Como a morte cruel de um pequeno cão de rua levou aos tumultos dos anos 90 na Inglaterra
Um animal em perigo pode inflamar a opinião pública britânica como nada mais conseguiria. Cerca de 120 anos atrás, o destino de um pequeno cão marrom causou tumultos nas ruas de Londres, isso sem dizer das marchas de protesto até Trafalgar Square e questões levadas ao parlamento.
Agora, a incrível e pouco conhecida história, que envolveu campanhas antivivisseccionistas, um doutor eminente, uma batalha legal e uma estátua memorial polêmica em um parque, é o tema de um novo livro e de uma nova campanha para honrar o humilde Terrier no coração disso tudo.
No começo dos anos 1900, o “caso do Cão Marrom” causou um nível de preocupação nacional que foi além do recente furor sobre a morte da alpaca Geronimo. Foi mais forte que o acalorado debate sobre o plano de resgate aéreo de animais desde Kabul até Inglaterra no mês passado.
Um “caso” que ganhou as notícias e provocou desordem, mas que foi esquecido desde então, a história do Cão Marrom é um conto que tem “obcecado” a imaginação da romancista estreante Paula S. Owen desde a primeira vez que ela ouviu sobre o mesmo.
“O livro e a campanha realmente são um sonho que estão se tornando realidade para mim depois de todo esse tempo”, Owen disse no último fim de semana depois da publicação do Little Brown Dog, um conto romantizado dos eventos históricos. “Eu estou obcecada com esta história há muito tempo, é fantástico saber que foi contada”.
A discussão extraordinária começou com a vivissecção pública de um cão feita em 1903 pelo Dr. William Bayliss, um renomado fisiologista que também foi instrumental na descoberta dos hormônios. Operando ao lado de seu cunhado, Professor Ernest Starling, Bayliss demonstrou o procedimento aos estudantes de medicina da Universidade de Londres, incluindo uma dupla de feministas suecas e ativistas dos animais que estavam infiltradas, Leisa Schartau e Louise Lind-af-Hageby. A operação, as mulheres declararam em seu diário, foi cruel e desnecessária, e o cão, que já tinha sido utilizado em experimentos, não tinha sido anestesiado apropriadamente.
Meses depois, as ativistas recrutaram a ajuda do advogado Stephen Coleridge, um descendente do poeta romântico Samuel Taylor Coleridge e secretário da Sociedade Nacional Antivivissecção. Ele falou em público contra Bayliss, incitando, primeiro, uma ação por calúnia, e depois uma por difamação, uma vez que as acusações de crueldade foram repetidas na imprensa.
O caso rapidamente se transformou causa célebre, discutida em todo o país, e quando Coleridge acabou por perder a causa, os amantes de animais da Inglaterra ficaram furiosos. Uma campanha de arrecadação de fundos resultou na construção de uma estátua em Battersea, no sul de Londres, para comemorar a vida do cão de rua. Mas, como Owen explica em uma nota no final de seu livro, nos anos 1900 a nação não estava preparada para deixar essa mentira do cão falecido.
O assunto, ela conta, “tornou-se um para-raios para constantes distúrbios, motins e protestos ao através de Londres. [A estátua] foi alvo de repetidos ataques por estudantes de medicina indignados. E foi defendida pela igualmente indignada classe trabalhadora local de Battersea, além de uma lista de feministas, sufragistas, sindicalistas, liberais radicais e anarquistas. A situação se tornou um ponto de discussão nacional e foi debatida no parlamento. A estátua era protegida, a grande custo, dia e noite, pela polícia”.
Finalmente, o conselho agiu, e retirou a estátua secretamente no meio da noite. Nunca mais foi vista desde então.
Mas Owen irá visitar o local em Battersea onde a estátua ficava para lançar sua campanha para um novo monumento para o Terrier. Ela colocará um modelo leve cuidadosamente recriado.
“É incrível que a equipe que me ajudou tenha feito algo tão realístico em 3D a partir de uma velha fotografia”, ela disse.
Owen, que é galês, mas mora no sul de Londres, trabalhou como ativista pela mudança climática e ambientalista. Seu livro factual sobre a controvérsia de Brent Spar de 1995, quando o Greenpeace lutou contra o plano da Shell de afundar uma plataforma de armazenamento e carregamento de petróleo desativada no Mar do Norte no Atlântico, está sendo adaptado para uma série de televisão. E ela vê uma ligação clara entre a história da proteção animal no cerne de seu romance e seu trabalho ambiental.
“Esta não é simplesmente a história trágica de um cão de rua, terrivelmente maltratado e agredido em uma era menos iluminada”, escreveu ela. “Nem é a histeria, a violência e o comportamento desconcertante dirigido a um pedaço de pedra e metal, tão temido pelas autoridades que as levou a roubá-lo e destruí-lo, o foco principal do romance.”
“É mais complicado do que isso. Todo o triste episódio é um eco, um espelho, que reflete as injustiças e males sem fim cometidos pelos humanos contra outras espécies ao longo da história.”
Seu romance será publicado pela Honno Press, uma defensora da escrita de mulheres galesas há 35 anos, e Owen disse que se mantém muito próxima dos fatos. “Eu me mantive fiel aos acontecimentos, mas mudei um pouco os personagens principais. Meu cirurgião é Bayling e minhas heroínas agora são britânicas, uma de classe alta e uma jovem de classe trabalhadora do País de Gales.”
No dia 15 de setembro, quando Owen deveria lançar seu livro e a campanha da nova estátua, foi o 115º aniversário do dia em que a estátua original do Brown Dog foi revelada para celebridades reunidas, incluindo o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw.
No espírito das palavras de Lena, a heroína fictícia de Owen, que argumenta que “nossa humanidade é definida por como tratamos, respeitamos e nutrimos outras espécies, não apenas nossa própria espécie”, a autora agora diz esperar que seu livro pergunte: “ Podemos dizer, com o coração aberto, que somos mais “humanos” hoje do que éramos há cem anos?”
Por Vanessa Thorpe / Tradução de Alice Wehrle Gomide
Fonte: The Guardian