Do altruísmo de parentesco ao altruísmo ético

Resumo

Reconstituo neste artigo a argumentação de Peter Singer sobre o movimento de libertação moral, efetuado ao longo da história humana, no esforço empreendido pela razão para incluir no círculo da comunidade moral seres destituídos de status na tradição moral. A expansão do círculo da moralidade (Singer, The Expanding Circle1) tem movimentos marcados por influência genética tanto quanto cultural. Enquanto a racionalidade parecia aos gregos o melhor critério para identificar sujeitos dignos de consideração moral e justiça, a senciência tornou-se o critério defendido pelos utilitaristas. No embate entre razão natureza, os filósofos se esquecem dos interesses não-racionais e não-sencientes que ainda precisam ser considerados relevantes por parte dos agentes morais, para que suas decisões e ações não destruam o único valor do qual depende a existência de muitos seres vivos que não possuem razão nem senciência, mas possuem um bem que é próprio de sua espécie de vida.

Palavras-chave: ética animal, comunidade moral, altruísmo de parentesco, altruísmo tribal, altruísmo ético, egoísmo esclarecido, senciência

A origem da ética

Os membros de uma determinada comunidade não podem atacar-se uns aos outros continuamente, sob pena de a ameaçarem de extinção. É necessário criar um padrão de respeito recíproco ao qual todos os indivíduos devem submeter-se, para que o bem comum possa ser garantido.2 Entende-se, desse modo, o conceito sociobiológico de altruísmo, o princípio moral que leva um agente a buscar o bem de outros em vez de defender apenas seus interesses particulares.3 Singer crê ser possível explicar a origem da ética a partir do altruísmo.4 Mas, a sociobiologia enfatiza o egoísmo animal como matriz primitiva da preservação de qualquer espécie, julgando ser essa a única matriz moral possível a humanos, por sua condição animal.

Aproximando-se e distanciando-se da perspectiva moral sociobiológica, Singer encontra em Darwin uma melhor explicação da origem da ética, pois ele distingue diferentes tipos de altruísmo: o altruísmo natural de parentesco, voltado à defesa dos interesses de membros da própria espécie; o altruísmo recíproco, voltado à defesa dos interesses de outros indivíduos não pertencentes à própria linhagem genética, mas capazes de retribuição;5 e o altruísmo tribal, voltado à defesa dos interesses do próprio grupo.6

altruísmo de parentesco pode ser reconhecido no empenho dos membros de uma determinada geração em manter as condições necessárias ao legado de sua linhagem genética às novas gerações: reprodução, cuidado da prole e ensino são expressões dessa forma de altruísmo, a mais natural e fácil de praticar. Basta ao indivíduo reconhecer os que são seus parentes, os que parecem consigo.

altruísmo recíproco exige alguma inteligência. É preciso que o indivíduo reconheça que deve algo a outro ou outros, respeito e consideração, por exemplo, ainda que esses não se pareçam fisicamente com ele. Esse altruísmo requer também alguma memória dos favores recebidos daqueles a quem deve retribuir. Um grupo capaz do altruísmo de reciprocidade tem mais possibilidade de sobreviver, do que outro, incapaz dela.7 A ética, na perspectiva sociobiológica, tem aí sua raiz. A capacidade para a reciprocidade é o que a origina.

altruísmo de grupo, por sua vez,está sempre combinado com uma certa hostilidade voltada contra quem é estranho. Para sobreviver, o grupo deve isolar-se. Membros não altruístas (free-riders), oportunistas, podem até ser mantidos pelo grupo, desde que não constituam um número excessivo.8

Henry Sidgwick descreve o desenvolvimento moral humano nos seguintes termos: primeiro pensamos nos interesses dos nossos parentes, das pessoas que trabalham para nós, dos nossos amigos, dos vizinhos e da comunidade social na qual vivemos; somente então somos capazes de pensar de forma mais abrangente nos interesses de outros membros do nosso território, raça, sexo ou ideologia. Ao assim procedermos, escreve Singer, seguimos simplesmente a ética do parentesco, a forma de altruísmo típica de qualquer espécie animal.

