Direitos animais e não-humanos domesticados

 

© 2007 Gary L. Francione
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Tradução autorizada: Regina Rheda
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© Ediciones Ánima – Publicado em  http://www.anima.org.ar/libertacao/abordagens/francione.html

Texto do Blog de Gary L. Francione
10 de janeiro de 2007

Um aspecto da minha teoria dos direitos animais, conforme articulada no livro Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? e outros lugares, que intriga alguns ativistas, é que, se aceitarmos a posição dos direitos animais, não devemos trazer à existência mais nenhum animal domesticado. Aplico isso não apenas aos animais que usamos para comida, experimentação, vestuário, etc., mas também aos nossos companheiros não-humanos.

Eu certamente entendo que se você adotar a abordagem bem-estarista, que diz que o uso dos não-humanos é moralmente aceitável contanto que você os trate “humanitariamente”, e cuja meta é regulamentar melhor o uso de animais, você vai rejeitar meu ponto de vista. Mas se você, como eu, enxergar que o principal problema da exploração dos animais é o fato de os usarmos, independentemente de esse uso ser “humanitário” ou não, e achar que a meta é a abolição da exploração dos animais, então não está claro, para mim, o porquê da sua dificuldade quanto a essa posição. 

A lógica é simples. Tratamos os animais como nossa propriedade, como recursos que podemos usar para nossos propósitos. Trazemos bilhões deles à existência com o único fim de usá-los e matá-los. Criamos esses animais para dependerem de nós para sua sobrevivência. 

A posição central da minha teoria de direitos é que não temos nenhuma justificativa para tratar os animais como nossa propriedade, assim como não tivemos nenhuma justificativa para tratar outros humanos como escravos. Abolimos a escravidão humana na maior parte do mundo; similarmente, devemos abolir a escravidão animal. 

Mas o que isso significa no contexto dos não-humanos? Será que deveríamos “libertar” os animais e deixá-los perambular livremente pelas ruas? Não, claro que não. Isso seria tão irresponsável quanto deixar crianças pequenas perambular por aí. Devemos, certamente, cuidar dos não-humanos que já trouxemos à existência, mas também devemos parar de fazer com que outros venham a existir. Não temos nenhuma justificativa para usar não-humanos-não importa quão “humanitariamente” os tratemos. 

Há duas objeções que escutei em relação a este ponto de vista.

Primeiro, há a preocupação de que vamos perder “diversidade” se não tivermos mais esses não-humanos domesticados.

Mesmo se a continuidade da domesticação fosse necessária para a diversidade biológica, isso não significaria que ela seja moralmente aceitável. Nós não temos, entretanto, de tratar deste problema. Não há nada de “natural” a respeito dos animais domesticados. Eles são seres que criamos por meio do cruzamento seletivo e do confinamento. No caso de eles terem parentes não-domesticados vivendo na natureza, devemos por certo procurar proteger aqueles não-humanos, principalmente pelo interesse deles próprios e, em segundo lugar, para fins de diversidade biológica. Mas a nossa proteção dos animais domesticados que existem no presente não é necessária para qualquer tipo de diversidade biológica.

Segundo, e com mais freqüência, os defensores dos animais expressam uma dificuldade quanto ao meu ponto de vista sobre domesticação porque eles apontam para o fato de que muitos de nós vivemos com não-humanos e os tratamos como membros da nossa família. Esse arranjo, argumentam eles, deve por certo ser moralmente aceitável.

No que diz respeito a animais de companhia, alguns de nós os tratam como membros da família e outros de nós, não. Mas, seja como for que tratemos nossos cães, gatos, etc., no que diz respeito à lei eles são propriedade.

