Bondade alheia

Por Dr. phil. Sônia T. Felipe  

Desculpem-me, mas nenhum animal doa sangue, órgãos, tecidos, leite, carne, ovos e mel. Por isso, usar o termo doação para designar o ato humano de tirar algo dos animais para dá-lo a outro animal, humano ou não-humano, não serve eticamente a propósito algum. Quando algo é tirado de um animal, são os humanos que o extraem dele. Analogamente, também seria um erro usar o termo doação para designar o ato unilateral de médicos que extraíssem órgãos, tecidos ou secreções de seres humanos incapazes de darem ou de negarem seu consentimento, por exemplo, fazer essa extração de bebês recém-nascidos internados sem a vigilância contínua dos pais, ou de alguém internado numa unidade de tratamento intensivo, em estado comatoso. Esses seres não seriam “doadores”, porque sua vontade não pode ser consultada e não teria sido a mandante.

Não havendo consciência do que se passa, não há possibilidade de consentimento. Isso vale para a “eutanásia”, a “doação” e o “sacrifício”. São termos usados na linguagem corrente de uma forma que encobre o peso moral dos atos que se escondem atrás deles. Quando um cão ou gato recebe uma injeção que põe fim à vida dele, e a razão pela qual isso é feito é a falta de dinheiro da pessoa que vive com esse animal, isso não é eutanásia, é assassinato, não importa a razão maior pela qual o ato foi praticado. Se a pobreza ou miséria não são razões para se tirar a vida dos doentes e idosos humanos, por que o seriam para justificar livrar-se dos encargos que um animal doente ou idoso representa para a família que usufruiu de sua companhia e presença?

Quando lemos uma notícia dizendo que um cão, que antes sofrera maus-tratos e agora foi adotado por uma nova família, tornou-se “doador” de sangue, é inevitável fazer a retrospectiva e constatar que essa doação não é voluntária, do cão, e, sim, da família que o adotou. Então a pergunta não cala: por que tornar compulsoriamente doador um animal que já sofreu abuso o suficiente? Por que tirar do corpo dele o sangue e doá-lo para outro animal? A pessoa humana que autorizou a extração do sangue obteve algum ganho com isso, do tipo, consultas médicas grátis, ração, ou mesmo, fama nas redes sociais, para não falar de dinheiro mesmo? Não sabemos, mas devemos ficar atentos a todas essas “razões”, porque elas podem representar um motivo forte para a decisão de tornar seu animal um doador compulsório.

Se os tutores de animais estimados não disponibilizam seu animal, assim, sem mais nem menos, para extração de sangue a ser doado para outros animais, por que justamente os tutores desse animal que já vem com uma trajetória de dor e sofrimento são os “generosos” doadores do sangue dele para terceiros? Se doar sangue do seu animal de estimação fosse algo sem implicação ética alguma, os amantes dos animais fariam filas diante das clínicas para que o sangue de seus animaizinhos fosse extraído e levado para outros. Não vejo essas filas nem nos centros de doação de sangue humano, quanto mais nos de coleta de sangue animal. É que essa doação implica invasão. No caso do animal usado para extração do sangue, a invasão é decidida pelos humanos e não é para benefício do animal em questão, é para benefício de terceiros, os animais que receberão o sangue e os tutores deles que ficarão aliviados com a terapia infusiva que salvará seu próprio animal. Mas, se houve uma doação… foi de sangue alheio.

Acontece que o ato de tirar o sangue do animal que está em sua companhia e confia em você, mesmo para doá-lo a outro animal que está em companhia de, e confia em, outra pessoa, não é algo isento de dilemas morais, justamente porque caracteriza doação à custa alheia. Ninguém reconhece como dever moral fazer o bem jogando o ônus disso sobre outros. Então, justamente um cão que foi adotado depois de sofrer abusos por parte dos primeiros cuidadores, “torna-se” doador? Não. Ele não se tornou doador. Ele foi levado, sem poder consentir ou dissentir, até a clínica onde o amarraram, sedaram e enfiaram uma agulha acoplada ao aparato de coleta de sangue.

Você levaria seu bebê, nesses termos, para que ele se tornasse um “doador” de sangue? Não levaria, não é mesmo? Provavelmente você o faria no caso extremo de um outro bebê, conhecido seu, ou mesmo de sua família, precisar muito desse sangue. E mesmo assim você sofreria um dilema moral profundo, ao decidir, em nome do bebê do qual se vai fazer a extração do sangue, que o sangue dele deve ir para o corpo de outro bebê.

Esse é um verdadeiro dilema moral, quer dizer, a pessoa fica dividida entre duas decisões, ambas com desdobramentos daquele tipo de peso que pega fundo a alma, às vezes chamado de culpa, às vezes de arrependimento. E, ao tomar a decisão, a pessoa que sofre o dilema não sabe se vai passar pela culpa ou pelo arrependimento, ou por ambos, sentimentos bem desconfortáveis, que tiram de qualquer um o sossego e a complacência consigo mesmo. E se tiver uma alegria ao final, esse bônus não será sentido pelo animal. Então, o bônus é do cuidador humano, recompensado por seu gesto de “bondade alheia”.