Mas, a sociedade não deveria encorajar seus membros à prática exclusiva da forma de altruísmo animalesca: “Numa sociedade multirracial [escreve Singer], a preferência por membros da própria raça ou grupo étnico muitas vezes leva a disputas, e em muitos países já é considerado errado preferir membros da própria raça ou etnia no emprego, educação ou hospedagem.”9

Estudos da consciência e da mente dos animais indicam que estes são capazes de raciocínio e que suas características mentais e emocionais diferem da humana não em espécie, apenas em graus.10 Conforme o constatou Darwin em meados do século XIX, “‘As diferenças entre as mentes do homem e dos animais , por maiores que sejam, são de grau, não de espécie.‘”11

Os animais são capazes do altruísmo de parentesco; humanos, por sua vez, são capazes de outras formas de altruísmo, além daquela. Essas outras formas de altruísmo dão origem à ética. De qualquer modo, todos os grupos sociais humanos têm um código moral padrão, de acordo com o qual seus membros devem viver. “A ética [conclui Singer] é parte da condição natural humana”.12

As divergências entre os seres humanos quanto ao que seja um padrão ético aceitável para orientar as ações, devem-se não à herança natural, mas ao fato de que esses padrões precisam ser ensinados e aprendidos, pois, ainda que sejam constantes em todos os grupos humanos conhecidos ao redor do planeta, não são geneticamente legados.13 Eles devem-se à estruturação moral propiciada pela educação.

Desde Platão, lembra Singer, a unidade da sociedade tem sido defendida como o valor mais elevado a ser preservado moralmente. Para garantir tal unidade, o altruísmo de parentesco se constitui num obstáculo político. A família de um indivíduo não deve estar acima da comunidade da qual a própria família depende para viver bem. Mas o modelo do altruísmo de parentesco tem sobrevivido por seus elementos positivos: o convívio com aqueles que são beneficiados, o fato universal da família para todos os que nascem, o benefício que a própria sociedade tem ao deixar os cuidados da propagação genética sob responsabilidade direta dos interessados nela, a simplicidade desses cuidados, representando economia para o Estado, ao ser dispensado de arcar com o custo da reprodução e manutenção da vida dos indivíduos e do desenvolvimento de sua personalidade.14

O altruísmo recíproco está fundado em outras bases: nos princípios da justiça distributiva e da justiça comutativa.15 Mas, adverte Singer, a expectativa de se ter retribuído o que é feito em favor de outro no mesmo valor, ou se ter compensação por danos e perdas, caso não haja reciprocidade ou se sofra violências, transforma o altruísmo recíproco em algo exatamente contrário ao altruísmo: em egoísmo esclarecido, cujos limites morais podem ser assim definidos: “Alguém pode ser um parceiro absolutamente retribuidor, sem que tenha a menor preocupação pelo bem-estar da pessoa a quem ajuda. A preocupação pelos próprios interesses, mais o conhecimento de que as trocas na assistência podem ser do interesse de ambos os parceiros a longo prazo, é tudo do que se precisa. Mas, nossas atitudes morais, no entanto, requerem algo muito diferente.” Para que uma ação possa ser considerada moral, continua Singer, “é preciso que ela seja a expressão de uma preocupação espontânea pelo bem de outro, ou um desejo consciente de fazer o que é certo“.16

Sem a compreensão da distinção entre altruísmo recíproco genuíno e egoísmo esclarecido não há evolução moral. Por isso, toda argumentação ética que defenda a necessidade de se proteger os animais, os ecossistemas ou mesmo os interesses humanos, tendo em vista o benefício desta ação para as gerações futuras, não passa de egoísmo esclarecido.

É possível que uma determinada ação seja benéfica a alguém, ainda que este não tenha consciência deste benefício. Pode-se pensar isto tanto em relação àqueles que agem, quanto àqueles que são afetados pela ação. Neste caso, não se pode dizer que há um egoísmo esclarecido, ou uma motivação por interesse próprio. Para a sociobiologia, nenhuma ação humana pode ser considerada genuinamente altruísta. Para Singer, inspirado em Diógenes, que declarou ser “um cidadão do mundo e não de um país”, em Marco Aurélio e Sêneca, Voltaire, Goethe e Schiller, que declararam que “nossa lealdade deve ser orientada para a comunidade mundial”,17 o altruísmo ético é uma possibilidade moral aberta aos seres humanos dispostos a querer o bem dos outros, ainda que disso não tirem proveito algum.