Se você encarar seu cachorro como um membro da sua família e o tratar bem, a lei protegerá sua decisão da mesma forma que protegerá sua decisão de trocar o óleo de seu carro a cada 1.600 km – o cachorro e o carro são sua propriedade e, se você quiser conferir um valor maior à sua propriedade, a lei protegerá sua decisão. Mas se você quiser conferir um valor menor à sua propriedade e, por exemplo, quiser ter um cão de guarda sempre acorrentado no quintal, a quem você forneça um mínimo de comida, água e teto – e nenhuma companhia ou afeto – a lei protegerá essa decisão também. 

A realidade é que, nos Estados Unidos, a maioria dos cães e gatos não acaba morrendo de velhice em lares repletos de amor. A maioria tem lares por um período relativamente curto, antes de ser transferida para outro dono, levada a um abrigo, descartada, ou levada a um veterinário para ser morta. 

Não importa se caracterizarmos um dono como um “guardião”, conforme pedem alguns defensores. Essa caracterização não faz sentido. Aqueles de nós que vivem com animais de companhia são donos, no tocante à lei, e têm o direito legal de tratar seus animais como bem entenderem, com poucas limitações. As leis contra crueldade e maus-tratos não se aplicam sequer à vasta maioria das instâncias em que humanos infligem tratamento cruel a não-humanos.

Mas, respondem esses defensores, nós poderíamos, ao menos em teoria, ter uma relação diferente e moralmente aceitável com os não-humanos. E se abolíssemos a condição de propriedade dos animais e exigíssemos que cães e gatos fossem tratados de forma similar ao modo como tratamos crianças humanas? E se os humanos que vivem com cães não pudessem mais tratá-los instrumentalmente (por exemplo, como cães de guarda, cães ou gatos de exposição, etc.), mas tivessem de tratá-los como membros da família? E se os humanos não pudessem matar companheiros não-humanos, exceto em instâncias em que pelo menos alguns de nós encaramos como aceitável permitir o suicídio assistido no contexto humano? (Por exemplo, quando o humano tiver uma doença incurável e estiver com imensa dor, etc.). Então, seria aceitável continuar a criar não-humanos para serem nossos companheiros? 

A resposta é não. 

Sem levar em conta que seria impossível, na prática, desenvolver padrões gerais para o que constituiria tratar não-humanos como “membros da família” e resolver todos os problemas relacionados a isso, essa posição não reconhece que a domesticação em si suscita sérios problemas morais, independentemente de como os não-humanos envolvidos são tratados.

Animais domésticos são dependentes de nós quanto a terem comida ou não, e quando; terem água para beber ou não; onde e quando fazer as necessidades; quando dormir; fazer algum exercício ou não; etc. Diferentemente de crianças humanas, que, exceto em casos incomuns, se tornarão membros independentes e funcionais da sociedade humana, os animais domésticos não são nem parte do mundo não-humano nem totalmente parte do nosso mundo. Eles permanecem para sempre num submundo infernal de vulnerabilidade, dependentes de nós para tudo que lhes for relevante. Nós os criamos para serem complacentes e servis, ou para terem características que são, na realidade, prejudiciais a eles mas agradáveis para nós. Talvez os façamos felizes em um sentido, mas nossa relação com eles nunca pode ser “natural” ou “normal”. Eles estão presos em nosso mundo; não pertencem a ele, independentemente de quão bem os tratemos.

Isso é mais ou menos verdadeiro em relação a todos os não-humanos domesticados. Eles estão perpetuamente dependentes de nós. Controlamos a vida deles para sempre. Eles são, de fato, “escravos animais”. Podemos até ser “senhores” benevolentes, mas não somos, na verdade, nada mais do que isso. E isso não pode estar certo. 

Minha parceira e eu vivemos com cinco cachorros salvos do abandono. Todos os cinco estariam mortos se não os tivéssemos adotado. Nós os amamos muito e nos esforçamos bastante para lhes proporcionar o melhor cuidado e o melhor tratamento. (E antes que alguém pergunte, todo os sete somos veganos!). Você provavelmente não acharia duas pessoas no planeta que gostem mais de viver com cachorros do que nós.

