20 anos de “ecologia do medo”: lobos em Yellowstone estão doentes

20 anos de “ecologia do medo”: lobos em Yellowstone estão doentes
Lobo doente víitma de sarna se alimenta de carcaça de cervo no Parque Nacional de Yellowstone, nos EUA.

A reintrodução de lobos-cinzentos no Parque Nacional de Yellowstone nos EUA entre 1995 e 1996 teve vários efeitos: devido à predação praticada por lobos, o número de cervos diminuiu; com menos cervos, a vegetação ao longo dos rios se expandiu; com mais vegetação, lontras recolonizaram as nascentes. Em Yellowstone, os efeitos da presença de um predador grande, como o lobo, criou a chamada “cascata trófica”, na qual predadores, ao reduzirem a abundância de herbívoros, favorecem o crescimento de produtores (plantas)1. A cascata trófica é o princípio que possibilita o desenvolvimento da chamada “ecologia do medo”, uma transformação significativa em um ecossistema promovida com base no terror que predadores impõem a suas presas.

Mas além da predação, um fator determinante para o triunfo da ecologia do medo estabelecida em Yellowstone foi que, por se sentirem aterrorizados pelos lobos, os cervos se tornaram mais reclusos e deixaram de comer brotos de plantas diversas que passaram então a crescer ao longo das margens do rios. Isso significa que, a fim de que determinados tipos de vegetação voltassem a prosperar em Yellowstone, inúmeros cervos sofreram e morreram devido não só à predação, mas também devido à má nutrição, como veremos em maiores detalhes ao longo deste artigo.

Muitas pessoas poderiam imaginar que ao menos os lobos estariam desfrutando de vidas boas em Yellowstone, mas isso também não é verdade. Nos últimos anos, lobos reintroduzidos têm sofrido, dentre outras doenças, com a sarna, uma doença parasitária que afeta a pele dos animais e faz com que percam a maior parte da pelagem – mais desprotegidos, os animais sentem mais frio e precisam de mais alimento para conseguirem manter a temperatura corporal. A doença é debilitante e muitas vezes leva os animais à morte depois de um longo período de sofrimento. No inverno, as temperaturas em Yellowstone chegam a -40oC e lobos enfraquecidos e sem pelagem não sobrevivem ao frio extremo.

Mas o que acontece quando um animal grande se torna vítima de um muito menor, como os parasitas causadores da sarna? Pesquisas futuras poderão também revelar outras cascatas tróficas com parasitas na posição de predadores de topo, teoriza o biólogo Paul Cross que tem estudado a evolução da sarna nos lobos de Yellowstone com o uso de câmeras termais, que indicam as mudanças de temperatura corporal nos animais doentes.2

Curiosamente, a sarna foi introduzida nas Montanhas Rochosas Setentrionais no início do século XX por um veterinário de animais selvagens do estado de Montana, EUA, como uma forma de tentar erradicar lobos e coiotes da região. A doença, no entanto, persistiu em coiotes e raposas. Depois de terem sido reintroduzidos em Yellowstone, os lobos se mantiveram livres de sarna até 2007.

“É irônico que um parasita originalmente introduzido para ajudar a erradicar lobos possa fazer vítimas um século mais tarde, constituindo-se potencialmente em mais um item na lista de consequências indesejadas no manejo de animais selvagens”, comenta Cross em seu artigo publicado na revista científica Ecology em março de 2016.2

Como estudo de caso, o presente artigo se propõe a analisar a situação atual dos animais não humanos em Yellowstone, decorridos pouco mais de 20 anos desde a reintrodução de predadores no parque norte-americano. O objetivo é, de um ponto de vista não especista, criticar intervenções ecologistas na natureza que não visam a promoção do bem-estar dos seres sencientes e, ao mesmo tempo, mostrar que devido aos inúmeros danos naturais que normalmente vitimam animais não humanos em seus habitats, devemos, sim, intervir na natureza, mas com uma meta completamente diferente: a de tentar reduzir o sofrimento e o volume de mortes prematuras no mundo selvagem, defendendo os interesses que todos os seres sencientes têm em viver e em não sofrer.

