Tradição, barbárie e machismo

A demonstração de força física, para muitos homens, começa a ser, desde a mais tenra idade, uma necessidade. Com atos de brutalidade, contra os animais não humanos, revela-se a genuína masculinidade, assim pensam os que a exercem, e os que os estimulam a exercê-la. Quando, no entanto, o próprio corpo é fraco, mal-preparado, sedentário, pesado demais para mover-se com habilidade e remover do caminho qualquer obstáculo, a mente passa a inventar estratégias de demonstrar força física e manter o estatuto de quem quer estar no comando do corpo alheio e já não tem as habilidades necessárias para isso.

As inovações tecnológicas surgiram na esteira dessa necessidade masculina: força, agilidade, motricidade e nenhum custo ou desgaste para o próprio corpo. Máquinas motorizadas ou carregando fontes de energia  foram substituindo, gradativamente, os corpos humanos e animais usados tradicionalmente para o trabalho brutal, aquele que levou à morte precoce de milhões de humanos escravizados ou explorados, e continua a extorquir a vida de muitos animais não humanos.

As invenções dos engenheiros, que denominamos invenções tecnológicas, representam uma forma de manter em alta o espírito da virilidade, tão caro à formação da personalidade masculina. Os jovens que estudam engenharia usam o cérebro matemático em lugar dos músculos do corpo, para provarem a supremacia humana entre as demais espécies vivas. Engenheiros inventam e constroem motores, máquinas e autômatas para ocuparem o lugar da força bruta no trabalho de puxar, empilhar, carregar, descarregar, arar, semear, colher, armazenar. Tratores, guindastes, carretas, navios, aviões, ceifadeiras, empilhadeiras etc. são bons exemplos da substituição da força bruta pela força mecânica sem uso de animais.  Temos o privilégio de viver numa época em que  não é necessário empregar brutalidade contra o corpo de outros [embora isso ainda ocorra] para que uma plantação seja colhida, empilhada, carregada, içada, transportada, descarregada e distribuída aos intermediários que a processam e refinam e voltam a fazer todas aquelas etapas com os novos produtos até fazê-los chegarem ao mercado consumidor.

Nas universidades e em outros centros de pesquisa tecnológica todo empenho é feito para aumentar o número de máquinas capazes de substituir o corpo humano nas tarefas brutais que asseguram o provimento dos bens consumidos por todos diariamente. Com a matemática [tida como masculina] e a criatividade [tida como feminina], o cérebro consegue substituir a força bruta pela energia, e, mais recentemente, buscando uma fonte limpa de energia, que não deixe resíduos, sujeira ou nada do que o humano que a emprega possa envergonhar-se perante as gerações futuras. Esse empenho merece o nome de civilização, herança cultural, legado científico e tecnológico digno de ser passado às gerações seguintes. Mas, enquanto uma parte dos homens refina seu espírito viril, sem o qual não há identidade masculina, outra parte, infelizmente, formada por homens que, via de regra, mantêm seu corpo inerte em atividades sedentárias, ainda cultua o emprego do corpo de forma brutal. Um corpo é usado para provar que tem força maior do que a força de outro. Quem possuir o corpo com mais força, é o vencedor.

Não haveria nada a pontuar, do ponto de vista ético, caso os competidores usassem seu próprio corpo para tais demonstrações de vigor e supremacia sobre os outros, num jogo em que só entrassem na arena os que voluntariamente houvessem feito sua inscrição. Temos, aqui, duas pequenas diferenças entre as arenas romanas e os jogos que poderiam servir para aumentar a autoestima masculina: uma, a inscrição voluntária e pessoal do competidor, outra, o fato de que o corpo que ele vai usar para tal demonstração de força é o dele, não o de algum outro ser vivo indefeso, que ele domina e considera seu objeto de propriedade.

Uma espécie de moralidade ainda seria preservada, se as competições para demonstração de superioridade em força bruta fossem restritas ao corpo dos inscritos voluntários. Cada um, conforme ocorre em outras modalidades de disputas brutais, inscreve-se para subir na arena de lutas, e o faz levando consigo apenas seu próprio corpo, não o dos outros. Se bater mais, leva o troféu. Se sair arrebentado ou com sequelas irreversíveis, penará para o resto de seus dias, não apenas aquela derrota, mas a dor e a agonia das atrofias causadas pelo impacto da brutalidade sofrida. Enfim, o corpo é seu e pode fazer com ele o que bem aprouver, nos limites estabelecidos pela lei.

