Antonio Costella, editor pioneiro dos direitos animais no Brasil

Antonio Costella, editor pioneiro dos direitos animais no Brasil
Antonio Costella e Chiquinho

Por Laerte Levai, jornalista ambiental

Conheci Antonio F. Costella em 1978, no curso de jornalismo da Faculdade de Comunicação Social Cásper Libero, tendo ele sido meu professor de Direito da Comunicação. Acompanhei o desenvolvimento de sua obra pela editora por ele criada, a Mantiqueira. Revi-o em Campos do Jordão nos anos 90, quando os animais se tornaram parte imprescindível de sua linha editorial, sentindo-me honrado com o convite para escrever o primeiro livro brasileiro que se chamou Direito dos Animais. O que eu gostaria de dizer, depois desses anos todos, não cabe nesta entrevista, haja vista a grandiosidade e os predicados do nosso entrevistado. Quatro décadas depois, de volta ao Jornalismo pelo site Olhar Animal, resta-me entrevistá-lo para mostrar a importância de um editor que, desde o final do século passado, não teve receio em publicar títulos em defesa dos animais. Falar sobre Antonio Costella é falar sobre a série Patas na Europa e todos os seus Animais Ilustres, para que as gerações atuais possam conhecê-lo e admirá-lo. Se bem que nada do que eu possa escrever sobre seus livros e seu principal protagonista, o cão Chiquinho, seria capaz de traduzir a magnitude da obra-prima do autor.

Na bibliografia que compôs à frente da editora Mantiqueira, Antonio Costella reúne muitos livros que contam histórias de animais, como a consagrada série Patas na Europa (em quatro volumes, de 1993 em diante) e a série Biografia de Animais Ilustres, que inclui Vida de Cachorro – Biografia não autorizada (1994), Bucéfalo, o Grande (1996), Dick, o Herói (1996) e Cacareco, o Vereador (1996). Na área infanto-juvenil escreveu A Gata Micholas e a praça (1996), Como cuidar caninamente de seu Cão (1998) e Ter Cão é Coisa Séria (1998). Na mesma década editou o jornal Tribunal dos Bichos. Verifica-se, assim, que a editora se voltou aos animais, a ponto de torná-los protagonistas das histórias e merecedores de direitos básicos. Nesta entrevista concedida com exclusividade ao OLHAR ANIMAL, Antonio Costella conta como o cão Chiquinho, narrador de Patas na Europa, transformou a sua vida, inspirando-o ao compromisso editorial de respeito a todos os seres. Também fala de outras significativas publicações da Mantiqueira lançadas ao final do século XX, a tratar da psique e senciência animal e do direito dos animais.

OLHAR ANIMAL – Escritor, professor universitário, artista plástico, editor, poeta, diretor do Museu da Xilogravura, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, da Academia Paulista de História e da Academia de Letras de Campos do Jordão, além de ser detentor do Prêmio Luiz Beltrão de Comunicação, são muitas as suas atividades culturais em que recorre à palavra escrita, falada ou representada, para ensinar, contar histórias e refletir sobre a vida e a arte. De onde veio essa vocação intelectual tão proeminente e que lhe caracteriza a própria existência? Alguma inspiração ou influência especial para trilhar tantos e surpreendentes caminhos?

