Tocar o corpo de um animal que não pediu?

Por Sônia T. Felipe 

Temos um impulso egoísta de tocar imediatamente o corpo de qualquer animal que caia em nosso conceito de “fofo”. E o fazemos sem parar para pensar se o animal tocado daria ou não seu consentimento para isso. Invadimos sua privacidade física e mental com nosso gesto carinhoso.

Outro dia, lendo um prospecto turístico, vi que anunciavam como parte do pacote entrar em um recanto de animais marinhos e ter o direito de pegar na mão e acariciar uma estrela do mar ou um cavalo marinho. Estrelas não podem ser tocadas por nós. Tocamos os cavalos somente quando eles não nos dizem com seu coice que detestam isso. Mas os pequenos cavalos indefesos e estrelas marinhas não recebem nosso respeito.
Nosso toque atende apenas a uma carência nossa. Não atende a qualquer carência dos animais em geral. Aliás, a maioria deles, incluindo boa parte dos humanos, detesta ser tocada. E quando querem nosso toque, buscam-no a seu próprio modo e então sabemos que é isso o que procuram. Cães e gatos inclusive. Nem todos gostam de ser abafados por nossas carícias. Muitos são arredios. Outros se esquivam à menor ameaça nossa de tocá-los.

Entretanto, continuamos a pensar que se temos um desejo tão ardente de tocar um animal, é impossível que ele não sinta o desejo de ser tocado por nós. Erramos. Basta nos colocarmos no lugar do animal. Imaginar que de repente, sem que o quiséssemos, alguém nos toca porque está com muita vontade de sentir a textura da nossa pele, o calor ou a densidade do nosso organismo. Quando alguém se apaixona por nós ocorre isso. Mas não ocorre o mesmo quando não nos apaixonamos pela outra pessoa.

E porque não imaginamos nunca que nosso toque pode ser extremamente desconfortável para o animal, especialmente para aqueles que não evoluíram ainda para o contato conosco, ou os que têm um formato não apropriado para sentir carícias, continuamos a crer que nosso toque é tudo de bom para eles. Não é.

Se todos os animais fossem aptos ao prazer do toque, todos se comportariam do modo que desejamos que se comportem quando os tocamos. A maioria, se tiver chance, mostra claramente que não quer nada disso. Se não tiver como mostrar isso, acaba por sofrer o desconforto sem que sejamos nós capazes de perceber a invasão à sua privacidade sinestésica.

Para nos colocarmos no lugar de um pequenino animal que julgamos que gosta de ser tocado, quando esse não é o caso, imaginemos agora que um animal do tamanho de um prédio de 90 andares, com mãos que teriam a dimensão de uma sala de 36 x 15 metros nos pegasse de surpresa e nos fizesse ficar de costas, de bruços, de lado, de cabeça para baixo, ou nos pendurasse por uma das pernas para examinar nossas saliências e reentrâncias, não por maldade, por simples curiosidade. Sendo o monstruoso animal que é, pensa que seu toquezinho não nos pode fazer mal algum. Teríamos as dimensões proporcionais de uma minúscula formiga na palma de sua mão. O que sentiríamos não seria percebido por ele, porque seu aparato emocional não é o mesmo nosso e seus medos são de outra ordem.

Quem de nós gostaria desses toques amorosos de um ser gigantesco como esse? Quem quereria colocar-se à disposição para servir de objeto de carícias a um ser desses? Em sã consciência, ninguém se disporia a oferecer seu corpo para contatos com seres de outras espécies que tenham a conformação e o design de verdadeiros monstros. Sentiríamos medo, muito medo. Pavor. E caso nossa expressão corporal em pavor não dissesse nada ao ser amoroso monstruoso (em seu tamanho, não necessariamente em suas intenções), ele concluiria que não nos causa desconforto algum.
Quando nos depararmos com seres que não têm nossa configuração, melhor é observar se eles buscam tocar em nós. Se não o fizerem, o correto é deixar que se movam no ambiente sem que os ameacemos com nossas amorosas mãos. Isso vale para nossa interação com bebês humanos, que, por sinal, detestam aqueles beijos e chupadas nas bochechas, vale para nossa interação com gatos que não nos conhecem, com cães que poucas vezes tiveram a chance de estar conosco, com estrelas do mar, cavalos marinhos e pequenas tartarugas.

A invasão de privacidade não se limita a abrir a correspondência alheia, bisbilhotar no celular dos outros, em seu correio ou em suas gavetas. Ela diz respeito a não causar perturbações no corpo do outro quando ele não busca isso de nós. Contentemo-nos com a manifestação do desejo de ser tocado por nós, expresso por algum animal, seja da nossa espécie, seja de outra qualquer.

Quando não há expressão alguma desse desejo, fiquemos à distância, observemos o animal e deixemos que se mova sem ameaçar seu corpo com nossos toques. Isso é o que esperaríamos de um ser gigantesco de outra espécie, caso cruzássemos com ele. Isso é o que devemos a todos os animais de outras espécies quando cruzam nosso caminho ou estão no mesmo ambiente nosso. Ético. Sublime. Respeitoso. Sem ofender ninguém que pensa o contrário porque nunca foi tocado por um ser 160 ou 180 vezes mais alto e com 1200 vezes a mais de peso. Essa é a proporção entre um corpo humano e o corpo de um cavalo marinho, de uma estrela do mar, de uma tartaruguinha. Não é para menos que todos esses seres se esquivam do nosso toque. Nosso tamanho e peso não é nada promissor para seus minúsculos organismos.


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