Para admitir a expansão do círculo da moralidade é preciso que o agente moral tenha a capacidade de distanciar-se de seus interesses pessoais egoístas e de perceber-se como membro de uma comunidade mais ampla, constituída de membros que não têm necessariamente a mesma aparência familiar com a qual se identifica desde a infância.

Para ser ético é preciso que o agente moral seja capaz de fazer uso do intelecto, do pensamento, da razão. As emoções, neste caso, não são um bom guia. Embora estejam na base da moralidade, as emoções originam-se nas experiências do bom e do ruim, particulares ao indivíduo. Elas não podem servir de medida objetiva para definir o que se faz de bom ou de ruim a outros seres vivos, especialmente quando esses não privam do mesmo habitat natural, social e emocional do agente moral.

O padrão racional exigido para a constituição da moralidade, na concepção de Singer, pode ser traduzido nas duas exigências que o utilitarismo de ação (act utilitarianism) estabelece: considerar os interesses de todos os afetados por nossas ações; e ter certeza, antes de agir, de que entre as alternativas possíveis esta é a melhor ação, da perspectiva daqueles que serão atingidos por ela.18 Exatamente nesta proposta ética do utilitarismo de ação Singer se põe numa posição adversa à da sociobiologia de Wilson, para a qual nada que não seja natural pode ter valor moral. Agir moralmente pode ser algo anti-natural. Mas no caso humano, nem tudo o que é anti-natural é adverso à moralidade.

Agir buscando o melhor resultado, levando em conta o que os afetados pela ação consideram ser melhor para eles, é algo não-natural, é expressão do altruísmo ético, distinto do altruísmo de parentesco, do altruísmo de grupo e do egoísmo esclarecido.

O que se revela natural para nossa mente geralmente é algo que constitui nossas intuições morais. Uma análise acurada de nossas intuições morais mais profundas mostrará que elas estão imbricadas por nossas emoções, afetos, sentimentos, memórias e desejos. Intuições morais não têm, pois, qualquer autoridade que deva ser obedecida por outro agente moral.

Ao usar a razão, algo que o altruísmo ético exige, o agente moral pode ser obrigado a contrariar suas intuições morais. Intuitivamente, seguindo a descrição sociobiológica de nossa natureza, buscamos apenas proteger os interesses dos seres que se parecem conosco. Esta ética tribal animalesca não se presta para reger interações em mundos urbanos compostos por seres absolutamente não identificados uns com os outros.19

Contrariando a inclinação moral, ao agir eticamente busca-se o bem-próprio de quem sofre a ação, ainda que este ou esta não se pareça em nada conosco, nem faça parte de nosso grupo, nem possa nos retribuir o ato. O bem desse outro representa para nós o valor a ser preservado. Os fatos de sua aparência singular, embora não representem valor algum para nós, podem dar-nos algum esclarecimento sobre as condições do paciente moral. Mas fatos não nos levam à ação. Os valores, pelo contrário, são as legítimas motivações para o agir moral.20

Em suma, nossos genes não escolhem nossas premissas éticas. Nós o fazemos usando nossa razão. Nenhum fato genético mostra direção alguma para nossos atos. Fatos podem explicar e predizer, mas estão longe de prescrever ou de justificar valores. A ética coloca diretivas que servem de guia para a ação.21 A sociobiologia e a antropologia podem fazer descrições minuciosas dos padrões valorativos de minha sociedade, escreve Singer, mas o que nenhuma das duas ciências consegue fazer é obrigar-me a seguir tais padrões. Mesmo sendo possível prever uma decisão alheia, sempre resta o sujeito que toma a decisão e assume a responsabilidade pelo que faz.22 Nenhuma descrição biológica, sociológica ou antropológica da natureza humana pode apagar a liberdade moral.