ANTONIO COSTELLA – A principal influência que tive foi de minha mãe. Quando menino, morador no bairro das Perdizes, em São Paulo (época em que eu levava para casa todos os bichos que encontrava na rua, mas ainda sem noção alguma da realidade e natureza dos animais), ela me estimulou aos caminhos do saber, dizendo que tudo que se aprende interessa, que todo conhecimento é útil. Na adolescência, para satisfazer a curiosidade que em mim sempre se mostrou aguçada, passei a assistir, na escola ou fora dela, palestras sobre assuntos dos mais variados. Houve um tempo em que eu ia diariamente ao centro da cidade para assistir palestras, no Instituto Brasileiro de Filosofia, na Aliança Francesa, no Centro Dom Vital. Até curso de esperanto frequentei. Eu já gostava de história, de literatura, de arquitetura, de jornalismo, da arte em geral e, também, de escrever (comecei esta atividade, aliás, em um jornalzinho de Atibaia, aos 15 anos). Hoje vejo que eu deveria ter escolhido como profissão jornalismo, história ou mesmo arquitetura. Mas o fato é que depois de um teste vocacional inconclusivo, acenando para diversas possibilidades, fiz o curso científico no Colégio Dante Alighieri pelo fato de a preparação para o vestibular ser mais forte. Depois de visitar uma faculdade de odontologia e sentir o cheiro de formol que vinha de seus laboratórios, afastei-me de qualquer pretensão na área médica. Foi nesse tempo que assisti a uma excelente conferência na faculdade de direito do Largo São Francisco, proferida por um famoso urbanista francês, Padre Lebret. Fiquei encantado com o que ouvi, com o ambiente mais formal da faculdade e com a arquitetura neocolonial do prédio secular. Embora tenha enfim decidido pelo direito, por exclusão (e sobretudo por influência dos pais), nunca gostei da advogar e, mesmo assim, exerci a profissão por dez anos, inicialmente no escritório de José Freitas Nobre e depois por conta própria. Eu também me tornei, mediante concurso público, procurador jurídico do município de São Paulo. Mas o fato é que abandonei a advocacia para dar aulas na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. No magistério, substitui Carlos Rizzini nas disciplinas História do Jornalismo e Freitas Nobre em Legislação dos Meios de Comunicação. Em 1970 tive publicado meu primeiro livro, O Controle da Informação no Brasil (Editora Vozes), depois saiu Crimes Contra a Honra e os Meios de Comunicação (ECA/USP, 1972) e na sequência, Direito da Comunicação (Editora RT, 1976). Com as aulas que passei a dar em faculdades de jornalismo, além de proferir palestras nessa área, tornei-me, sobretudo, professor. Até esse tempo, exceção feita aos bichos que, quando menino, levava obsessivamente para casa e cujos cuidados recaiam sobre minha mãe, não tive em minha companhia animal nenhum.

OLHAR ANIMAL – Versos seus: “Ei, passarinho, passageiro do vento / Leve as rimas e o lamento / Pouse em um galho qualquer do tempo / Esqueça tudo e o tema / Cante apenas / Pois sem o menor esforço / Invejavelmente / Você já é o poema” (Currículo do Tempo). Esses versos de Passarinho, compostos no mesmo ano da promulgação da atual Constituição Federal, parecem traduzir o que já vinha no vento, pela voz da Natureza. Como se deu o surgimento da Editora Mantiqueira com seu compromisso voltado ao respeito à Vida?

ANTONIO COSTELLA – As obras citadas na pergunta anterior mostram que antes eu tinha sido, até então, só autor, recebendo das editoras um percentual pelas vendas. Foi nessa época que investi, por conta própria, em um projeto ficcional, meu livro O Chão e a Nuvem (1976). Depois de conhecer uma gráfica por dentro eu me apaixonei pelo mundo da impressão, formatei o livro e acabei desenhando até sua capa. Foi uma experiência fascinante. Isso estimulou em mim a ideia de atuar na área editorial. Naquela ocasião o Mário Graciotti, criador do Clube do Livro, propôs que eu seguisse nessa área. Mas seria uma atividade muita trabalhosa para conciliar com meus outros afazeres, de modo que resolvi montar a própria editora e trabalhar no meu ritmo. Assim surgiu a editora Mantiqueira, em 1977, lançando no ano seguinte o livro Comunicação – do Grito ao Satélite, que fala da história dos meios de comunicação. Em 1988 saiu o livro de poemas Currículo do Tempo, quando a Mantiqueira se instalou em Campos do Jordão. Até então a editora se propunha a publicar temas de ciência e arte, sem um perfil definido e cuja identidade ainda estava por vir. Isso se deu, em particular, no início dos anos 90, com o lançamento do livro protagonizado pelo cão Chiquinho, Patas na Europa.

OLHAR ANIMAL – A trajetória que teve como escritor foi marcada pelo aparecimento, em sua vida, de Chiquinho, que desde cedo foi um cão viajante: primeiro nos deslocamentos intermunicipais de automóvel; depois em solo europeu, de Portugal a Grécia, tornando-se protagonista do festejado livro Patas na Europa (1993), cuja série continuou com Patas 2 – A Viagem Continua (1994), Patas 3 – Ossos de Pizza (1995) e Patas 4 – A Odisséia Final (2000). Esse convívio com ele trouxe-lhe muitos aprendizados e descobertas. Fale um pouco da transformação interior que lhe permitiu ver o Outro, um animal de quatro patas, que se tornou narrador personagem de tantas histórias e reflexões. Quem foi Chiquinho e o que ele representa em sua biografia?

