento de revolta. A partir daí, já ciente dos planos subversivos e seus artífices, determinou a prisão de todos os inconfidentes, ordem esta cumprida com eficiência pelas tropas do governo.

Tiradentes foi confinado na prisão celular da Ilha das Cobras, Rio de Janeiro, em condições degradantes, até o dia em que, findo o processo da Devassa, acabou conduzido ao patíbulo para ser enforcado e ter o corpo esquartejado. Trinta anos depois o Brasil alcançaria a Independência. Apenas após a proclamação da República, porém, é que a memória de Tiradentes foi resgatada, sendo o dia de sua execução, 21 de abril de 1789, transformado em data cívica e feriado nacional, nos termos da Lei 4.897/65. É necessário, entretanto, retroagir no tempo para entender o contexto dos fatos.

COLÓQUIOS ABOLICIONISTAS

Entre 25 de dezembro de 1788 e 06 de janeiro seguinte realizaram-se em Vila Rica as primeiras reuniões dos inconfidentes, participando delas o jurista José Álvares Maciel, o Padre Carlos Correa de Toledo e Mello, o Coronel Ignácio José de Alvarenga e o Padre José da Silva e Oliveira Rolim, além, é claro, de Tiradentes. Coube ao Alferes, que tinha em seu favor a proximidade do povo e a experiência dos sertões, a ação de maior risco nessa fase preliminar do movimento revolucionário, qual seja, convencer as classes oprimidas da importância da liberdade. Acreditava-se que apoio das multidões viria em resposta à Derrama com a sua cobrança abusiva de impostos.

Aderiram ao plano de Tiradentes e Maciel, logo em seguida, vários representantes da elite mineira, militares e religiosos, dentre os quais o desembargador e poeta Thomaz Antônio Gonzaga, os políticos e também poetas Cláudio Manoel da Costa e Inácio José de Alvarenga Peixoto, o cônego Luiz Vieira da Silva, o comerciante Antônio de Oliveira Lopes, os tenentes Domingos de Abreu Vieira e Francisco de Paula Freire de Andrade, os coronéis Francisco Antonio de Oliveira Lopes e José Ayres Gomes, o hospedeiro João da Costa Rodrigues, os capitães José de Rezende Costa e Vicente Vieira da Motta, os padres José Lopes de Oliveira e Manoel Rodrigues da Costa, o sargento Luiz Vaz de Toledo Piza e o cônego Luiz Vieira da Silva, dentre outros homens de ideologia republicana.

Há de se lembrar que, além dessas personalidades, outras acabaram envolvidas por participação indireta no movimento, como Victoriano Gonçalves Velloso (acusado de portar um bilhete revolucionário), Salvador Carvalho do Amaral Gurgel (que redigiu uma carta de recomendação a Tiradentes), Manoel José de Miranda (que teria ajudado na fuga do Alferes), Pe Manoel Rodrigues da Costa (por se omitir de revelar à Coroa os planos a ele confessados por Tiradentes) e, ainda, Manoel da Costa Capanema (pela autoria da frase-desabafo “os branquinhos do Reino vêm cá tomar posse d´este; mas que cedo os havemos de deitar fora“).2

Sabe-se que os inconfidentes cultivavam ideais republicanos e, alguns deles, abolicionistas. A este respeito vale mencionar um incidente ocorrido quando Tiradentes era tropeiro pelo sertão mineiro, ocasião em que se revoltou ele contra um homem que espancava o próprio escravo. Tiradentes, indignado com a violência que testemunhara, intercedeu em defesa da vítima e em razão disso acabou sendo preso. A cena, bem descrita pelo sociólogo SERGIO FARACO, aconteceu no antigo arraial do Fanado, a 65 léguas de Vila Rica:

“A ninguém é lícito negar a influência decisiva que sobre ele (Tiradentes) e suas inclinações revolucionárias exerceu esse incidente (…). Num dia de sua estada ali, encontrou um português possuidor de escravos chicoteando barbaramente um infeliz negro. Esse, amarrado e urrando de dor, pedia clemência. Não se conteve Joaquim José. Entrou em luta corporal com o opressor do negro ferido, fez escorrer sangue do malvado e acabou preso por um miliciano, recolhido a infecta prisão e despojado dos haveres que portava consigo. Libertado ao fim de alguns dias passou a votar incontida ojeriza ao nome português e aos desmandos que muitos lusos praticavam ns Minas, por se julgarem senhores da terra e do povo que a habitava”.3