Mas, se só sobrassem uma cadela e um cão no universo e coubesse a nós dois decidir se lhes seria permitido se reproduzir para que pudéssemos continuar a conviver com cachorros, e mesmo se conseguíssemos garantir que todos os cachorros tivessem lares tão amorosos quanto aquele que lhes proporcionamos, não hesitaríamos um só segundo em dar um fim em toda a instituição da posse de “animais de estimação”. Encaramos os cachorros que vivem conosco como refugiados e, embora gostemos de cuidar deles, está claro que os humanos não têm nada que continuar trazendo essas criaturas a um mundo onde elas simplesmente não se encaixam.

Alguns defensores pensam que “direitos animais” significa que os não-humanos têm um tipo de direito à reprodução e que, portanto, é errado esterilizar não-humanos. Se esse ponto de vista estiver correto, então nós estaremos moralmente comprometidos a permitir que todas as espécies domesticadas continuem a se reproduzir indefinidamente. Não podemos limitar esse “direito à reprodução” somente a cães e gatos. Além do mais, não faz sentido dizer que, no passado, agimos de forma imoral domesticando animais não-humanos mas, agora, estamos comprometidos a deixá-los continuar a se reproduzir. Cometemos um erro moral domesticando não-humanos, para começo de conversa; qual o sentido de perpetuar esse erro?

Em suma, posso entender que bem-estaristas, para quem o tratamento – e não o uso – é a principal questão moral, pensem que a domesticação e a continuidade do uso animal são aceitáveis contanto que tratemos os animais “humanitariamente”. Mas não consigo entender por que qualquer pessoa que se considere abolicionista possa pensar que a continuidade da domesticação de quaisquer não-humanos possa ser justificada, independentemente de quão bem tratemos esses não-humanos – da mesma forma que não consigo entender como qualquer pessoa que se considere abolicionista possa ser qualquer coisa que não vegana.

O subtítulo de meu livro – Your Child or the Dog? [Seu filho ou o cachorro?] – a noção da criança e o cachorro na casa em chamas (ou no bote salva-vidas ou outro lugar desse tipo) visa dirigir nossa atenção para o fato de tentarmos resolver conflitos morais entre humanos e animais. Mas nós criamos esses conflitos, por exemplo, arrastando o animal para dentro da casa em chamas quando o trouxemos à existência como um recurso para nosso uso. Daí ficamos quebrando a cabeça para tentar resolver o conflito que nós mesmos criamos! Não faz o menor sentido.

Se levássemos os animais a sério, pararíamos de tratá-los como nossos recursos, como nossa propriedade. Mas isso significaria parar de trazer não-humanos à existência para os usarmos para comida, roupa, vivissecção, ou qualquer outro propósito, inclusive companhia.


Gary L. Francione –  [email protected]

Professor de Direito e Filosofia na Rutgers University, EUA. Conhecido internacionalmente por sua teoria de direitos animais abolicionista, é um crítico implacável das leis do bem-estar animal e da condição de propriedade dos não-humanos.

Conheça a teoria abolicionista de Gary Francione assistindo a 4 apresentações em tradução autorizada para o português: 1. Teoria dos direitos animais / 2. Animais como propriedade / 3. Direitos animais vs. bem-estar animal / 4. Direito Animal. Clique aqui.

Aviso: O professor Gary L. Francione não apóia, necessariamente, pontos de vista expressos nesta publicação, fora aqueles que ele defende em textos de sua própria autoria.

Tradutora autorizada

Regina Rheda –  [email protected]

Escritora premiada, vegana desde o ano 2000 e mora nos EUA. Traduziu o livro Jaulas Vazias, de Tom Regan (Editora Lugano) e é autora do livro Humana festa (Editora Record), o primeiro romance brasileiro a abordar, como tema principal, os direitos animais e o veganismo. Seu website é  http://home.att.net/~rheda/RRHPPortg.html.

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