ANTONIO COSTELLA – Chiquinho, que nasceu no dia 4 de outubro de 1980 (daí seu nome em homenagem ao santo protetor dos animais), representou uma grande mudança em minha vida. Tudo o que eu sempre fiz, imaginava alguma maneira de colocar na linguagem escrita. Sempre foi assim. Em um curso de xilogravura, já na primeira aula, pensei em como escrever o que aprendi. Isso gerou depois os livros Xilopoemas (1982) e Xilogravura – Manual Prático (1987). Com a viagem à Europa não foi diferente, queria escrever algo, mas o fato de Chiquinho estar junto deu um toque especial à história. A partir do momento que me propus a escrever Patas na Europa, tendo ele como narrador, passei a pesquisar sobre a vida animal. O cão como alguém que possui personalidade, caráter, dignidade; também pesquisei sobre aspectos múltiplos da história a ser contada. Como Chiquinho dormia na biblioteca de minha casa, em meio a centenas de livros, digamos que ele assimilou conhecimentos universais a ponto de dialogar tão bem com as outras personagens. No que se refere à interação de Chiquinho com tantas personalidades históricas, tive de pesquisar lugares de interesse ao enredo, assim como a relação de vultos do passado como Pitágoras, Júlio Cesar, Napoleão, D. Pedro I, Alexandre o Grande, Michelangelo, dentre outros, com os bichos. Procurei coisas da história que não aparecem nos livros de história. Com essa obra e tudo o que ela me propiciou, passei a ver a natureza sob outra ótica, não apenas como fruidor e sim integrante dela e comprometido com sua defesa. Isso me levou a enxergar certas coisas de modo diferente das quais eu via, por exemplo, o centro de controle de zoonoses agora se mostrava a mim como lugar de sacrifício de cães errantes e os zoológicos como presídios para exibição de animais. Quando Patas na Europa alcançou sucesso comercial, despertando interesse de outras editoras para a continuidade da série, optei em manter o livro na editora Mantiqueira, que se voltara para a publicação de assuntos relacionados a proteção animal e ao respeito à vida. Olha que durante muito tempo eu fui conhecido como autor de livros de comunicação, tanto que esse era o tema de 9 entre 10 palestras que eu ministrava. Depois de Patas na Europa (que foi o meu 11º livro), esse placar se inverteu e passei a ser “o homem do cachorro”, que falava sobre o respeito devido aos animais.

OLHAR ANIMAL – Frases de Chiquinho no livro: “Muitos humanos pensam que o mundo se divide em dois setores, totalmente estanques e distintos. De um lado eles, humanos, os racionais; de outro, nós, bichos, os irracionais. Irracional é essa divisão”; “Os cientistas, hoje, já consideram que a inteligência não é um dom exclusivo dos humanos. Em verdade, há no mundo animal uma gradação da inteligência”; “Justamente por ser um privilegiado, enorme deve ser a responsabilidade moral do homem. É seu dever não abusar de seus ´irmãos´ menos afortunados, tenham eles quatro mãos, quatro patas, duas asas ou nenhuma”. Em outra passagem, Leonardo da Vinci dialoga com Chiquinho: “Sempre apreciei muitíssimo os animais e lhes dei grande valor. E não foi por acaso. Filosoficamente, minha postura foi manifestamente animista. Para mim a natureza inteira é animada em almas diversas. As rochas, as plantas, os animais e os homens são expressões várias de uma mesma força vital”. Noutro trecho é Pitágoras quem fala: “Todas as formas de vida merecem igual respeito. Por isso não vejo diferença entre matar um homem e matar qualquer outro animal. Daí, ser eu um vegetariano. Não creio ser defensável comer carne”. Como veio a ideia de “ressuscitar” algumas célebres personalidades do passado para compor o enredo? Patas na Europa repercutiu em outros projetos da editora Mantiqueira?