Para Singer, não há alternativa: ou aceitamos a intervenção da razão em nossas escolhas éticas, ou caímos no subjetivismo ou relativismo moral do qual não escapam as melhores propostas sociobiológicas produzidas. A história da tradição moral evidencia o componente racional em todas as concepções éticas, de Sócrates a Aquino, de Kant a Rawls. “O fato de que escolhemos nossas premissas éticas não implica em que essas escolhas sejam arbitrárias.23 Para não ser arbitrária, uma escolha moral precisa ser justificável da perspectiva racional do observador imparcial [David Hume, John Rawls], ou do ponto de vista do universo [Henry Sidgwick].

A razão, não as emoções, nos permite ir a lugares inusitados, imprevistos. Ela estabelece conexões entre conceitos não vinculados entre si, permite mudar a percepção de algo e, assim, nossas convicções intuitivas. Ao aceitar certas premissas, pelo fato de o fazermos usando a razão, temos de aceitar as conclusões que se tiram delas.24 Pela razão podemos juntar cidadãos romanos e cristãos, elefantes, leões e humanos escravizados, mulheres e ecossistemas, camundongos, suínos e frangos, negros e recém-nascidos de quaisquer espécies. A razão os compreende num único conceito, o da senciência, por exemplo, que nos permite pensar sua condição em termos de igualdade, portanto, para além da singularidade factual de sua aparência exterior pela qual os distinguimos ou discriminamos. Infligir dor a qualquer um desses seres é infligir-lhes algo mau, pois sua condição de seres sencientes os torna vulneráveis à dor e desejosos do prazer, da fruição.

Ver, apesar de sua singularidade, o interesse semelhante que os iguala, por exemplo, o interesse em não serem aprisionados, nem serem privados da liberdade de moverem-se para proverem-se a seu modo específico, é o que nos faculta a razão, ainda que nossos olhos, ouvidos, olfato e tato nos ponham em contato com sua aparência em nada semelhante à nossa.

Para além da aparência, escreveu Humphry Primatt em 1776, em seu livro, The Duty of Mercy, todos esses seres têm em comum a capacidade de sentir dor e de sofrer. O reconhecimento dessa peculiaridade universal é o que nos permite sua inclusão no âmbito da comunidade em relação à qual temos deveres positivos e negativos, os deveres de ajuda e proteção, e os de abstenção de todo ato danoso ou injurioso contra seus interesses.

Para julgar se uma ação tem valor moral, ou não, é preciso operar com conceitos e noções produzidos racionalmente. Os juízos da razão são os únicos que se submetem ao escrutínio da racionalidade alheia, justamente o que lhes confere validade universal. Nesse sentido, os juízos morais são justificativas expostas à comunidade maior de sujeitos racionais, a um público disposto a analisar sua legitimidade e veracidade. Quando fundados em nossas emoções, ou simplesmente em nossas intuições, nossos juízos morais reproduzem apenas os interesses familiares ou particulares,25 aqueles que apreciamos por deles usufruirmos.

desinteresse pessoal torna-se, para Singer, a base de sustentação do raciocínio ético, não o padrão dos costumes que a intuição costuma adotar como medida para julgar se algo é bom ou mau do ponto de vista moral. Embora os costumes tenham algo de valor, por serem um acúmulo de aprovações e reprovações morais públicas de uma determinada sociedade, eles não são imparciais, pois resultam dos hábitos particulares desse grupo.26 Seguir os costumes [a tradição] é obedecer cegamente um hábito passado, instituído por interações que atenderam aos desejos de pessoas que também já passaram. Augusto Comte, em seu Curso de Filosofia Positiva, escrito na França entre 1830-1842, escreve: “os mortos governam os vivos”. Esse império é tão absoluto que desde Sócrates, lembra Singer, a moral acostumada não tolera qualquer questionamento racional dos padrões que impõe.27

Para evitar o relativismo decorrente desses padrões morais que bem podem estar mal-acostumados, é preciso sustentar a ética sobre uma base racional. A razão, escreve Singer, é inerentemente expansionista, os princípios que aponta buscam uma aplicação universal.28