Também merece registro a postura de escravo Nicoláo, pertencente ao conjurado Domingos de Abreu Vieira, que por ocasião das prisões pedira para ser encarcerado com seu senhorio na cadeia de Vila Rica e do Rio de Janeiro, permanecendo ao seu lado. A atitude do escravo mostrou a nobreza do caráter de alguém que nem sequer possuía liberdade, mas que ainda assim se dedicara àquele que considerava um amigo. Não bastasse isso, Nicoláo, ao receber a alforria, decidiu acompanhar Domingos de Abreu Vieira ao desterro, em Angola.

Fazer cessar o domínio da Coroa sobre o território brasileiro, obtendo assim plena autonomia e liberdade para a província de Minas Gerais era a principal meta dos inconfidentes. Instaurar o regime republicano na região separatista também fazia parte desses planos. Quanto à abolição da escravatura, o movimento se dividira: uns, como Tiradentes, já traziam na alma esse propósito; outros, ao contrário, sustentavam que, por estratégia política, a escravidão negra deveria ser mantida. Não se sabe como o impasse se resolveria, no caso de o levante vingar. Isso porque a delação vinda de um pseudo-inconfidente, coronel Joaquim Silvério dos Reis, pôs fim ao plano revoltoso dos conjurados.

DELAÇÃO E DEVASSA

O crime de lesa-majestade, previsto no Livro V, titulo VI, do Código Filipino, significava traição ao rei, sujeitando o infrator à pena de morte ou ao degredo, além da pecha de indignidade a recair sobre os descendentes dos condenados, que também tinham os bens confiscados, de modo que a reprimenda ia muito além da pessoa do réu:

“Lesa Majestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do rey, ou seu Real Stado, que eh tão grave e abominável crime, e que os antigos Sabedores tanto estranharão, que o compararão à lepra: porque assi como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem, e aos que com ele conversam, pólo que he apertado da comunicação da gente: assí o erro da traição condena o que o comete, e empece e infama os que de sua linha descendem, posto que não tenham culpa”.4

Várias pessoas delataram a Conjuração Mineira às autoridades. A primeira delas foi Joaquim Silvério dos Reis, que se infiltrou entre os inconfidentes a ponto de participar das reuniões secretas em Vila Rica. Depois de comunicar pessoalmente o plano subversivo ao governador Barbacena, em 15 de março de 1789, Silvério dos Reis formalizou sua denúncia no mês seguinte, em documento utilizado como prova fundamental nos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira. Essa conduta fez com que o movimento libertador se frustrasse em meio à fase preparatória.

É preciso que se diga, aliás, que a delação não foi gratuita. Findo o processo da inconfidência e cumpridas as penas impostas aos réus, o delator oficial recebeu do governo a sua prometida recompensa: hábito da Ordem de Cristo, 200$000 de tença, levantamento de dívidas, título de Fidalgo com foro e moradia e, ainda, nomeação para ser o tesoureiro-mor da Bula de Minas, Goiás e Rio de Janeiro5. Todos esses benefícios materiais, entretanto, não foram suficientes para dar paz de espírito ao célebre traidor, que, rechaçado pelo povo e, oxalá, por sua própria consciência, precisou fugir de Vila Rica, transferindo-se para o Maranhão, onde veio a falecer.

Pois muito que bem, após ser instaurado o processo da Devassa, três magistrados de Lisboa vieram ao Brasil com o objetivo de sentenciar os réus e dar rápido cumprimento à sentença: Vasconcelos Coutinho, Gomes Ribeiro e Cruz e Silva. A providência inicial dos juízes foi a de unificar os processos dos inconfidentes, a fim de apressar a instrução e obter o esperado provimento judicial. Não há dúvidas que, em meio a esse sombrio cenário político, a pena capital já havia sido decidida desde a prisão dos conjurados, restando apenas definir a quem ela se reservava.