ANTONIO COSTELLA – Sobre a história a ser contada em Patas na Europa havia dois caminhos que se abriam ao escritor, um era o fato narrado ter ocorrido em função do lugar exato onde eu estava e outro era relacionar o episódio a alguma figura histórica daquela região. Mas tudo acabou inserido dentro do ambiente em que a viagem se desenrola, intercalando-se realidade e ficção. Observo que na cidade do Porto está o coração de Dom Pedro I. Já Napoleão aparece no mesmo local onde se vestira de estafeta para se livrar da multidão. Há também lugares em que o fato ou o ambiente sugerem a cena. O arqueólogo Schliemann aparece duas vezes, primeiro no navio que passa perto de Ítaca e depois em Micenas, para contar a Chiquinho um pouco de suas viagens e descobertas. Pitágoras, símbolo da sabedoria, surge em Delfos, que é um lugar mítico da história. Já Leonardo da Vinci, por sua importância artística, aparece na Itália. Ou seja, no enredo de Patas na Europa uma coisa puxa a outra. Quanto às frases de Chiquinho, acima transcritas, elas já desafiavam o mito da irracionalidade animal e reforçavam o dever moral humano de proteger os bichos. O interesse pelo tema dos animais fez com que eu editasse o jornal Tribuna dos Bichos, periódico impresso em papel e direcionado exclusivamente a assuntos animais de interesse da sociedade e das entidades protetoras. Em 1998 a editora Mantiqueira lançou o livro Ter Cão é Coisa Séria, que alcançou a extraordinária marca de mais de 100 mil exemplares impressos porque a prefeitura de São Paulo, pela Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, investiu nos assuntos relacionados à proteção animal. Por isso adquiriram a edição para distribuir nas escolas, juntamente com outros materiais didáticos que vinham em uma sacolinha pedagógica. Foi um texto muito usado para fins educativos aos estudantes da rede pública municipal de São Paulo.



OLHAR ANIMAL – O grande divisor de águas em sua vida talvez seja Patas na Europa, que em 2021 recebeu uma edição completa com os quatro volumes originais e incluindo Vida de Cachorro. Mais do que um livro de viagem, ele traz em si elementos de história, de memória, de realidade e de ficção. A originalidade da obra é o fato de que a narração vem do próprio Chiquinho, seu protagonista, permanecendo o autor do livro e sua esposa como personagens coadjuvantes. Cabe observar que a narrativa literária transita entre a verossimilhança, a fábula e até o fantástico, quando o cão interage com vultos históricos trazidos do passado e uma personagem fictícia, o Templário, que estabelece um interessante contraponto no enredo. Também há uma passagem emblemática em meio à viagem de carro, estando o padrinho ao volante e Chiquinho com a cabeça encostada em seu ombro para ver melhor e mais longe. Sobre as peculiaridades da construção ficcional, qual o papel de Chiquinho – na sua irmandade aos seres humanos – como figura central da história contada?

ANTONIO COSTELLA – Se Chiquinho não tivesse aparecido em minha vida esse percurso que fiz na Europa talvez gerasse um livro de viagens comum. Mas foi diferente. A ideia de colocar o cão como narrador da aventura, apoiando-se em fatos reais relacionados à vida das personagens históricas de épocas antigas, na rotina das comunidades visitadas, assim como à ficção que tem como peça-chave o Templário Teobaldo, costuma ser apontada como responsável pelo sucesso da série. O único personagem que não existe, historicamente, é Teobaldo. Eu precisava de alguém para fazer essa passagem do real para o fantástico, mais ou menos como Dante Alighieri o fez na Comédia Humana, ao viajar ao inferno com Virgílio e ao céu com sua musa Beatriz. Por meio desse recurso ao fantástico, Chiquinho atravessava barreiras físicas e visitava os lugares normalmente vedados a cães, como mosteiros, sítios arqueológicos, igrejas, museus… Se bem que em determinado trecho do livro Chiquinho chega a dizer a Ulisses: ´você não existe, é uma invenção do Homero´. Em linhas gerais, isso tudo era a carpintaria da história de Patas na Europa. Lembro que durante o trajeto viário Chiquinho ficava no banco de trás do carro, dificilmente se deitava, ao contrário, permanecia em pé sobre as quatro patas e nos trechos de curva geralmente apoiava o focinho no meu ombro para visualizar as coisas de cima. Isso definiu em mim a escolha do narrador da história. Afinal, se o cão estava vendo o mesmo que eu via, então ficou decidido: ele será o narrador. Sobre o livro com todos os volumes reunidos, essa edição completa havia saído antes pela editora Ediouro em 2008. Mas findo o contrato eu preferi reeditá-lo pela própria Editora Mantiqueira, em 2021, com a capa que entendi mais adequada.