Quando tratamos dessas questões éticas envolvendo os animais é preciso usar devidamente a linguagem, para não perpetuarmos o costume de achar que usando termos nobres compensamos o animal do que fazemos a ele, contrariando ou ignorando o que seria sua vontade. Analogamente, não é correto, embora quase todo mundo o faça, usar a expressão “eutanásia” para designar a decisão de pôr fim à vida do animal, quando o objetivo não é o de aliviar o animal de um sofrimento profundo que o impede de viver de acordo com as habilidades e a mente de sua espécie, mas o de aliviar os humanos dos encargos emocionais e financeiros que uma vida agonizando representa.

Se a razão for do tipo: “falta grana para pagar os remédios e consultas médicas”, “falta alguém na casa para atender ao animal no estado grave”, “falta espaço para alojar o animal acamado”, “falta quem limpe o que o animal faz pela casa por conta de sua doença incurável”, essas só são razões boas para alguém que mantém um animal em sua companhia apenas enquanto lhe interessa, mas o descarta assim que ele “começa a dar problemas”, como se faz com um carro ou aparelho qualquer, trocando-o por um novo, que não dá esses problemas. Se essas forem as razões, ou se elas forem desse teor, a indução da morte no corpo do animal não será eutanásia, será assassinato. Simples assim.

O mesmo se dá com o uso do termo sacrifício nas pesquisas biobélicas. Na origem do significado do termo sacrifício está implícita a vontade de alguém numa posição vantajosa (a vantagem pode ser apenas em um quesito, por exemplo, saber nadar e poder mergulhar em águas revoltas para salvar alguém que se afoga, perdendo ali a própria vida), que doa algo a outrem, mesmo implicando para si a perda irreparável dessa vantagem. O termo sacrifício, portanto, só deveria ser usado quando aquele que doa está na posição privilegiada de possuir algo que pode ser aproveitado por outro, salvando-lhe a vida, por exemplo, ou tirando-o da miséria. Então, jamais, se quisermos manter nosso respeito pelos animais, já suficientemente vilipendiados por essas pesquisas biobélicas, dever-se-ia usar o termo sacrifício para designar a ruína de sua saúde, e eutanásia para designar a eliminação de suas vidas no interior desses edifícios multimilionários onde eles são confinados e descartados.

Em momento algum o animal doou o que tinha para beneficiar os interesses dos humanos que os usam e descartam como itens do acervo do laboratório que, uma vez usados, podem ser substituídos por seus similares. Os animais jamais se sacrificam para que as pesquisas biobélicas tenham êxito. Sacrifício seria o pesquisador deitar-se naquela mesa e ordenar a seus assistentes que façam isso e aquilo no corpo dele, para buscarem respostas às questões que lhe aparecem como prementes.

Quanto aos animais, eles foram e continuam a ser destruídos nos experimentos. Eles são torturados e eliminados da vida na condição absoluta de reféns. São forçados ao nascimento em cativeiro, levados para os locais experimentais contidos em gaiolas ou jaulas, são mantidos presos durante os experimentos e morrem por conta desses experimentos. Os animais não têm chance alguma de escapar das torturas às quais seu corpo e espírito são submetidos na experimentação.

Se as jaulas, gaiolas e aparelhos fossem destravados ao longo do experimento, não sobraria um animal ali para o prosseguimento da pesquisa. Isso define a diferença entre sacrificar-se por algo, quer dizer, manter-se firme no propósito de servir à causa, e ser sequestrado para que algo doloroso lhe seja infligido. Os poucos animais sobreviventes ao término dos experimentos são exterminados de modos diversos, nada éticos.

Portanto, não há, em momento algum, qualquer gesto do animal doando seu corpo vivo, sua mente específica ou qualquer tecido de seu corpo para o “bem da ciência”, essa ciência que não é do bem. Nesse quadro, quando os animais são eliminados, também não há eutanásia, e sim genocídio, pois são exterminados em massa ao redor do planeta.

Doação, eutanásia e sacrifício são, portanto, termos da ética, aplicáveis somente quando a vontade daquele de quem sairá o pedaço, a secreção ou qualquer tecido é que manda tirar isso dali e botar em outros. Quando essa vontade não pode ser consultada, como no caso dos bebês humanos, não se deve falar de “doação”, nem de “sacrifício”. É usurpação! Não importa se o fim é o benefício alheio. Os fins nem sempre justificam os meios. E quando o fazem, é no caso de uma exceção que precisa ser bem fundamentada do ponto de vista ético.

Sendo para benefício alheio, só é doação quando há vontade de doar. No caso dos animais, um dos argumentos usados é que eles têm um coração tão bondoso que, se pudessem falar, dariam seu consentimento. Acho bem bonito isso, como ficção, porque estamos outra vez falando em nome dos animais num assunto que não lhes interessa. Em primeiro lugar, não podemos construir uma ética sobre ilações no condicional: “se”. Ela se sustenta sobre argumentos sólidos, sustentados pelo fato de haver liberdade do agente moral, ainda que isso não seja algo palpável, pois seu fundamento se consolida no valor moral do ato praticado como escolha livre. Em segundo lugar, não vejo a pessoa que diz isso (que tirar sangue do animal para dar a terceiros não tem problemas porque o animal é bondoso e faria isso de boa vontade se pudesse), ir ao hospital para deixar coletar seu sangue para ser injetado em outros. Então, mais uma vez, usa-se o animal para transferir para ele um ônus que sequer os humanos, em toda sua declarada bondade, estão dispostos a assumir. Nesse caso, não há vontade alguma de doar coisa alguma. Humanos decidem em nome do animal e ponto final. E dar beijo com a boca alheia é louvável? 

Fonte: ANDA 


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