Nas reuniões em Vila Rica os conjurados haviam combinado que, na hipótese de prisão, todos eles negariam o movimento revolucionário. Tiradentes, da mesma forma que os demais inconfidentes recolhidos ao cárcere, assim o fez de início. Mas o sistema inquisitório dos tempos coloniais não tolerava o silêncio dos acusados. Recorreu-se à tortura psicológica. Aos poucos, um a um, o ânimo dos prisioneiros arrefecia, surgindo contradições nos interrogatórios, acusações recíprocas e, por fim, a atribuição da responsabilidade, pela maioria deles, aos ombros do Alferes.

Durante o transcurso de quase todo o processo da Devassa, ao cabo de três anos, Tiradentes permaneceu encarcerado no presídio da Ilha das Cobras, sob condições degradantes. O calabouço úmido que foi sua cela não permitia que ele sequer visse a luz do sol. Antes dos interrogatórios, segundo os registros históricos, os presos eram “devidamente preparados” pelas autoridades, mediante condutas que atualmente constituem flagrantes violações aos direitos humanos fundamentais.

É o que se depreende, novamente, da análise de OILIAM JOSE:

“Na prolongada incomunicabilidade, em que os mantiveram e que só foi quebrada após a comutação das penas à morte, os réus tornaram-se vítimas da maior violência que se lhes impôs no correr da ação processual. Evidenciava-se com isso, mais uma vez, o intuito de destruir-lhes o ânimo, pelo isolamento, solidão, carência de recursos materiais e amparo moral, falta de noção de tempo e das situações”.6

No quarto interrogatório, obtido pelos inquisidores na Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1780, Tiradentes compreendeu que seria inútil e até mesmo indigno negar a existência do movimento libertador. E, assim, decidiu confessar os planos revolucionários. Mas a nobreza de seu caráter fez com que ele chamasse para si toda a responsabilidade pela Conjuração, no afã de excluir ou minimizar a participação dos co-réus. Justificou como causa de agir convicções de ordem pessoal. E tentou afastar a culpa dos demais conjurados, em franca demonstração de sua ascensão moral. Já não lhe importava a severa pena acenada pela Corte, certo de que o julgamento dos homens – que decerto o condenariam à morte – não resistiria, no futuro, ao julgamento da História.

A CONJURAÇÃO: CRIME OU UTOPIA?

Finda a Devassa, a rainha D. Maria I designou, por Carta-Régia datada de 17 de julho de 1790, o tribunal competente para julgar os conjurados. E o fez, segundo anunciava a soberana, ‘para desagravo do real nome, para a edificação e aquietação dos povos e para o justiçamento dos maus’. O Estado lançou mão, assim, de todos os meios possíveis e imagináveis para incriminar os réus, isso no curso de dois anos, enquanto a defesa nomeada aos acusados teve o prazo de apenas cinco dias para se manifestar no processo, sem a possibilidade de ao menos se entrevistar com os conjurados, cujas versões – em alguns casos – eram conflitantes entre si. Apesar dos contratempos processuais, o advogado dativo José de Oliveira Fagundes, nomeado para defender os vinte e nove réus, manifestou-se em uma peça judiciosa e combativa, evocando a tese do crime impossível:

“A Revolução de 1789, em Minas, não passou de vãs conversas e articulação de planos irrealizáveis por natureza, em face dos precários recursos lembrados e a indiferença dos povos para com ela; jamais a conspiração chegou a ser uma tentativa do crime previsto nos parágrafos 5 e 6 do Título VI do Livro V das Ordenações, pois não evoluiu além de ineficazes preparativos intelectuais, porque nenhum dos réus, nem todos juntos seriam capazes de, pelo ânimo, opulência e costumes, conseguir que se executasse o que se conversava nos conventículos por leveza, insânia e loquacidade sem a mais leva esperança… O que havia sido apurado contra cada um dos réus era confuso, contraditório, inaproveitável como prova convincente para juízes serenos”.7

Em nenhum momento de seu arrazoado o defensor procurou apontar falhas processuais ou excessos dos juízes. Preferiu se ater aos fatos em si, sob a ótica de uma provável utopia, como se o movimento inconfidente fosse um sonho irrealizável. Alegou também que a Conjuração nem mesmo atingiu pessoalmente a rainha, inexistindo, portanto, o crime de lesa-majestade. Não havendo, segundo ele, dolo específico na conduta dos réus – que nem mesmo deram início à fase executória do iter criminis – nada tinha de ser punido. E mesmo que houvesse o intuito da revolução, esta jamais se realizaria por absoluta ineficácia dos meios utilizados pelos inconfidentes.