Como é possível constatar, nos últimos anos um círculo se fechou em Yellowstone, com desdobramentos trágicos para os animais não humanos envolvidos. Os lobos-cinzentos reintroduzidos no parque americano em meados da década de 1990 sofrem agora com os parasitas causadores da sarna – uma doença grave que tem matado filhotes e enfraquecido lobos adultos. Os lobos foram trazidos até Yellowstone a fim de que no local fosse criada a “ecologia de medo”, como é chamada por ecologistas: na presença de lobos, cervos aterrorizados passam a adotar um comportamento mais recluso, deixando de circular livremente por seu antigo território por medo de serem atacados. Os cervos, ao deixarem de consumir brotos de plantas tais como álamos e salgueiros, fazem com que a vegetação aumente em muitas áreas que seriam anteriormente pastadas pelos herbívoros. Dessa forma, cervos sofrem e morrem não apenas devido aos ataques mortais praticados pelos lobos, mas também porque, devido ao stress e ao medo, sua alimentação fica piorada já que sua área de pastagem diminui consideravelmente – muitos passam a sofrer de inanição, ficando também impossibilitados de se reproduzir e mais vulneráveis à doenças.3

Uma triste ironia fica por conta do fato de que a sarna também havia sido introduzida artificialmente na região algumas décadas antes (no início do século XX) por um veterinário que desejava justamente eliminar lobos e coiotes da região das Montanhas Rochosas. Os lobos reintroduzidos sobreviveram alguns anos livres de sarna, mas a doença voltou a vitimá-los. Seu futuro agora é incerto, pois, pelo menos até o momento, os lobos doentes não têm recebido nenhum tratamento veterinário, sendo que seu comportamento alterado devido à doença tem sido apenas monitorado à distância por biólogos.

Neste ponto vale ressaltar que, via de regra, animais selvagens doentes ou feridos só costumam ser ajudados quando cientistas determinam que a espécie a que eles pertencem está, por exemplo, “sob ameaça de extinção”. Infelizmente muitos animais têm seu sofrimento ignorado ou são abandonados para morrer quando poderiam ser ajudados porque são discriminados com base em critérios ecologistas moralmente irrelevantes, como o pertencimento a determinadas espécies mais ou menos valorizadas. Indivíduos devem ser ajudados em caso de necessidade porque têm capacidade de sentir e sofrer (ou seja, porque são sencientes), independentemente de pertencerem ou não a espécies “raras” ou “ameaçadas”.4

É importante ressaltar também que a proposta de estudarmos maneiras de promover intervenções positivas na natureza com o objetivo principal de reduzir o sofrimento e o número de mortes prematuras de animais selvagens costuma ser rejeitada com o argumento de que “não podemos prever as consequências de tais intervenções” ou podemos “causar uma catástrofe ambiental”. O interessante é que inúmeras intervenções são realizadas rotineiramente na natureza (Yellowstone sendo uma boa referência de intervenção em larga escala), porém geralmente com motivações antropocêntricas ou ecocêntricas, e em muitos casos, com consequências apenas parcialmente previsíveis e com probabilidades altas de os efeitos procurados não serem alcançados. Nem mesmo dentre os ecologistas existe consenso de que práticas como a reintrodução de predadores têm efeitos realmente desejáveis e muitos exemplos atuais demonstram que tais medidas podem ter muitos efeitos negativos inesperados, além dos custos elevados das intervenções.5

Contudo, apesar dos frequentes danos que causam a animais não humanos, raramente tais intervenções com metas ecocêntricas chegam a ser criticadas por pessoas ligadas à defesa dos animais ou mesmo pelo público leigo em geral. Isso ocorre porque as pessoas tendem a se guiar pelo senso comum que sugere que as práticas ecologistas visam o que é melhor para os animais e que se alguma coisa dá errado, trata-se apenas de um mal necessário para se atingir um bem maior – mas em geral o que ocorre de fato é exatamente o oposto: intervenções com metas ecocêntricas não têm como preocupação o bem-estar dos animais enquanto indivíduos sencientes e com frequência prejudicam animais não humanos, gerando um grande número de vítimas.

Em Yellowstone, por exemplo, a “paisagem de medo” foi construída com base no terror que predadores exercem sobre suas presas e, como vimos, também no sofrimento dos próprios predadores, que igualmente padecem não em consequência de predação, mas de vários outros danos naturais, tais como doenças, frio, fome e parasitas. No entanto, apesar de todo o volume de sofrimento agregado, esse tipo de transformação em um ecossistema costuma ser celebrada e apresentada como uma grande vitória. Alguns anos atrás, um vídeo narrado pelo ecologista e jornalista britânico George Monbiot mostrando a nova realidade “exuberante” de Yellowstone pós-introdução de lobos popularizou-se na internet. Essa glorificação da aparente beleza restaurada de Yellowstone esconde o fato de que a mesma só foi alcançada às custas de medo, sofrimento e morte de inúmeros seres sencientes que não tinham qualquer interesse em serem sacrificados para atender a uma demanda exclusivamente humana por uma paisagem diferenciada. Voltaremos a falar de Monbiot mais à frente.