Graças à razão, os romanos aceitaram do cristianismo a idéia da igualdade entre os homens, fossem estes nascidos, ou não, sob o império romano. Graças à razão, os seguidores das religiões mais influentes na Europa dos séculos XVII e XVIII aceitaram a igualdade entre crentes de diferentes doutrinas. Graças à razão, os abolicionistas conseguiram mostrar que a cor da pele não constituía fundamento moral algum para o seqüestro e comércio de seres humanos com vistas à expropriação de sua força de trabalho e apropriação de seus corpos vivos. Graças à razão, as mulheres provaram que não havia na sua natureza nada que as impedisse de estudar, exercer as profissões reservadas ao sexo masculino, trabalhar, fazer ciência, matemática e filosofia. Graças à razão, finalmente, os filósofos conseguiram elaborar argumentos suficientes para mostrar que a configuração biológica externa de um organismo animal não o poupa da experiência da dor, quando dotado de um sistema nervoso organizado. Em todos esses movimentos, a razão forçou a ampliação do círculo da igualdade para permitir a inclusão de novos sujeitos tidos como inaptos até então.

Somente pressionados pela razão os costumes ou tradições mal-acostumadas cedem lugar para os esclarecidos. E sua natureza mais esclarecida se manifesta exatamente pelo princípio da não-discriminação dos interesses semelhantes. Diante de interesses semelhantes, a ação que deve ser praticada é a que resulta no atendimento maior das preferências moralmente consideráveis daqueles que são afetados por ela, ainda que sua aparência não seja a mesma do agente moral.

Considerando-se a necessidade de expansão do círculo da moralidade e o princípio da imparcialidade que rege todo e qualquer juízo moral válido,29 interesses semelhantes passam a dever ser considerados igualmente relevantes.30

A escolha de critérios morais para definir deveres positivos e negativos já afirma o valor moral daquilo que o critério protege. Por exemplo, se a posse da razão for o critério que torna um ser digno de respeito moral, apenas os seres que possuem razão serão considerados valiosos e respeitados moralmente. Se a senciência for estabelecida como critério para definir quem faz parte da comunidade moral, apenas seres humanos e não-humanos dotados da capacidade de sofrer e de fruir serão considerados dignos de respeito moral.

O grande avanço moral que se pode fazer, hoje, é reconhecer que não é a natureza quem nos obriga a agir moralmente. A natureza não limita nossa liberdade na luta pelo atendimento de nossos desejos, interesses e preferências. Somente pela razão podemos fazer isto. O reconhecimento de que temos interesse em agir moralmente, e de que interesses semelhantes devem ser considerados igualmente, pressupostos estabelecidos pela razão, nos permitem dar um passo adiante em relação aos padrões morais racionais dos quais somos herdeiros. Para explicar por que nos obrigamos a agir moralmente, é preciso aceitar que temos um interesse ou uma preferência em agir deste modo, não de outro.31

Limites na passagem da intuição para a razão

Aceitar que se deve tomar decisões desinteressadas quando elas têm o poder de afetar interesses de sujeitos aos quais reconhecemos igualdade em valor moral é o mesmo que reconhecer o valor dos próprios interesses. O altruísmo ético exige, porém, que se tomem decisões desinteressadas para beneficiar interesses de seres que podem ser afetados por elas, ainda que estes não sejam considerados de valor moral igual ao nosso.

A passagem do reconhecimento intuitivo do valor dos interesses de outros seres, para o reconhecimento racional do valor dos interesses de outros seres que não nos são familiares desafia a vontade humana. Superar os conceitos nos quais nossa mente está formatada, aqueles vinculados ao altruísmo de parentesco, de grupo, ou mesmo ao da reciprocidade [egoísmo esclarecido], e adotar o altruísmo ético, cujos conceitos são dados por um raciocínio formulado à base de conexões dos conceitos de semelhança nos interesses, igualdade moral e considerabilidade para além do parentesco ou da semelhança na aparência, é o desafio posto à vontade moral.

