As exceções implícitas no direito dos animais

As exceções implícitas no direito dos animais
Foto: Vottus.com

Por Luh Pires

O olhar complacente para os animais é algo novo. Talvez as novas gerações não percebam, pois, hoje, as redes sociais são abarrotadas de bichinhos fofos e postagens que são alvo de protestos contra os maus-tratos; mas tudo isso é inédito para as demais gerações. Eu cresci cercada de martírio aos animais num universo onde isso era muito natural e nossos pais nos diziam claramente que os animais existiam para servir o homem. Não há como negar que fomos nós, da geração X e Y, as molas transformadoras a romper com esses paradigmas trazendo um “Despertar” para esse novo prisma em relação ao respeito e a ética animal. E o instrumento mais relevante para toda essa transformação, com certeza, são as mídias sociais que passaram a trazer mensagens cheias de alertas e informações, antes mascaradas pela publicidade. Com isso, os feeds são recheados de vídeos deliciosos que desencadeiam um olhar benevolente que despertam empatia, reconhecimento e proximidade.

Foto: Iastampa.it
Foto: Iastampa.it

Curiosamente, os animais retratados na maioria das peças que rolam na internet produzindo tanta ternura e atenção das pessoas são aqueles dos quais os seres humanos, há milhares de séculos, vem domesticando, ou ainda, animais exóticos e silvestres que, com a caça predatória, o desmatamento, degelo das calotas polares e outras catástrofes causadas por impactos ambientais passaram a sofrer risco de extinção. Na classe dos animais marinhos, o olhar piedoso parece contemplar somente as grandes e majestosas espécies, como golfinhos, baleias, leões-marinhos, tubarões, etc.

Ficam de fora do olhar condescendente todas as demais espécies: insetos, peixes, aves domésticas como as galinhas, patos, codornas e também os animais considerados de corte, são eles, todos os tipos de rebanhos: bovinos, suínos, cabras, ovelhas…

Mas afinal, eles também não são animais?

A compaixão ainda é especista e contempla o direito dos animais apenas a alguns, condensando os demais como fonte de subsistência para toda sociedade. A verdade é que os meios de comunicação ainda são patrocinados pela agroindústria, indústria da moda, de entretenimento e farmacêutico, que acabam produzindo um lobby de necessidade exploratória quando visam alguma espécie de lucro. É o caso dos cães beagles, e até mesmo os hamsters, resgatados do Instituto Royal que, mesmo sendo animais domésticos, ainda sofrem do preconceito que predomina na mente da maioria, a influência da suposta “cura” que a ciência pode trazer com experimentos em animais. Sendo assim, de maneira hipócrita, o direito dos animais termina quando entra o linear da busca pela manutenção da vida humana; como se fosse um direito matar milhares de vidas para testar e salvar outra espécie considerada “superior” por métricas de importância produzidas pela própria espécie que explora.

E o que é o Direito dos Animais?

Se você fizer uma busca com o termo ‘Direito dos Animais‘, a primeira opção será a Declaração Universal dos Direitos dos Animais da ONU concebendo que Todos os animais nascem iguais diante da vida, e têm o mesmo direito à existência.

A advogada Barbara Hartmann Cardoso, Presidente da Comissão de Defesa dos Animais da OAB/SJ explica que, no Brasil, temos o artigo 225 da Constituição Federal, que é a nossa lei maior, o qual trata do direito ao meio ambiente, e isso inclui os animais, tendo em vista serem considerados parte do meio ambiente anexando todas as criaturas nos termos de legislação infraconstitucional à Lei 9.605/98 que trata de crimes ambientais. Essa Lei, em seu artigo 32, criminaliza maus-tratos aos animais, e, hoje, qualquer decisão judicial que trate de tortura animal é baseada por este item, como por exemplo, a decisão do STF que criminalizou a farra do boi. Uma falha desse artigo é que a pena ainda é muito branda, o que não faz com que as pessoas tenham receio de cometer esse crime, pois quando resulta em condenação, acaba sendo para pagar algumas cestas básicas. Na prática, essa lei não é devidamente aplicada por dois motivos: falta de fiscalização adequada, e, conforme mencionado, a penalidade que não conduz ao medo. “Infelizmente, a Policia Militar Ambiental não dá conta de todos os crimes que ocorrem contra animais, pois além de não terem um grande efetivo, ainda existe toda uma grande demanda outros crimes ambientais.”, ressalta a advogada, e continua: “Outra barreira para a aplicações de punição e aplicação dessa lei é a questão cultural. Um exemplo disso é o caso dos rodeios e vaquejadas que, indiscutivelmente, tratam-se de casos de maus-tratos, mas que encontram uma grande barreira no âmbito considerado “cultural” e o fato de termos um congresso extremamente conservador e que lucra com o incentivo a tais práticas é o que atrasa muito a pauta animal.” Recentemente, a Dra. Bárbara Hartmann Cardoso foi responsável pela primeira liminar do Brasil que concedeu direito à liberdade aos animais de corte de uma manada de 40 bois em Santa Catarina que foram levados para viverem em liberdade até o fim de suas vidas em Santuários vegetarianos. Essa tomada de decisão judicial foi histórica porque animais de corte são usados de maneira contumaz para maus-tratos; não existe outra forma de um bife chegar à sua mesa.

