Cidades com abate de javali triplicam sob Bolsonaro e especialistas apontam irregularidades

Cidades com abate de javali triplicam sob Bolsonaro e especialistas apontam irregularidades
Caça a javali durante a madrugada na zona rural de Monte Azul Paulista (SP) - Aver Prado / Folhapress

O número de cidades com abate de javali quase triplicou com o aumento de CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), e especialistas dizem haver indicativos de maus-tratos e de outras irregularidades.

O abate do animal ocorreu em 698 municípios em 2017, saltando para 2.010 locais em 2022.

Segundo especialistas ouvidos pela Folha, houve uma multiplicação de javalis principalmente durante a gestão bolsonarista e a explosão de CACs no país. Pessoas estariam usado como pretexto a caça de manejo (usada para controlar o número de animais) para praticar a caça esportiva, que é proibida no Brasil.

Raquel Sabaini, coordenadora-geral de gestão e monitoramento do uso da fauna e da biodiversidade aquática do Ibama, explica que a caça de manejo para controle do javali é liberada no país porque o animal é considerado um invasor e pode destruir plantações.

No entanto, a fiscalização do Ibama já identificou que houve soltura intencional do javali para viabilizar a caça em municípios que não tinham a ocorrência do animal. Não há dados oficiais de quantos javalis há no Brasil e quanto prejuízo eles causam.

Por observação do Ibama, Sabaini diz que, antes, os animais estavam mais concentrados no Sul, mas agora aparecem em diversos outros lugares -como no Espírito Santo. Há casos em que foram encontrados em ilhas.

“Infelizmente, houve o uso indevido da autorização e as pessoas desvirtuaram a finalidade fazendo a prática esportiva”, afirma.

Roberto Cabral Borges, analista ambiental do Ibama, acrescenta que 70% dos animais abatidos eram machos adultos. Eles são mais fortes e servem como um “troféu”.

Borges diz que o controle da propagação precisaria ter como foco a fêmea. Os dados são obtidos pelo Ibama porque os caçadores são obrigados a enviar relatórios detalhados dos animais abatidos após o encerramento da autorização para caça, que dura até seis meses.

Clube de caça expõe javalis mortos após abate - Divulgação
Clube de caça expõe javalis mortos após abate – Divulgação

Borges afirma que a fiscalização já encontrou uma série de irregularidades relacionadas à caça no Brasil. Entre elas, o abate de outros animais proibidos, como o búfalo, maus-tratos ao javali, cachorros usados para auxiliar no abate, participação de pessoas que não têm autorização, além da prática de atirar de cima de veículos -o que também é proibido.

“A fiscalização já flagrou conversas de caçadores em redes sociais dizendo para não matar fêmeas e filhotes para a caça permanecer”, diz.

Segundo o analista ambiental, o cervo é outro animal introduzido no Brasil devido à tentativa dos caçadores de obter liberação para a caça.

A Folha encontrou online com facilidade vídeos e fotos de abate de javalis. Os próprios clubes de caça divulgam imagens de irregularidades. No Clube de Caça Javali, de Goiânia, há vídeo do abate do animal não só por armas, mas também por outros meios.

Em um deles, o javali abatido agoniza no chão enquanto é mordido por diversos cachorros. Pela regra, o abate deve ocorrer de forma rápida, sem sofrimento desnecessário aos animais.

Na legenda do vídeo, o clube diz que “a caça é um esporte que muitas pessoas gostam e também é uma ótima maneira de ajudar o meio ambiente”.

Procurado, o clube enviou texto dizendo que as filmagens não são de sua responsabilidade e que atua como um escritório de documentação. Os vídeos, afirma, são de manejadores do Brasil e de outros países. “Se foi algum vídeo com ‘suposto’ maus-tratos ao javali, peço desculpas, vamos ter mais cuidado nas próximas postagens.”

Daniel Alves Terra, presidente da Associação Nacional de Caça e Conservação, diz que, na entidade, produzir e compartilhar vídeos que mostram maus-tratos a animais é motivo de expulsão.

