Direitos animais: do que são feitas as meninas?

Direitos animais: do que são feitas as meninas?

De que são feitos os meninos?
De que são feitos os meninos?
Rãs, caracóis, rabinhos pequeninos…
Disto são feitos os meninos!

De que são feitas as meninas?
De que são feitas as meninas?
açúcar, perfumes e outras coisas finas…
disto são feitas as meninas!

(Coleção mundo da criança – Volume 1)

Pesquisa realizada na Universidad de Jaén, na Espanha, chegou à conclusão de que 77% dos voluntários da proteção animal são mulheres. E assim, eu que nunca ganhei nem rifa de garrafa térmica no escritório, me vi premiada pela roleta da vida ao ser protetora. (https://olharanimal.org/um-estudo-afirma-que-em-776-dos-voluntarios-de-ongs-de-protecao-aos-animais-sao-mulheres/) Diz o tal estudo que mulheres têm probabilidade “três ou quatro vezes maior” de serem protetoras de animais. Pensei que seria muito mais; desde que comecei a me envolver com ongs de proteção, há pelo menos vinte anos, só vejo mulheres em torno de mim. Aliás, mesmo a maioria dos homens, quando envolvidos, parecem ter ingressado nesse voluntariado trazidos por mulheres (mães, namoradas, esposas, amigas).

O conceito de protetora ainda está em consolidação (e ironicamente já em desconstrução, mas isso é outra história). Vejo mulheres auxiliando em eventos voluntários, carregando caixas, cozinhando refeições, trabalhando 14 horas sem parar num só dia para ajudar animais, e que proclamam “não sou protetora, sou simpatizante”. Tenho visto pessoas que, sem nunca terem promovido um resgate ou adoção, ao encontrar um animal atropelado no meio da rua, ligam para uma ong miserável e superlotada, exigem que venha recolher mais este – em geral sob a ameaça velada de que o animal não receberá nenhuma outra ajuda – e a partir daí começam a intitular-se protetores de animais. Enfim…

A intuição – que esta pesquisa vem validar – de que há mais mulheres do que homens na proteção é antiga e arraigada, e dá margem a variados discursos. Por exemplo, quando da invasão do Instituto Royal, em 2013, em que mais de uma centena de cachorros Beagle e roedores foram libertados do inferno dos testes de laboratório num fantástico movimento espontâneo, a revista Veja publicou uma extensa matéria – sob o significativo título de Crime em nome do amor -, onde descrevia da seguinte forma as ativistas da causa animal: “Como as sufragistas inglesas do século XX na Inglaterra, que queimavam igrejas e vitrines de lojas, as mulheres brasileiras defensoras de animais recorreram a gestos de alta dramaticidade. […] O perfil mais comum da defensora intransigente dos animais é a mulher de classe alta, entre 30 e 50 anos, sem filhos, sempre pronta a adotar um bicho abandonado.” 1

Que a Veja descreva assim a voluntária da proteção animal era apenas esperado, e note-se que a revista não cita fontes que sustentem sua afirmação. Ela parece nascer apenas de interpretações subjetivas, ou o bom e velho preconceito, cuidadosamente destilado através da escolha de palavras. Mas por que associar o gênero feminino à defesa dos direitos animais resulta numa imagem negativa tanto para as mulheres como para a causa animal?

No decorrer da minha trajetória primeiro como protetora de animais “domésticos”, e depois como protetora e vegana, foi com grande espanto que me deparei com o mesmo tipo de preconceito por parte da comunidade da causa animal como um todo. Qualificadas como “proteloucas”, acusadas de irracionalidade, de descontrole emocional, de alienação, não é raro encontrar memes desabonadores ao trabalho das protetoras nos sites e páginas do Facebook frequentados pela massa heterogênea declarada vegana que surgiu de uma década para cá, na onda de popularização das ideias abolicionistas. Dentro dela existem motivações que no meu entender não representam o veganismo; para começar, considero redundante quem se diz “vegano pelos animais”. “Vegano” é só pelos animais, já que o termo foi riado port Donald Watson em 1947 para representar uma conduta ética que rejeita a exploração animal. Não existe “vegano por ecologia” ou “vegano pela saúde”, ou muito menos vegano de fundo místico, sem falar naquela distorção que vem sendo designada como “vegano interseccional”.

E no entanto é tão comum descobrir entre esses veganos pouco ortodoxos, mas imbuídos de orgulho racionalista, uma disposição contrária, hostil, em relação às praticantes da proteção animal. Como se explica? Qual a lógica de alguém que se diz tocado pela empatia para com os animais não humanos e censura tão violentamente quem os socorre nos momentos de maior desespero? Uma amiga, vegana há mais de uma década e que começou como protetora, costuma dizer que o problema é que nós, protetoras, lidamos diretamente com o lixo vivo da sociedade, os seres que todos rejeitam, o que nos torna párias. Concordo com ela. Mas há mais.