Foto: Ibiaba Press
Foto: Ibiaba Press

Tudo isso nos faz perceber que os direitos dos animais vigoram, principalmente, quando há comoção pública, porém, tudo depende da interpretação dos magistrados com base real em suas crenças e na esfera como os animais são recebidos dentro de uma determinada sociedade. O que falta realmente é a transformação cultural acerca da ampla dignidade na esfera judicial e como os animais devem ser tratados, uma vez que implica muito mais na maneira cognitiva e antropocêntrica em que a sociedade constrói uma pirâmide imaginária de importância onde o ser humano é o topo de todas espécies, podendo, para seu benefício, explorar todas as demais. A zona de conforto também está muito associada a toda essa exploração, quando muitos expressam sentir pena, mas não conseguem abrir mão de churrasco, bacon e até mesmo insumos nos mais amplos aspectos. A religião também promove argumentos distorcidos para comentar a exploração.

A aplicação da lei, muitas vezes, parece beneficiar mais aos interesses dos ricos e poderosos. Basta lembrar da gigante manifestação que ocorreu quando centenas de caminhões se dirigiram ao Congresso percorrendo milhas e milhas com caminhões abarrotados de bois, fechando estradas. Transportar esse tipo de animal não é como levar cães e gatos de um lado para o outro. Há toda uma gama de processos burocráticos a serem cumpridos para evitar o abigeato e também produzir um controle dos animais de corte, dos quais, os pecuaristas pagam impostos ao Ministério da Pecuária. Nenhum animal trafega sem a chamada GTA (Guia de Transporte Animal), que só é retirada mediante longos processos que envolvem cadastro, vacinas periódicas, controle de manejo, registro de brincos, pagamento de recibos, entre outros controles. Quem aqui acredita que todos aqueles caminhões de pequenos e médios criadores que se manifestaram em prol da vaquejada vindos de todos os locais do Brasil possuíam GTA? A verdade é que o lobby do entretenimento fomentado pela própria indústria permitiu isso. Essa mesma facilidade não acontece com protetores e ativistas de resgate. Quando você resgata um animal de grande porte, como um bovino, dificilmente consegue cruzar rodovias para levá-lo para um Santuário, tudo porque, na compreensão dos órgãos da agricultura e pecuária, esses animais “devem ser abatidos”, uma vez que são considerados meros produtos.

Em Santa Catarina, nem os animais resgatados pela Polícia Militar oriundos da cruel e criminosa farra do boi podem ser entregues aos ativistas, uma vez que os farristas retiram os brincos dos animais para que não seja identificada sua origem, assim sendo, a Cidasc, órgão de controle do Ministério da Pecuária, os considera fruto de abigeato ou animais clandestinos, não permitindo que equipes de resgate possam tutelá-los; muitas vezes abatendo o animal ali mesmo.  Até mesmo o resgate de animais de zoológicos, quando por ventura vêm à falência, e que dependem de autorização do Ibama, passam por um longo processo que visa dificultar a logística para santuários. Tudo isso torna evidente que o olhar para o direito e a defesa dos animais só existe caso não forem considerados animais de controle produtivo e financeiro.

Eleger pessoas interessadas nos Direitos dos Animais é um passo fundamental para a criação de uma legislação amplamente detalhada que trate exclusivamente de maus-tratos, delimitando todas as formas de crueldade aos animais e possibilitando para que Ongs, ativistas e protetores possam resgatar todo o indivíduo vitima de maus-tratos, sejam ele de que espécie for, como os da farra do boi ou da vaquejada, para que, uma vez constatada a crueldade, possam ser conduzidos para abrigos de proteção animal.

Foto: Acrisul
Foto: Acrisul

Somente campanhas de conscientização e a desconstrução da exploração cultural podem estender o direito dos animais, também aos marginalizados bois, porcos, galinhas e todas as criaturas sencientes, levando a sociedade, a fiscalização e o magistrado a um olhar complacente capaz de se horrorizar, não só com a mulher que espancou o cãozinho com o salto alto, mas também com todos os processos escravagistas, sejam eles através de circos, aquários, zoológicos, vestimentas, testes cosmetológicos, farmacêuticos, alimentação e manifestações culturais como rodeio, vaquejada, farra do boi e similares. Esses são os movimentos táticos de todo um cartel que alimenta uma cultura retrógrada, dessensibilizada e exploratória que dificultam a ascensão da ética e dos direitos animais.

Fonte: Olhar Animal


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