Não podemos determinar que o mundo seja formatado conforme as intuições que nos são legadas. Em outras palavras, não podemos escolher o que ele é,32 mas podemos escolher o que fazer para não nos deixar enganar pelas diferenças na aparência daqueles que sofrem com o que fazemos a eles, por exemplo, animais e ecossistemas. Podemos seguir nossa intuição moral e nos afastar de tudo o que não se parece conosco. Mas também podemos ampliar o âmbito afetado pela nossa vontade moral e aceitar que os outros são do modo que são, com sua singularidade e diferença, e nenhuma delas os constitui como indignos de merecer consideração e respeito, sejam eles animais humanos, não-humanos ou ecossistemas.

Biologicamente, só vemos diferenças de todo tipo naqueles que afetamos com nossa forma de vida. Racionalmente, no entanto, podemos ver a semelhança na singularidade de sua condição vulnerável, nossa própria condição. “Adotar um ponto de vista objetivo [escreve Singer] implica em ver nossos próprios interesses como não mais importantes do que os mesmos interesses de qualquer outro. Isso resulta no princípio da igual consideração dos interesses de todos.33

Para a formação da nova consciência ética, razão e intuição devem trabalhar juntas, sempre que a primeira não se mostrar poderosa o suficiente para levar a vontade do agente moral a seguir seu ditame.

Se a sociobiologia tem razão em alguma coisa, com certeza será em sua defesa de que há uma certa tendência na natureza humana para proteger os interesses dos que estão próximos, antes de se estar disposto a fazer o mesmo em relação aos estranhos. Em vez de negar esta tendência, a ética deve esclarecê-la racionalmente e fazer uso dela da melhor forma possível até que o agente moral compreenda que seu dever se estende a todos os que têm, em comum com ele, os mesmos interesses que tão ardorosamente protege. Pela razão podemos levar a intuição ao lugar que lhe cabe: o de nos permitir compreender nossas próprias disposições. “Um código ético racional [escreve Singer] também deve fazer uso das tendência existentes na natureza humana. Podemos tentar cultivar as tendências que são desejáveis, de uma perspectiva imparcial, e cortar os efeitos daquelas que não são; mas não podemos supor que a natureza humana seja tão fluida que os educadores morais a possam moldar do jeito que quiserem.34

Embora não se deva ter a expectativa de poder moldar a natureza humana do modo que se gostaria que ela fosse, tem-se a possibilidade de orientar seu movimento através de regras morais. Singer apresenta algumas razões para a adoção de regras morais: elas permitem por limites às nossas obrigações, tanto no sentido de ampliá-las, quanto de restringi-las.35 Regras morais explícitas ajudam-nos a saber o que deve e o que não deve ser feito.36 Um bom sistema de regras, esclarece Singer, ajuda-nos até mesmo nos casos ou situações-limite, nas quais vivemos conflitos de interesses ou dilemas morais.

Embora um sistema de regras morais seja uma espécie de pré-conceitos acerca do valor moral a ser preservado, esta seria a única forma de adoção de conceitos prévios não discriminadora, desde que as regras morais fossem estabelecidas a partir do princípio da igual consideração de interesses semelhantes proposto por Singer. Em situações nas quais não temos lucidez moral, seja por estarmos envolvidos na cena, seja por razões de outra ordem, a adoção de regras morais é salutar. “A adesão a regras morais simples, quando ao fazer isto não as distorcemos ou nos enganamos, nos alivia da tarefa de ter de julgar quando não estamos em condições ideais para fazê-lo[conclui Singer].”37

Além disso, regras morais claras, se obedecidas por todos, fomentam a confiança mútua. Em resumo, regras morais são defensáveis, por “limitar nossas obrigações, torná-las mais pessoais, educar os jovens, reduzir a necessidade de cálculos intrincados de perdas e ganhos, controlar a tentação de vincular eticamente cálculos a nosso favor e fomentar a confiança necessária à comunicação.38