O tribunal, apesar do esforço do advogado dativo, rechaçou todas as teses defensivas e negou o agravo à sentença, a fim de que a execução fosse cumprida o quanto antes. E o que é pior, lançou mão de um expediente sádico para anunciar a pena aos acusados, incorrendo novamente em tortura psicológica. Trazidos ao pátio do presídio para ouvir a leitura da sentença, onze réus foram informados de que a justiça os condenara à pena de morte e de desonra perpétua. Desesperados todos eles, à exceção de Tiradentes – que permaneceu impassível diante do veredicto – o que se deu naquele lúgubre 17 de abril de 1789 foi um abuso de poder, onde os representantes da justiça se regozijaram diante do horror da morte que se instalava no semblante de dez dos condenados.

Com essa conduta imoral e desnecessária, o tribunal feriu os princípios da ética, da dignidade humana e da solidariedade, até porque os magistrados já sabiam de antemão que, afora Tiradentes, os conjurados civis teriam todos eles a pena comutada em degredo perpétuo. Apenas no dia seguinte é que o escrivão anunciou que o único a ser executado seria Tiradentes, fazendo-o diante de réus esgotados pelos padecimentos físicos e corroídos pelo sofrimento maior, de natureza moral. Os demais inconfidentes condenados inapelavelmente, tiveram a pena comutada em degredo perpétuo para a África, embarcando em fragatas que os levariam até o desterro.

A sentença que condenou Tiradentes à morte, somada ao notório prejulgamento do Alferes, mostrou-se rude e implacável para com ele:

(…) Condenam o réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, alferes que foi da tropa paga pela capitania de Minas, a que com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca, e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, aonde em lugar mais publico dela será pregada em um poste alto até que o tempo a consuma: o seu corpo será dividido em quatro quartos e pregados em postes pelo caminho de Minas, no sítio da Varginha e de Cebolas, onde o réu teve as suas infames práticas, e os mais nos sítios de maiores povoações, até que o tempo também as consuma. Declara ao réu infame, e infames seus filhos e netos, tendo-os, e seus bens aplicam para o fisco e câmara real, e a casa em que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, e que nunca mais no chão se edifique, e não sendo próprias, serão avaliadas e pagas ao seu dono pelos bens confiscados, e no mesmo chão se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infâmia desse abominável réu (…).8

Em seu livro SÉRGIO FARACO critica a sentença condenatória dos Inconfidentes:

“A sentença é uma peça ficcional, contrária á prova constituída. Toda a verdade apurada nas inquirições, ao revelar-se inócua, passa a não interessar. Se não houve a conjuração, invente-se a conjuração: a sentença – documento político – não é um julgamento, é mais uma exibição de força ao convulso vice-reino e não quer exatamente castigar, embora castigue (…) Dos vinte e nove réus, vinte e um são condenados. Destes, onze são sentenciados à morte, trágica encenação da alçada para ´provar´, com a pena, a gravidade do delito (…) A rigor, em outubro de 1790 já estava morto o Alferes”.9

O HOMEM E O MITO

Quando chegou ao Rio de Janeiro em sua derradeira viagem, após dez dias de viagem a cavalo, Tiradentes trazia nos bolsos 100$000 que tomara emprestado de um compadre mineiro, embora sua alma estivesse repleta de ideais. Mal ele imaginava que Joaquim Silvério dos Reis já havia formalizado a delação ao governador Visconde de Barbacena, o que acabou desmantelando os planos da Conjuração. A partir daí as autoridades portuguesas passaram a agir concomitantemente em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, dispostos a prender todos os inconfidentes e a calar qualquer voz que porventura pronunciasse, na acepção política, os vocábulos Liberdade e República. Assim se fez.