Como até a revista Veja sabe, os primeiros movimentos organizados pela proteção de animais surgiram entre o final do século 18 até final do século 19, primeiramente no Reino Unido mas também em rincões tão remotos na época como a Nova Zelândia. Foi a mesma época em que se organizaram outros movimentos emancipatórios significativos, como o sufrágio feminino e abolição da escravidão humana, mas por razões fáceis de adivinhar, a abolição da escravidão animal arrasta-se a passos mais lentos.

Um dos problemas seria exatamente que o movimento pela proteção animal surgiu capitaneado majoritariamente por outra minoria que tateava em busca de direitos, as mulheres, e baseado numa argumentação não suficientemente forte: a compaixão. E não é por sua associação com o sentimentalismo que considero a compaixão um argumento fraco para o abolicionismo. Esse pressuposto tem como maior falha, em minha opinião, empoderar o opressor – que tem a opção de ser “bom” ou não, segundo sua consciência e conveniências – em lugar de empoderar a vítima – o animal -, que deveria ter o direito inalienável, amparado por imperativo categórico, de não ser violentado enquanto ser senciente e dono da própria vida. Pedir compaixão, em lugar de exigir respeito. Mau negócio, que perpetua a dominação.

E aí identifico uma das razões para a rejeição ao trabalho das protetoras, mesmo dentro da causa animal. Desconfio que mesmo com todos os avanços do pensamento abolicionista iniciados com a publicação de Libertação Animal2 por Peter Singer em 1975, a prática da proteção animal, no âmbito de uma parcela significativa das protetoras urbanas independentes ou organizadas em ongs, parece continuar atrelada a uma lógica da compaixão e não à teoria do direito, como fica claro pelo duelo travado entre o filósofo do direito e abolicionista Gary Francione e as ecofeministas representadas principalmente pela escritora Carol Adams, autora do excelente A Política Sexual da Carne3, onde alinha analogias entre o discurso machista e o discurso especista.

O ecofeminismo é um conjunto de pressupostos teóricos multidisciplinar surgido nos Estados Unidos na década de 1970 que propõe a valorização e empoderamento das mulheres enquanto minoria oprimida a partir de uma suposta conexão instintiva do gênero feminino com os processos e ciclos da natureza, o que as qualifica como praticantes preferenciais de uma ética do cuidado que se opõe a todos os sistemas relacionados à sociedade patriarcalista. Simplificadamente, o ecofeminismo propõe que uma sociedade erigida sobre parâmetros femininos ofereceria o contraponto necessário ao racionalismo e pragmatismo que caracterizam a civilização patriarcal, erigida a partir da emergência da imposição do ego masculino em oposição à natureza e tendo como consequências virtualmente tudo que há de ruim na contemporaneidade, do capitalismo selvagem, à lógica da produção, a opressão de minorias, o desequilíbrio ecológico, etc… Para as ecofeministas, também, toda a teoria dos direitos animais defendida por Francione emana e reproduz a opressão patriarcal.

Para organizar a crítica a Francione e seus pressupostos, Carol Adams e Josephine Donovan publicaram um conjunto de ensaios sob o título Beyond animal rights (algo como “para além dos direitos animais”), onde defendem que o “ecofeminismo aborda as várias maneiras pelas quais o sexismo, a heteronormatividade, racismo, colonialismo e o ableismo são informados pelo e apoiam o especismo, e como analisar a forma como essas forças se cruzam pode produzir práticas menos violentas, e mais justas.”4

O problema é que essas tais “práticas menos violentas e mais justas” sugeridas no livro, amparadas pela teoria de uma “ética do cuidado”, soam ingênuas, insuficientes, superficiais, quase um deboche diante da crueza da exploração animal. Propor que o consumo de carne tem justificativa moral em determinados contextos socioculturais e geográficos, ou que a criação de cavalos escravos deve ser preservada porque os cavalos têm sido “parceiros voluntários da humanidade” durante milênios, ou ainda que a intuição e a compaixão devem prevalecer sobre a noção de direito, convidando a contemplar caso a caso, independente de princípios universais, cada conflito de interesses entre humanos e outros animais, é um pouco demais. Deixa bem evidente a perspectiva “humans first” – modelo de pensamento que privilegia os interesses humanos em primeiro lugar mesmo dentro de um suposto abolicionismo – que permeia suas propostas.