O mesmo não ocorre quando homens sem força física alguma inscrevem o corpo de outros seres vivos para tais disputas. Os últimos são colocados em cena sem a menor ideia do que se espera deles. São forçados a puxarem toneladas de carga, para que seus “donos”, ao final da disputa, possam receber os louros da vitória. São torturados fisicamente, com o esforço para o qual seus músculos não têm resistência. Exemplo maior desse ato de barbárie são as “puxadas”, competições nas quais os empresários ou proprietários de cavalos, em Pomerode, Santa Catarina, forçam os animais à tração de uma carga de milhares de quilogramas, para o simples deleite “viril” dos homens. O cavalo torna-se uma ampliação do corpo desses homens. Se o cavalo dele é mais forte e puxa mais quilogramas do que o cavalo do outro, então ele é mais “homem”, mais “viril” do que o outro. E, o mais importante, a cidade inteira fica sabendo de sua virilidade “equina”.

Conforme já escrevi em coluna anterior, ao tratar da farra do boi, há tradições que envergonham a moralidade humana. Há tradições que não merecem o nome que levam. Elas nada mais representam do que uma espécie de nostalgia machista, a nostalgia de um tempo no qual os homens podiam fazer qualquer coisa com o corpo dos animais que viviam na desgraça de estarem sob o seu domínio cruel, do mesmo modo em que tudo podiam fazer com o corpo das mulheres que, estando presumidamente sob o domínio deles, se rebelavam e os desobedeciam.

Em Pomerode, Santa Catarina – não como exceção, mas como regra nacional da crueldade brasileira contra os animais domesticados, a regra da estupidez moral, que ainda espera por alguma exceção, o cumprimento do dever de respeito pelos animais -, o anacronismo da virilidade machista nostálgica e decadente revelou-se em todas as suas facetas. A fobia contra o corpo dos cavalos (somatofobia), usados para provarem aos espectadores o quanto seus “proprietários” são “mais viris” que os outros, transbordou a arena onde os corpos dos animais estavam sendo barbarizados e espalhou-se sobre o corpo dos manifestantes que repudiavam o evento. Tão indefesos quanto os cavalos, os jovens usavam, para manifestarem seu repúdio, apenas seus corpos. Sob o olhar complacente dos espectadores, do poder municipal, da secretaria de segurança pública, que deveria garantir o que ordena a constituição federal, que estabeleceu a responsabilidade do Estado sobre a vida e o bem-estar dos animais que habitam o território brasileiro, os cavalos foram barbarizados, e os jovens espancados até sangrarem. As gangues dos homens que tiveram sua “virilidade” ameaçada pelo repúdio dos defensores dos direitos animais ampliaram a arena na qual a fobia contra o corpo dos outros (somatofobia) se manifestava.

Tradições podem ser apenas uma forma nostálgica de desejar que a ordem viril não seja alterada. Mas a masculinidade construída sobre os pilares da violência contra os animais, contra as mulheres e contra a natureza não produz qualquer legado digno de ser passado às gerações futuras.  O folclore é uma espécie de anacronismo cultural. Ele deve ser passado às gerações futuras, porque não implica violência contra quaisquer espécies vivas. As farras, sejam lá com qual espécie for de animal, sempre carregam consigo a nostalgia dos machos mal-resolvidos com a nova ordem social, aquela na qual a liberdade e a autonomia para manter e prover o próprio corpo já não dá mais aos “homens” a prerrogativa da propriedade tirânica sobre o corpo de outros seres vivos, nem de humanos, nem de não humanos.

Para o próximo evento da “puxada”, esses proprietários devem inscrever apenas seus corpos na competição. Sua “virilidade” poderá ser revelada nos primeiros cinco metros, quando se mostrar excessivo o peso que estão desafiados a puxar, pois muitos deles já carregam peso excessivo ao redor da própria cintura, o que lhes causa, no dia a dia, a insuficiência cardíaca produzida por seu tipo sedentário de vida. Deixem os cavalos em paz. Busquem em si mesmos os sinais de virilidade que forçam seus cavalos a produzirem. Esqueçam essa velha história de que homem macho é quem consegue tratar o corpo alheio com brutalidade. Se já tratam seu próprio corpo com maldade, impondo a ele todo tipo de comida, bebida e hábitos que contrariam sua necessidade, já entraram voluntariamente na competição brutal que dará cabo à própria vida. Deixem os outros, e especialmente os cavalos, viverem em paz. Liberdade para os animais!

Fonte: ANDA – Agência de Notícias de Direitos Animais


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Olhar Animal – www.olharanimal.org


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