Vaquejadas: o efeito backlash

Vaquejadas: o efeito backlash
Foto ilustrativa

Impetrada pelo Procuradoria-Geral da República, a ação direta de inconstitucionalidade -ADI nº 4983- acabou por dar margem a maior das derrocadas, recentemente, verificadas em desfavor da luta pelo reconhecimento dos direitos dos animais.

Ajuizada em face da Lei Estadual nº 15.299/2013, do Estado do Ceará, que regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural, a ADI foi julgada procedente, o que desagradou aos segmentos ligados à prática, que articularam-se para a apresentação de uma emenda ao texto constitucional.

Aprovada, a PEC nº 96/2017 acrescentou um parágrafo sétimo ao artigo 225 da Constituição da República para estabelecer que “não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o §1º do art.215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.”

Referida emenda resultou da imediata e intensa reação dos defensores de rodeios e vaquejadas, que buscaram retirar uma suposta força jurídica daquela decisão judicial do Supremo Tribunal Federal desfavorável àquelas práticas, por meio de manobra sustentada por lobbies milionários, orquestrada junto a parlamentares ruralistas, capaz de aprovar normas, e até emendas constitucionais, que atendam aos fortes interesses econômicos correspondentes ao setor político que representam.

A esse retrocesso jurídico, que enseja uma situação normativa ainda pior do que a existente antes da decisão judicial proferida, dá-se o nome de “efeito backlash”. Dessa forma, o acórdão que poderia representar algum avanço em direção à fiel execução da norma constitucional protetiva, acabou por dar causa a um considerável retrocesso.

E o que é ainda pior: a propositura da tal ADI era, absolutamente, desnecessária, uma vez que a realização de rodeios e vaquejadas não se condiciona à existência de lei permissiva, e sim à inexistência de lei proibitiva. A própria ADI já resultou de uma indiscutível impropriedade técnica

Assim como ocorre no caso dos rodeios, pelo sofrimento e pelo risco de lesões permanentes que as vaquejadas impõem aos animais, a prática não pode ser concebida como esporte ou cultura. Constitui sim, crueldade.

Cabe lembrar que a norma constitucional protetiva dos animais, estampada no artigo 225,§1º, inciso VII, é originária, ou seja, promulgada pelo poder constituinte originário, ao passo que o texto da emenda citada deriva do poder constituinte, o que permite o questionamento da constitucionalidade desse dispositivo.

Com efeito, a emenda aprovada faz menção a práticas desportivas “regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos

Ora, as práticas desportivas ali mencionadas, ninguém ignora, são os rodeios e as vaquejadas, atividades rentáveis que incorrem em crueldade inerente, de tal forma, à sua realização, que não há como coibi-la por meio de “lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos”, como impõe a emenda aprovada. E a exposição à crueldade, não é demais repetir, é situação vedada pela Constituição da República.

Na denominada vaquejada, em que dois vaqueiros galopam, em velocidade, no encalço de um animal em fuga, que tem sua cauda tracionada e torcida para que tombe ao chão. O gesto brusco de tracionar, violentamente, o animal pela cauda pode lhe causar luxação das vértebras, ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, estabelecendo-se, portanto, lesões traumáticas com o comprometimento, inclusive, da medula espinhal, como atesta parecer concedido à Uipa, em 1999, pela especialista em neuroanatomia PROF.ª DR.ª IRVÊNIA LUÍZA DE SANTIS PRADA, médica veterinária, Professora Titular Emérita da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo.

Não raro, sua cauda é arrancada, já que o vaqueiro se vale de luvas aderentes.

E da necessidade de se forjar uma perseguição decorre a sujeição do animal à uma tortura prévia, criando-se, artificialmente, uma razão para que o animal adentre a arena em fuga, em momento determinado. O bovino é, então, confinado em um pequeno cercado, onde é encurralado e atormentado, espancado com pedaços de madeira, e submetido a vigorosas e sucessivas trações de cauda, antes de ser solto na arena.

Nem se diga que a vaquejada reproduz procedimentos realizados na lida diária do gado, pois segundo consta da literatura atinente aos métodos de contenção de bovinos, tratamentos clínicos em que há necessidade da derrubada do animal exigem a escolha de um solo plano e macio, coberto com colchões de espumas ou cama de capim. Do contrário, podem ocorrer graves traumatismos, ou até mesmo lesões irreversíveis do nervo radial, que podem levar à paralisia permanente como assevera Duvaldo Eurides em seu livro “ Métodos de Contenção de Bovinos “, p.15 ( Rio Grande do Sul, editora Agropecuária,1998 ). .