Tiradentes, ao chegar à capital, logo percebeu o malogro do movimento e também o fato de estar sendo seguido por espiões a serviço da guarda real. Ele ainda tentou, em vão, expressar suas idéias republicanas, a mais dramática delas quando em meio a um espetáculo teatral na “Casa da Ópera”, centro do Rio de Janeiro, proclamou à platéia o seu sonho de liberdade, para “assim fazer feliz a América e muito mais feliz os brasileiros10. Depois de alguns dias escondido na cidade, ao saber que Joaquim Silvério dos Reis – a quem ainda considerava um aliado – estaria na região, procurou contatar aquele que lhe traíra meses antes. Silvério dos Reis, descobrindo assim o local do esconderijo, tornou a trair o Alferes, fazendo com que ele caísse preso no dia 10 de maio de 1789.

O cárcere da Ilha das Cobras era um lugar insalubre, cercado por paredes grossas e úmidas. Nas celas solitárias, os presos permaneciam privados de qualquer contato social, exceto o direito à assistência religiosa. Tiradentes só era dali retirado para os interrogatórios, sempre separadamente dos outros acusados. Bem que ele tentou negar a Conjuração, nos interrogatórios dos dias 22, 27 e 30 de maio de 1789, mas o tratamento que se seguiu em face de sua atitude refratária mostrou-se implacável. O rigor da custódia foi acentuado a ponto de Tiradentes permanecer, por vários dias, acorrentado na janela do cárcere, como um animal cativo. Liberdade esmagada naquele que sonhava com a liberdade plena… Até que no dia 18 de janeiro de 1791, no quarto interrogatório, já sem forças para resistir à tortura, ele decidiu revelar o plano da Conjuração, assumindo toda a responsabilidade pelo movimento.

No ano seguinte viria a sentença, a pena capital e a execução na forca. Esquartejado o réu, com seu sangue foi lavrada a certidão de cumprimento do decisum, constando dela a declaração de infâmia à memória do executado e de seus descendentes. Os despojos de Tiradentes foram pregados em postes, ao longo do caminho entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais, sobretudo nas localidades em que ele fizera seus discursos revolucionários.

No entendimento do tribunal que julgou a insurreição mineira, Tiradentes foi “atrevido, monstruoso, pérfido, infame, abominável e vil”. Essa impressão notoriamente hostil ao réu talvez tenha feito com que seus julgadores extravasassem sua ira além da pena capital, assumindo postura de autênticos carrascos. Por isso é que o corpo do condenado foi esquartejado e seus pedaços expostos publicamente, para servir de exemplo àqueles que ousassem desafiar a ordem constituída. Também por isso é que sua memória e seus filhos e netos foram declarados infames. Por isso é que sua casa foi destruída e salgada, para que nada mais brotasse ali.

Quem teria, entretanto, percebido o sentido histórico da insurreição liderada por Tiradentes? Que juiz, que político, que militar, que religioso, que carcereiro, que pessoa do povo, enfim, conseguiu enxergar naquele condenado um herói que morria pela pátria? Quem poderia ter a exata noção do que se passara na alma de Tiradentes a caminho da forca? Sabe-se que neste derradeiro trajeto e durante todo o ritual que precedeu ao enforcamento, Tiradentes permaneceu sereno. Não se arrependeu de nada do que fez e tampouco implorou por clemência. Seguiu em passos resignados até o patíbulo, olhando pela última vez o mundo e o povo ao seu redor. Ele, ao contrário dos soldados e da multidão de curiosos que lhe testemunharam o epílogo da existência, certamente sabia que sua morte não seria vã.

Trinta anos depois do enforcamento de Tiradentes o Brasil se tornaria independente de Portugal. E menos de um século mais a frente seria proclamada a República, que se lastreou nos consagrados princípios da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade. A declaração de direitos inspirada pela Revolução Norte-Americana, de 1776, ultrapassou fronteiras para chegar até as Minas Gerais. Buscava-se, com ela, o sonho da Liberdade e o reconhecimento dos direitos humanos essenciais, dentre eles a dignidade. Como bem concluiu o historiador OILIAM JOSÉ, ‘ninguém faz conscientemente revolução sem que um grande ideal o inspire. E o mais criativo dos ideais políticos é a liberdade’11. Eis o significado histórico da vida de Tiradentes, cuja morte o transformou em herói e mito.