OLHAR ANIMAL – Não se pode negar que seu estilo de escrever é leve, fluente, instigante, de fácil compreensão e, mesmo quando trata de assuntos sérios, nunca perde o bom humor. Analisando o livro Patas na Europa sob o ponto de vista editorial e estético, nota-se uma constante preocupação em dar a devida importância a Chiquinho, preocupação essa que se manifesta também nos detalhes de capa e nas dedicatórias. Ali o cão surge fotografado com o cachecol típico do inverno europeu e apõe com a pata sua “assinatura” ao lado do nome do autor. Na página de abertura, enquanto a dedicatória autoral se volta aos cães em geral e a todos os bichos encontráveis na natureza, Chiquinho dedica o livro “aos humanos que gostam de cães e, em especial, a meus padrinhos”. Ou seja, cão e humano aparecem em igualdade de condições neste livro, sugerindo uma visão mais generosa de mundo. Acredita que o sucesso alcançado pela obra vem das particularidades de sua apresentação, de seu enredo e, sobretudo, pelo fato de Chiquinho ser o protagonista das histórias?

ANTONIO COSTELLA – Talvez o conjunto disso tudo. Lembro que no teatro se costuma dizer que criança e bicho roubam a cena, atraindo a atenção de todos para a história representada. Na literatura o narrador sendo um cachorro acaba também tendo esse mesmo papel. Acho que foi assim com Chiquinho como protagonista de Patas na Europa. Se bem que muitos outros fatores ajudaram no sucesso editorial da obra. Um deles, sem dúvida, foi minha participação com Chiquinho no programa do Jô Soares, que repercutiu junto à mídia, abrindo a pauta para muitos jornais, rádios e TVs. Foi impressionante, em meados dos anos 90, o impulso que tal entrevista deu na divulgação do livro. Cabe também dizer que Patas na Europa servia a leitores com objetivos diversos. Para o viajante, o cão narrador e suas peripécias representavam um possível trajeto turístico a fazer. Eu soube de gente que fez a mesma viagem seguindo o roteiro do livro. Já para quem gosta de história, os episódios narrados no livro constituem um atrativo para repetir o caminho que envolve personalidades e acontecimentos marcantes. Esse conjunto de coisas, englobando a viagem que alcançou Portugal, Espanha, França, Itália e Grécia, assim como os fatos históricos relacionados aos lugares visitados, além do recurso literário ficcional, tudo isso deu força ao livro. E, é claro, a participação ativa de Chiquinho, somada aos caracteres da capa, da impressão digital dele e, ainda, da arte criada pelo desenhista Eduardo Baptistão, que fez a estilização da fotografia de capa do livro, que se tornou logotipo da editora. Em resumo, tudo isso fez parte do processo de criação da obra.

OLHAR ANIMAL – Ao final do século XX vemos que, enquanto editor, publicou livros que abordaram certos mitos da ciência, como A Alma dos Animais (Irvênia Prada) e, também, do direito, ao inserir no mercado jurídico o provocativo título Direito dos Animais (Laerte Levai). Isso sem esquecer dos livros Vítimas da Ciência (Tâmara Bauab) e Direito da Natureza (Roberto Carramenha). Sua editora foi pioneira em falar de psique e senciência animal, inaugurando a vertente dos direitos animais e da natureza sob uma denominação não-antropocêntrica. Como decidiu tratar de questões tão delicadas que, na época, contrariavam o senso comum? Tem conhecimento de que o Direito dos Animais lançado pela Mantiqueira foi o primeiro que surgiu no país, acenando para um novo ramo jurídico mais de duas décadas antes de o Direito Animal tornar-se disciplina jurídica autônoma do Direito Ambiental, com doutrina consolidada e jurisprudência assentada até nos tribunais?