Terra diz não acreditar que haja soltura do javali intencionalmente no país. Na sua visão, o Ibama deveria ajudar a dar treinamento para os caçadores em vez de criminalizar a atividade, que, na sua visão, tem colaborado com o manejo.

No Brasil, a caça também tem causado acidentes entre caçadores e pessoas sem autorização para a prática de abate. Somente neste mês foram ao menos três ocorrências de pessoas baleadas.

Um homem morreu em 6 de maio durante a caça de javalis em Pindamonhangaba, interior de São Paulo. Ele foi atingido por um tiro efetuado por outro homem, que também participava da caça. Segundo a Polícia Civil, os dois eram CACs registrados no Exército e com autorização de caça pelo Ibama.

Já no dia seguinte, dois homens foram caçar javalis em Serranópolis (GO), quando um deles, ao realizar uma manobra com sua arma, teria efetuado um disparo que matou seu colega. Também em maio, dois amigos caçavam em Catalão (GO), quando um deles foi atingido na cabeça e precisou ser hospitalizado.

Ivan Marques, advogado e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, avalia que a caça de manejo não está funcionando no Brasil e traz graves consequências para a segurança pública em razão do aumento da circulação de armas.

“Ao invés de melhorar o controle, aparentemente o país está sendo invadido por javalis. Será que não seria o caso do Ibama limitar o número de licenças às regiões afetadas ou mesmo liderar as iniciativas de redução do número de javalis ao invés de somente conceder o manejo a caçadores?”, diz.

Na visão de Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, os dados comprovam que, apesar dessa explosão de autorização do Ibama também para caça, as pessoas viraram CACs sem a intenção de caçar.

Há no Brasil 558.204 caçadores com registros ativos no Exército, sendo que há 33.543 com autorização para caçar.

“Tem muitos caçadores comprando fuzil com argumento de que os javalis são animais de grande porte, mas nem chegam a pedir autorização para caçar. Como não há confronto de informações entre órgãos, facilita as irregularidades”, afirma.

Pela regra, o caçador precisa da autorização do Exército para virar CAC e comprar a arma. Já para ter a guia de tráfego emitida pelo Exército, que permite levar a arma do local de guarda para o local de prática, precisa estar cadastrado como manejador de espécie exótica no Ibama.

Além de CACs, outras pessoas podem ter a autorização do Ibama para caçar, mas nesse caso não podem utilizar a arma de fogo. Usam arma branca ou armadilhas.

Segundo Bruno Campos Ramos, chefe do Núcleo de Operações de Proteção à Fauna, a metodologia usada atualmente para controle do javali não é eficaz e tem fomentado a caça esportiva no Brasil. Por isso, ele afirma que esse tema está em discussão no órgão.

“Com o aumento de CACs com o objetivo de caça, vem aumento o número de ilícitos ambientais relacionados a esse tipo de crime, como maus-tratos. Além de ter perigo para a própria fiscalização por encontrar grupos fortemente armados”, diz.

Por Raquel Lopes

Fonte: Folha de São Paulo


Nota do Olhar Animal: A soltura de javalis para que fosse usados como troféus de caça foi informada pela ONG Olhar Animal à Justiça Federal em ação que pretendeu interromper a caça aos javalis e javaporcos, por sua crueldade, injustiça e ineficácia. A ação lamentavelmente foi julgada improcedente. E o resultado está aí, noticiado no texto acima. É bom dizer que a atual legislação NÃO PERMITE outra forma de controle populacional dos javalis que não seja a CAÇA e que isto é culpa do IBAMA também. Por outro lado, não são só os javalis que são vítimas dos caçadores. Além de muitos deles abaterem também animais nativos, os cães usados para o agarre dos javalis comumente são maltratados em seus cativeiros, no treinamento para a caça e, com grande frequência, acabam gravemente feridos ou mesmo mortos nos embates contra os javalis.

Controle populacional de javalis

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