CONCLUSÃO

A insurreição mineira foi um movimento idealista organizado por um grupo de intelectuais, padres e militares pertencentes à elite de Vila Rica, que viam em Tiradentes – homem carismático e ligado ao povo – a maior possibilidade de sua concretização.  Nasceu a Conjuração do encontro entre um homem das letras, José Álvares Maciel, e um homem do sertão, Tiradentes, parceiros do mesmo ideal de liberdade. Durante os dois primeiros meses de 1789, Vila Rica tornou-se palco das reuniões secretas entre os inconfidentes, que sonhavam livrar parte do Brasil do domínio português. Tudo o que aconteceu ali foram atos preparatórios de um levante popular idealizados por trinta homens contra o império representado pela Coroa lusitana. Pode-se argumentar, do ponto de vista jurídico, que se estava diante de um crime impossível.

Direitos humanos não havia no Brasil em fins de século XVIII, evidentemente, época de escravidão e de exploração servil. O calabouço da Ilha das Cobras bem representava esse estado de coisas, em que a tortura – física e psicológica – fazia parte do sistema jurídico então vigente. A Coroa, desta forma, detinha poderes absolutos sobre a colônia, utilizando o rigor das Ordenações para oprimir os revoltosos. Diante da notícia da Insurreição, a ordem Real foi no sentido de se punir exemplarmente os conjurados.

Com ou sem provas, consumado ou não o delito, existente ou impossível a prática delituosa – isso pouco importava para os inquisidores – o que se devia fazer era eliminar as idéias de liberdade a qualquer custo, encontrando sempre um culpado. Os conjurados intelectuais, os militares com patentes e os padres (estes submetidos ao julgamento eclesiástico, lembre-se), tiveram poupadas suas vidas, ao contrário do homem do povo representado por Tiradentes.

A Devassa simboliza, em tal contexto, a opressão do poder constituído sobre o anseio daqueles que desejavam um país livre. Mas o julgamento da história ainda estaria por vir. Chegaria a independência pelos caminhos já abertos pelos inconfidentes. Depois a tão sonhada República. E com ela os princípios consagrados nas cartas de direitos fundamentais, que aos poucos foram se incorporando à legislação brasileira. Tiradentes, ainda que tardiamente, teve sua memória reabilitada, tornando-se símbolo da liberdade e patrono da nação brasileira.

Que o exemplo de Tiradentes possa, nos tempos de hoje, inspirar novas ações idealistas em favor da liberdade e da dignidade de todos aqueles – homens ou animais, pouco importa – que ainda continuam vivendo sob o regime da intolerância e da opressão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUTOS DA DEVASSA DA INCONFIDÊNCIA MINEIRA. 2ª ed., Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1976-83, v. 1-2-3-4-7.

CALDEIRA, Jorge. “História do Brasil”. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

FARACO, Sérgio. “O Processo dos Inconfidentes: Verdade ou Versão”. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990.

JOSE, Oiliam. “Tiradentes”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1985.

KENNETH, Maxwell. “A Devassa da Devassa”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

ORDENAÇÕES FILIPINAS, Livros IV e V. Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian.

NOTAS

1 JOSE, Oiliam. “Tiradentes”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1985, p. 129.

2 JOSE, Oiliam. Ob cit, p. 111.

3 FARACO, Sérgio. “O Processo dos Inconfidentes: Verdade ou versão”. Petrópolis. RJ. Vozes: 1990, p.30.

4 ORDENAÇÕES FILIPINAS, Livro V, Título VI. Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1153.

5 Decreto Régio de 4 de outubro de 1974. “Anuário do Museu da Inconfidência”, ano II, 1953, p. 203.

6 JOSE, Oiliam. Ob cit, p. 177

7 JOSÉ, Oiliam, Ob, cit, p. 159.

8 CALDEIRA, Jorge. História do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 114.

9 FARACO, Sérgio. Ob, Cit., p. 24/26.

10 JOSE, Oiliam,. Ob Cit., p. 144.

11 JOSE, Oiliam, Ob. Cit., p. 220. 


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