Ansiedade de separação

Ansiedade de separação

Max, o akita da vizinha, passou a noite chorando. Há semanas uiva ininterruptamente, dia e noite, pois perdeu a mãe e única companhia com quem dividia o espaço diminuto do pátio onde vive. A velhinha da casa ao lado está revoltada: “Porque não prendem ele lá atrás pra gente não ouvir esses gemidos?” Porém, não pretende dizer nada; vive ali há muito tempo e nunca teve problemas com vizinhos. Comento com a veterinária da cidade, ela conhece Max desde que nasceu. “Eles são gente muito boa, os filhos adoram cachorros.” Procuro uma forma de aplacar meu próprio sofrimento. Digo a mim mesmo “Max tem um teto, comida, cuidados veterinários; é muito mais do que a maioria tem.”

Mas então, ouço o uivo novamente. Max precisa correr ao sol, socializar com outros seres, dar e receber afeto. Cães, como todos os seres sencientes, têm seus singelos projetos. Talvez Max simplesmente sonhe em atravessar a rua e cheirar a grama do canteiro da igreja em frente, tão poucos metros, tão poucos… Mas, existem as grades. Animais não humanos não entendem as grades. Talvez, para eles, constituam um mistério metafísico: tudo está ali, mas não pode ser tocado. De onde vêm as grades?

Busco no Google algum texto que possa depositar na caixa de correio da vizinha, clandestinamente, criminosamente, à noite. Anônima, pois bons vizinhos não se metem no quintal do outro. Deus nos livre de infringir as leis da boa vizinhança.

O primeiro link que aparece chama-se “Ansiedade de Separação em Cães”. Ali aprendo que ” a maioria dos pesquisadores concorda que a ansiedade de separação é causada por fatores diferentes, e um fator de grande importância seria a composição genética. Algumas raças são geneticamente inclinadas para a insegurança e ansiedade”. Porém, também cães que sofreram “alguma provação significativa em suas vidas”, como abandono e orfandade precoce, estão propensos a sofrer de ansiedade.

Um fator agravante, alerta o site, é quando os cães “têm uma ligação muito intensa com os seus proprietários”. Animais, adverte, não devem ser muito “humanizados”.

O texto oferece a seguir algumas possíveis soluções. Começar seu dia levando o animal para “um passeio rápido e rigoroso”. A ideia, explica, é “deixar o seu cão em modo silencioso, em repouso enquanto você estiver fora.” Sugere que, ao chegar em casa, não dê nenhuma atenção ao cão: “Não toque, nenhuma conversa, nenhum contato com os olhos.”

Max continua uivando. Começo a calcular a que raios de distância da minha consciência existem animais não humanos em sofrimento. Max está há uns 50m, se tanto. Se alargar para 100m, há o papagaio da outra vizinha. Não sei sua história, mas adivinho: comprado ainda filhote, da mão de algum fedelho que encontrou um ninho, passa a vida numa gaiola de não mais de 0,4m2. Nunca o vi fora dela. Às vezes no sol. Outras na chuva.

Dentro desse raio, há também os gatos abandonados do beco ao lado da fruteira. Um vizinho – sempre eles – , militar aposentado, já prometeu uma bala a cada um, pois fazem barulho e sujeira. Mas provavelmente, alguém usará veneno. Veneno, embora de venda proibida, é bem fácil de comprar, e pode ser usado daquele mesmo jeito: clandestinamente, criminosamente, à noite.

Porém, hoje é um lindo domingo de sol. As famílias saem juntas para almoçar, os vizinhos cumprimentam-se de seus portões, o ruído incômodo do sofrimento de Max, agora, parece incomodar só a mim. E como acontece muitas vezes, lembro-me de Elisabeth Costello, a escritora personagem de John Coetzee no romance A vida dos animais. Em certo momento, exausta de argumentar contra o especismo, Costello pergunta-se: “Circulo perfeitamente à vontade entre as pessoas, relacionando-me perfeitamente com elas. É possível, eu me pergunto, que todas elas sejam participantes de um crime de proporções espantosas? Estou fantasiando tudo isso? Eu devo estar louca! No entanto, todos os dias vejo as evidências.”* 

Max ainda tem muito a sofrer. E eu sofro também. Por um instante, gostaria que Max fosse gemer “lá atrás”.

* I seem to move around perfectly easily among people, to have perfectly normal relations with them. Is it possible, I ask myself, that all of them are participants in a crime of stupefying proportions? Am I fantasizing it all? I must be mad! Yet every day I see the evidences. (COETZEE, J.M. The lives of animals,1999)

Por Liège Copstein

Fonte: Olhar Animal

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