Derrubadas são condenadas pelas técnicas de produção pecuária, justamente, por elevarem o estresse e os riscos de fraturas e de morte a que são expostos os animais.

Assim, não podemos fugir à irrefragável conclusão de que regulamentação alguma pode impedir o risco de lesão permanente a que o animal fica exposto, e o sofrimento que lhe é impingido, uma vez que a prática já consiste em perseguí-lo e tracionar lhe a cauda, para derrubá-lo ao solo.

Voltando à emenda, o texto declara que “não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais…”.

Ora, “um certo instrumento , ou uma determinada prova, não deixam de ser cruéis simplesmente porque o legislador assim dispôs. Não se desfaz a crueldade por expressa disposição de lei”, como bem enunciou a Desembargadora Teresa Ramos Marques, , em acórdão exarado contra os rodeios pela 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Com efeito, não há diploma legal que possa alterar a natureza das coisas e dos fatos. Não há norma, nem mesmo de natureza constitucional, que possa legitimar como esporte ou cultura uma prática de natureza violenta, que representa uma ameaça à integridade física e mental dos animais. Sua realização constitui crueldade, a despeito de norma estadual, federal ou constitucional que a autorize e a classifique como cultura ou prática desportiva.

Práticas brutais e abusivas, pelo princípio da moralidade, não deveriam ser objeto de regulamentação, e sim, severamente coibidas até a sua completa abolição. Não pode haver valor cultural, ou desportivo, em prática que imponha sofrimento aos animais.

Por imposição estampada no artigo 225,§1º, inciso VII, da Constituição da República, incumbe ao Poder Público vedar as práticas que submetam animal à crueldade. E essa obrigação possui caráter acautelatório. Ante o risco do dano, compete ao Poder Público prevenir condutas lesivas ao meio ambiente, atuando para a abstenção do ato que represente risco como impõe o princípio da precaução, inserido em nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto Legislativo nº 1, de 3 de fevereiro de 1994.

Ainda que fosse possível atribuir alguma relevância cultural aos rodeios e às vaquejadas, convém relembrar que o Supremo Tribunal Federal, em festejado acórdão contra a “Farra do Boi”, decidiu que o pleno exercício de manifestações culturais não prescinde da observância da norma constitucional que veda a crueldade com os animais.

Quanto à alegação de que os rodeios e as vaquejadas são práticas economicamente rentáveis, cabe mencionar que a Constituição da República condicionou a geração do lucro e de empregos à preservação do meio ambiente, cuja defesa foi elevada à categoria de princípio da ordem econômica, possibilitando ao Poder Público interceder para que a exploração econômica não se sobreponha à tutela ambiental.

Importa ainda destacar que a capacidade de sentir dor, e portanto de sofrer, não difere entre humanos e animais, o que torna ainda mais censurável a primitiva prática de se entreter com o padecimento desses seres. Neurocientistas, de vários países, subscreveram um manifesto afirmando que os animais possuem consciência, uma vez que as estruturas cerebrais que produzem a consciência em humanos também existem nos animais.

Valem, a respeito, as palavras do cientista PHILIP LOW, pesquisador americano da Universidade Stanford e do MIT (Massachusetts Institute of Technology), em entrevista concedida à Revista “Veja” de abril de 2012:

“As áreas do cérebro que nos distinguem de outros animais não são as que produzem a consciência”…Sabemos que todos os mamíferos, todos os pássaros e muitas outras criaturas, como o polvo, possuem as estruturas nervosas que produzem a consciência. Isso quer dizer que esses animais sofrem. É uma verdade inconveniente: sempre foi fácil afirmar que animais não têm consciência. Agora, temos um grupo de neurocientistas respeitados que estudam o fenômeno da consciência, o comportamento dos animais, a rede neural, a anatomia e a genética do cérebro. Não é mais possível dizer que não sabíamos…a habilidade de sentir dor e prazer em mamíferos e seres humanos é muito semelhante.

É preciso ressaltar que nosso ordenamento jurídico reconhece os animais como seres viventes, dotados da capacidade de sofrer, motivo por que são tutelados, inclusive, por norma constitucional.

Por sua brutalidade e natureza inerentemente cruel, a prática das vaquejadas e das provas de rodeios jamais vão se coadunar à Constituição da República, ainda que seu próprio texto, por mal ajambrada emenda e por interesses bem diversos daqueles que inspiraram o nosso festejado artigo 225, §1º, inciso VII, empenhe-se na pretensão de declarar o contrário.

Por Vanice Teixeira Orlandi

Fonte: Olhar Animal

 

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