Não aceitaríamos, por exemplo, aterrorizar seres humanos ou submetê-los a mortes violentas a fim de promover uma transformação em determinado ecossistema. Isso deixa claro o viés especista de ações ecologistas tais como a que foi posta em prática em Yellowstone. Seres sencientes são prejudicados com o sofrimento e com a morte. Logo, é do seu interesse não sofrer e não morrer.6 Contudo, esses interesses fundamentais não costumam ser levados em consideração em intervenções como a que ocorreu em Yellowstone. Para as pessoas defensoras de tal operação, o mais importante era restaurar o parque nacional a um antigo estado natural com vegetação mais abundante e com maior biodiversidade, mesmo que isso se desse às custas de medo, sofrimento e morte de cervos e outros animais e, finalmente, às custas de sofrimento e morte dos próprios lobos.

Mesmo sem sarna, seria igualmente um erro achar que os lobos-cinzentos teriam vidas idílicas em Yellowstone – eles também sofreram inicialmente com o transporte e a adaptação em um habitat completamente diferente e, posteriormente, passaram também a sofrer, como todos os lobos selvagens, com fome, doenças, parasitas, clima adverso e outros tantos processos naturais danosos. Estima-se que na natureza, até 60% dos filhotes de lobo que nascem morrem durante as primeiras semanas ou meses de vida de causas diversas tais como doença e inanição – ou seja, em média, mais da metade dos filhotes morre de forma bastante desagradável muito antes de atingir a idade adulta.7 Em Yellowstone, em 1997 (cerca de dois anos após sua reintrodução) todos os lobos que foram avaliados em campo já estavam afetados por pelo menos uma doença grave, como raiva, parvovirose canina e herpes canina.8

Em seres humanos, uma taxa de mortalidade infantil de 60% seria considerada absurda e um forte indicador de péssimas condições de vida. Essa mesma taxa quando aplicada a animais que habitam ambientes selvagens é considerada perfeitamente normal. Essa avaliação distorcida com relação ao extremo desvalor da vida na natureza só pode ser explicada, novamente, pelo viés especista, que faz com que as pessoas considerem que uma situação de injustiça, sofrimento e morte é aceitável quando as vítimas não pertencem à espécie humana.

No tipo de intervenção na natureza que tem sido praticada em Yellowstone, a preocupação principal não é com a redução do sofrimento ou a promoção do bem-estar individual dos animais não humanos em seus habitats naturais – a preocupação está em preservar ou restaurar certos tipos de vegetação ou entidades não sencientes tais como ecossistemas9 ou valores puramente estéticos, como a suposta harmonia ou beleza de uma determinada paisagem.

George Monbiot, como comentado anteriormente, é um árduo defensor desse tipo de intervenção ecologista na natureza que visa tornar certos ambientes naturais “mais selvagens” e, como vimos, ele ajudou a celebrar a transformação paisagística em Yellowstone. Monbiot admite abertamente que sua motivação deriva do fato de ele se sentir “ecologicamente entediado”10 – ou seja, seu desejo de intervir na natureza não tem como meta melhorar a vida extremamente difícil dos animais que vivem em ambientes selvagens – pelo contrário, o sacrifício de muitos animais não humanos estaria inclusive justificado se o mesmo significasse que a natureza se tornaria mais “esteticamente excitante”. Monbiot reúne argumentos não apenas especistas e antropocêntricos, mas também simplesmente egocêntricos. O problema com todas essas motivações é que elas desconsideram completamente os interesses primordiais dos animais não humanos, que muitas vezes pagam com a própria vida para que valores apreciados por seres humanos, tais como a beleza ou a biodiversidade dos ambientes selvagens, sejam promovidos.

É preciso que se entenda que por trás da aparente beleza e exuberância de uma paisagem natural, esconde-se sempre um volume enorme de sofrimento e mortes prematuras para as vítimas não humanas, que sem ajuda externa não dispõem de meios adequados para se defender dos inúmeros danos que sofrem. E para além disso, é importante perceber também que muitas vezes está ao nosso alcance ao menos evitar que o volume de sofrimento e mortes aumente no mundo natural: não reintroduzir predadores em ambientes em que eles não existem mais (em geral há muito tempo) é uma forma óbvia de não contribuirmos para a proliferação de processos naturais que tendem a maximizar o sofrimento e as mortes dolorosas de animais não humanos, tais como medo, fome, doenças e predação.