ANTONIO COSTELLA – Quando saiu o primeiro volume de Patas na Europa, época em que eu era Secretário de Educação em Campos do Jordão, passei um ano viajando. Foram muitos os convites para fazer palestras, se antes eu fazia nove de comunicação e uma de bichos, logo essa ordem se inverteu. Lembro de uma palestra que dei em São Carlos, quando fui visitar uma casa que parecia um santuário de animais e tive contato com duas médicas veterinárias que participaram do evento. Lá conheci Irvênia Prada, que proferiu uma palestra sobre psique animal e muito me impressionou, a ponto de eu convidá-la a desenvolver o tema. Pensei na ocasião, ou todos temos alma ou ninguém tem. Ora, se compartilhamos o mesmo projeto biológico, embora desenvolvido de formas diferentes, não é possível que apenas uma espécie seja privilegiada. Na oportunidade eu propus que ela escrevesse um livro sobre a questão e assim nasceu A Alma dos Animais, lançado em 1997. Mais à frente, ainda na área científica, o tabu da vivissecção também foi questionado em publicação da nossa editora, desta vez por Tâmara Bauab (Vítimas da Ciência). Já a propósito da linha editorial de respeito à vida, que motivou as publicações de Laerte Levai (Direito dos Animais) e de Roberto Carramenha (Direito da Natureza), creio que essa expansão de temas decorreu da evolução de meu pensamento em relação aos animais. À medida em que fui pesquisar e estudar o assunto, fui me convencendo de que eles deveriam ser considerados e protegidos. As coisas foram acontecendo naturalmente, seja em temas da área científica, seja no campo jurídico. Fico feliz em saber que o título Direito dos Animais foi o primeiro de tantos outros livros que depois surgiram no Brasil com a mesma temática, inaugurando um novo ramo do direito. E, também, enalteço sua coragem em se prontificar, naquela época, em escrever sobre algo ainda não reconhecido no meio jurídico, até porque os animais eram considerados objetos. As coisas do mundo são mais complexas do que parecem, nada acontece de modo isolado e sim por um conjunto de fatores. No tempo em que fiz o curso jurídico se falasse em animais como sujeitos de direito seria taxado deliberadamente de louco. Um aluno de hoje não pensa assim, mas a concepção do direito sessenta anos atrás considerava heresia jurídica atribuir direitos aos animais. De qualquer modo, é uma surpresa agradável saber das decisões mais recentes dos tribunais e ver que, de alguma forma, as publicações da editora Mantiqueira ajudaram a inspirar muita gente para a defesa dos animais.

OLHAR ANIMAL – Voltando ao cão viajante, não há como esquecer o drama do protagonista de Patas da Europa ao ser embarcado no avião. É sabido que, em razão do convite para que ministrasse aulas de Jornalismo em Portugal, separar Chiquinho de seus padrinhos humanos causaria ao cão angústia e, possivelmente, doença fatal, conforme atestado por especialista veterinário. Daí a decisão do casal em viajar com o animal, apesar dos entraves burocráticos para o embarque e o sistema opressivo representado pelo caixote no porão da aeronave. Tantos anos depois vemos o Poder Judiciário começando a decidir contrariamente ao despacho de cães como mercadorias, isso após a morte de um deles e a comoção pública ocasionada nas redes sociais. O próprio Ministério de Portos e Aeroportos criou agora um Grupo de Trabalho para propor melhorias nos padrões de transporte aéreo de animais. Seja como for, Patas na Europa desde o início tratou desse sério problema. O que pensa dos avanços iniciais do setor aeroviário em relação aos animais de estimação?