Francione deu sua impiedosa resposta no artigo Ecofeminism and Animal Rights – A review of Beyond Animal Rights…, publicado em Animals as Persons5: “Seria absurdo dizer, frente a escravidão humana, que a ética do cuidado poderia suplantar as noções de direito e que nós poderíamos decidir como lidar com escravos (humanos) num sistema caso a caso, descartando noções genéricas e apoiando-nos, em lugar disso, na ‘ontologia relacional’ que enfatiza ‘relações contextuais’ e as particularidades de uma dada situação’ mais do que premissas básicas”.

Aqui vale lembrar que muitos bradam que Francione – como se literalmente tudo que Francione diz devesse ser tomado como palavra sagrada emanada de um messias, mas isso é também outra história -, enfim, bradam que Francione censura a proteção animal, e o resgate de cães e gatos, como uma prática que atrasa o abolicionismo. Duvido muito, pois Francione foi iniciado na causa animal por sua mulher que é protetora de animais, e não cansa de celebrar a gratificação que experimenta por conviver com sua meia dúzia de cães resgatados. Minha interpretação é que ele se posiciona principalmente contra a indústria do pet, uma construção especista da qual o animal abandonado é o refugo, o subproduto. Essa leitura enviesada da posição de Francione sobre gatos e cachorros, porém, serve perfeitamente ao comodismo dos que se orgulham de sua pureza moral ao não consumir carne, mas são incapazes de enxergar o horror que acomete um cachorro abandonado nas ruas.

O problema é que a abordagem ecofeminista abre flancos justamente para detonar a luta antiespecista com alguns dos mais batidos argumentos sexistas, aqueles que atribuem às mulheres capacidades lógicas e cognitivas inferiores às dos homens, e uma afinidade pouco salutar com o universo do pensamento mágico. Vejo até mesmo uma relação entre esse fenômeno e a campanha atualmente em andamento por parte da mídia e dos setores de informação do poder público no sentido de transformar a prática do resgate de animais abandonados ou em situação de risco em patologia mental, associando dois conceitos excludentes: a protetora e a acumuladora de animais.

Ao reduzir a protetora à doença mental, qualificando empatia como anomalia e indiferença como normalidade, o poder público passa uma série de mensagens que servem às suas conveniências, bem ao estilo da Inquisição que no passado queimava bruxas juntamente com seus gatos; cria, sobretudo, a ilusão de que há uma estrutura institucional operando pela solução da questão do abandono e dos maus tratos aos animais, que só a doença das protetoras os impede de usufruir, como desenvolvo mais detalhadamente em artigo publicado aqui no Olhar Animal (https://olharanimal.org/protetor-nao-e-acumulador-cuidado-com-essa-construcao-especista/). E é assim que nasce a figura da “protelouca”, alegremente incorporada ao discurso de muitos abolicionistas.

Assim como Francisco Garrido, autor do estudo citado, não vou especular “uma hipótese que defenda o essencialismo dos comportamentos de homens e mulheres”, nem por que existe essa maioria de mulheres envolvidas com a proteção, e com a causa animal em geral. Na minha aldeia, que é Porto Alegre, o que vejo é um movimento intenso de protetoras de animais a caminho do veganismo. A grande maioria já se tornou vegetariana, mesmo mulheres já muito maduras, das quais se esperaria maior resistência a mudar. E essas, quando se tornam veganas, não voltam atrás e o fazem pela razão certa – com perdão de considerar algo “certo” no universo da hipermodernidade. Sua razão é “pelos animais”, não “pela saúde”, nem “pelo meio ambiente”, nem por uma confusa combinação de fatores de fundo místico e bom-mocista cujo aroma do primeiro churrasco com receita do papai parece transformar em pó.

Enfim, penso que o que há para aprender das protetoras de animais é que o ponto de vista da vítima mais imediata é sempre a melhor bússola para nossas ações abolicionistas, e que não há alteridade sem outro; e o que há para aprender dos teóricos abolicionistas, principalmente os que se alinham fortemente à teoria do direito, é que a abolição animal deve brotar de considerações éticas, racionais e lógicas. Ela é uma obrigação moral. Ela não é um favor, um ato de caridade, nem apenas uma boa oportunidade para conquistar seu lugar no céu.

Notas 

1 ARAGÃO, A. MEGALE, B. Crime em nome do amor. VEJA, São Paulo, edição 2345, p. 89-91, out. 2013.

SINGER, Peter. Libertação Animal. São Paulo: wmf Martins Fontes, 2013.

ADAM, Carol J. A política Sexual da Carne. Alaude, 2012.

4 ADAMS, Carol J. DONOVAN, Josephine. Beyond Animal Rights – A Feminist Caring Ethic for the Treatment of Animals. Continuum International Publishing Group, 2000. (Tradução: Profa. Dra. Denise Almeida Silva)

FRANCIONE, Gary L. Animals as persons – Essays on the abolition of animal exploitation. New York: Columbia University Press, 2008. (Tradução minha) (Kindle edition)


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