Tendo em vista a grande quantidade de sofrimento que normalmente prevalece na natureza, fica ainda mais evidente que valores antropocêntricos e valores ecocêntricos que visam conservar ou restaurar certos aspectos do meio ambiente não devem se sobrepor aos interesses dos indivíduos sencientes. Seres sencientes são passíveis de serem prejudicados, tanto por causas antropogênicas como causas naturais. As entidades valorizadas no ecologismo, diferentemente, não possuem interesses: se não são capazes de experimentar nada, não se pode dizer que estão melhor ou pior desse ou daquele jeito. Humanos possuem interesses, mas os interesses em não sofrer e em não morrer são muito mais básicos do que o interesse no deleite estético, por exemplo. E as razões para não permitirmos que seres humanos sejam feridos, contaminados por doenças ou mortos violentamente para promover a manutenção de entidades não sencientes como ecossistemas ou equilíbrio ecológico ou meramente a beleza de uma paisagem estão presentes igualmente quando as vítimas são seres sencientes não humanos – a característica de o sofrimento ser algo negativo e a intensidade do sofrimento não dependem de a vítima ser humana ou não humana.

Devemos, portanto, repudiar as medidas ecocêntricas que impõem danos graves a indivíduos sencientes de outras espécies que vivem em ambientes selvagens. Rejeitar o especismo implica também que, em vez de intervir na natureza para prejudicar e atormentar os animais, como é o que ocorre com a “ecologia do medo”11, devemos investigar formas de atuar nos ambientes naturais com um objetivo completamente diferente: o de ajudar os animais não humanos12, diminuindo – sempre que possível e dentro do praticável – o enorme sofrimento que já padecem devido a incontáveis processos naturais danosos.

Notas

1. Uma introdução ao conceito de “cascata trófica”.

2. Este artigo mostra como a sarna tem afetado os lobos em Yellowstone.

3. Para uma análise dos efeitos da presença de predadores na nutrição de presas, veja: PREISSER, E. L.; BOLNICK, D. I.; BENARD, M. F. Scared to death? The effects of intimidation and consumption in predator–prey interactions.Ecology, v. 86, p. 501–509, 2005 e também: CHRISTIANSON, D.; CREEL, S. A nutritionally mediated risk effect of wolves on elk. Ecology, v. 91, p. 1184–1191, 2010.

4. Por que devemos dar consideração moral a seres sencientes e não a espécies.

5. Para uma crítica recente à restauração de ecossistemas por meio da reintrodução de espécies extirpadas, veja: NOGUÉS-BRAVO et al. Rewilding is the new Pandora’s box in conservation. Current Biology. v. 26, n. 3, pp 87–91, 2016.

6. Estes dois artigos de Ética Animal tratam dos interesses que os animais não humanos têm: interesse em viver e interesse em não sofrer.

7. Este artigo descreve as inúmeras dificuldades da vida na natureza para os filhotes de lobo.

8. Este artigo descreve as várias doenças que afetam atualmente os lobos em Yellowstone.

9. Por que devemos dar consideração moral a seres sencientes e não a ecossistemas.

10. Neste artigo que escreveu para o New York Times em 2015, George Monbiot explica que se sente “ecologicamente entediado” e que tornar a natureza “mais selvagem” com, por exemplo, a reintrodução de predadores, pode tornar o mundo mais “interessante” e “surpreendente” para os seres humanos. Como ocorre tipicamente com defensores desse tipo de intervenção ecologista, Monbiot parece não demonstrar qualquer tipo de preocupação com possíveis graves danos às vítimas não humanas.

11. Para uma crítica mais detalhada à “ecologia do medo”, veja: HORTA, O. Contra la ética de la ecología del miedo: Por un cambio en los fines de la intervención en la naturaleza. Revista Latinoamericana de Estudios Críticos Animales, v. 3, pp. 61-85, 2015.

12. Esta série de artigos da Ética Animal detalha as principais maneiras pelas quais os animais não humanos são prejudicados na natureza devido a danos naturais, e apresenta também estratégias que podemos adotar já para trabalhar por um futuro melhor para os animais selvagens.

Artigo originalmente escrito em 23 de agosto de 2016, revisado e republicado em 19 de maio de 2017.

Por Lara André

Fonte: Perspectiva Animal

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