ANTONIO COSTELLA – A viagem a Europa, após o convite para eu lecionar na Escola Superior de Jornalismo do Porto, trouxe um problema: o Chiquinho. Se o deixássemos por tanto tempo sem nosso convívio ele provavelmente não resistiria. Como mencionei no livro Vida de Cachorro (1995), Chiquinho sempre me acompanhava entre Campos do Jordão e São Paulo, porque não tínhamos como quem deixá-lo e isso nos deu a companhia permanente do cão. Tal fato criou uma certa dependência nele e certa vez, sem que pudéssemos levá-lo à capital, magoou-se e até deixou de comer. A conclusão do médico veterinário que consultei antes da viagem foi justamente nesse sentido, ou seja, se partíssemos os dois sem o Chiquinho, ele provavelmente morreria. Tivemos um caso concreto em que um professor conhecido foi lecionar na Argentina e deixou sua cachorra em casa. O animal parou de comer e morreu. Tudo isso me deixou preocupado e decidi levar Chiquinho junto. Foi uma viagem de cão, como toda viagem aérea o é para os animais, com o caixote despachado no bagageiro do avião e uma série de exigências burocráticas. Quando Chiquinho desembarcou em Portugal, chegou desacordado e faminto. Ao sair com ele da Grécia, no início da viagem de volta, despachei-o no caixote e assim que entrei no avião insisti com toda a tripulação para avisarem o comandante que havia um cachorro lá embaixo, que precisava de ar. Mas depois fiquei sabendo que ninguém o tinha avisado, Chiquinho poderia até morrer. Não me levaram muito a sério. Isso é um risco muito grande nesse tipo de viagem. Sobre o assunto do embarque aéreo de animais, li certa vez nos jornais que um juiz autorizou, tempos atrás, que uma cachorrinha viajasse na cabine porque a responsável por ela não podia, do ponto de vista psicológico, afastar-se do animal. Fico contente em saber das medidas judiciais e administrativas que hoje se veem em favor da melhoria das condições dos animais embarcados em aviões, considerando-os em função deles próprios e de seus direitos. Mas se eu pudesse opinar sobre viagens de animais, diria que é algo hostil para eles. Ao longo da vida e, por experiência própria, passei a dar o seguinte conselho: se você tem um cão, ao invés de levá-lo viajar de avião é melhor prepará-lo para ele ficar sozinho enquanto você viaja. Porque o mundo não foi feito para cães voarem, eles ficam mais confortáveis em suas casas.

OLHAR ANIMAL – Na sensível homenagem póstuma que deixou ao cão Chiquinho, intitulada Vida de Cachorro – biografia não autorizada (1995), a narrativa pungente não consegue esconder o vínculo de afeto que se estabeleceu na relação que se pode chamar, hoje em dia, de família multiespécie. Nessa sua pequena obra-prima memorialista que conta a história de um amor incondicional, entre humanos e um cão, há surpresas para lá de interessantes. Que mudanças caninas operaram em sua vida após a viagem? E sobre seu legado testamentário voltado à futura transmissão do prédio da Casa da Xilogravura, em cujo quintal foi sepultado o Chiquinho, o que tem a ver com a memória de seu querido companheiro de quatro patas?

ANTONIO COSTELLA – Quando fiz a viagem à Europa o Chiquinho tinha oito anos de idade e ainda viveu por mais seis. No livro Vida de Cachorro, que é um tributo a ele, eu falo dessas transformações da seguinte maneira: “A viagem não mudou somente a mim. Mudou também o Chiquinho. Talvez por ter ficado os três meses muito junto a nós, até dormindo no mesmo quarto. Ele abandonou a desdenhosa altivez antiga e assumiu um comportamento mais afetuoso. Passou a procurar com mais frequência nossa companhia. Nos anos seguintes, enquanto eu pesquisava ou escrevia ´Patas na Europa´, o Chiquinho, já mais velho, sempre se acercava de mim, cutucava minha perna com a ponta do focinho, como a pedir um afago, e deitava-se, depois de afagado, no chão ao meu lado. Desse tempo em diante, não mais me senti dono do Chiquinho. Passei a vê-lo, não como um objeto de posse, mas sim como um ser vivo, em tudo equivalente a mim e com o mesmo direito de viver, que eu. Afinal, éramos ambos simples inquilinos do mundo, esta imensurável propriedade coletiva que já pertenceu a bilhões de seres, antes de nós e pertencerá a outros tantos, no futuro”. Sobre a cláusula testamentária é preciso dizer que originalmente condicionei a doação da Casa da Xilogravura e seu acervo (museu mantido pela Editora Mantiqueira) à Universidade de São Paulo, desde que os despojos de Chiquinho permanecessem no mesmo jardim em que se construiu seu memorial. Mas essa cláusula não existe mais. Como o reitor da USP não aceitou a doação post mortem, a mesma proposta foi encaminhada agora ao Instituto Brasileiro dos Museus-Ibram, do governo federal, a fim de que o Patrimônio da União possa recebê-lo e, assim, atender as recomendações feitas por mim. Já fiz um testamento particular nesse sentido.

Fonte: Olhar Animal

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