Apesar de considerar valiosas as regras morais pelas razões acima apontadas, Singer alerta para o fato de que todas essas razões pelas quais se deve estabelecê-las não obrigam ninguém a obedecê-las em todos os casos.39 Há casos especiais nos quais as regras morais podem mostrar-se inoportunas. Ainda assim, o princípio moral universal que norteou o estabelecimento daquelas normas morais deverá ser seguido para tomar as decisões nos casos não-paradigmáticos. Conflitos morais fazem parte da nossa condição humana, pelo menos por três razões, aponta Singer: em primeiro lugar, pela divisão em nosso próprio organismo entre sua natureza biológica e nossa capacidade para raciocinar de forma imparcial; em segundo lugar, pelo embate entre a perspectiva pessoal e a perspectiva social; em terceiro lugar, pela necessidade de se construir regras morais que em certas ocasiões devem no entanto ser desobedecidas.40

A questão, explica Singer, é que:

Embora nossa capacidade de raciocinar se desenvolva pelas mesmas razões biológicas de nossas outras características, a razão traz consigo a possibilidade – não realizada com freqüência, admita-se, ainda assim uma possibilidade – de seguir padrões objetivos de argumentação, independentemente do efeito que isso tenha sobre o crescimento de nossos genes na próxima geração.41 Isso requer a habilidade de elaborar o ideal de nossa cultura numa perspectiva ética, sem abrir mão do que tem se mostrado permanente nos desejos humanos.42

Finalizando sua argumentação, Singer reconhece que a ética, enquanto instituição humana, tem tanto poder para redefinir nossa natureza, quanto o tiveram outras forças, naturais e sociais, ao longo da história. A questão é que faz pouco tempo que decidimos ser éticos, e quando o fizemos sofríamos influências de tempos muito mais longos, desde aqueles da idade da pedra, na qual apenas a ética tribal era considerada digna de obediência. Para expandir nossa natureza para além das tribos mentais às quais nos confinamos, é preciso reconhecer que viver de modo ético é a única alternativa para distinguir nossa natureza da mera configuração de membros de uma tribo qualquer. “Instituições sociais humanas [escreve Singer] podem alterar o curso da evolução humana. Assim como o clima, o suprimento alimentar, os predadores, e outras forças seletivas naturais moldaram nossa natureza, do mesmo modo o pode nossa cultura.43

Sejam quais forem as condições nas quais o ser humano nasce e vive, sua constituição social o levará a desenvolver a racionalidade não instrumental, e, com esta, a atender ao princípio altruísta ético de considerar igualmente os próprios interesses e os daqueles que podem ser prejudicados por suas ações. Esta capacidade permite a ampliação dos círculo da moralidade para proteger humanos e não-humanos. A ética contemporânea está desafiada por essa perspectiva elaborada por Singer.

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SINGER, Peter. The Expanding Circle: Ethics & Sociobiology. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1981.

Notas

1 SINGER, Peter. The Expanding Circle; Ethics & Sociobiology. New York: Farrar, Straus & Giroux, 1981. Doravante citado SINGER, TEC.

2 SINGER, TEC, p. 4.

3 Edward O. Wilson, Sociobiology: The New Synthesis, apud SINGER, TEC.

4 SINGER, TEC, p. 10.

5 SINGER, TEC, p. 11-12.

6 SINGER, TEC, p. 20.

7 SINGER, TEC, p. 18.

8 SINGER, TEC, p. 20.

9 SINGER, TEC, p. 33.

10 Cf. BEKOFF, Marc. The Emotional Lives of Animals. Novato, CA: New World Library, 2007.

11 Apud Singer, TEC, p. 28.

12 SINGER, TEC, p. 23.

13 No entender de Edward O. Wilson, apud Singer, TEC, p.29.

14 SINGER, TEC, p. 36.

15 SINGER, TEC, p. 39.

16 SINGER, TEC, p. 42-43.

17 SINGER, TEC, p. 52.

18 SINGER, TEC, p.64.

19 SINGER, TEC, p.72.

20 SINGER, TEC, p. 75.

21 SINGER, TEC, p.77-79.

22 “Explicações sobre o que a ética é, sejam antropológicas ou sociológicas não me podem dizer o que devo fazer, porque não sou obrigado a seguir as convenções de minha sociedade, ou a promover a sobrevivência dos meus genes.” [SINGER, TEC, p. 83].

23 SINGER, TEC, p. 86.

24 SINGER, TEC, p. 88.

25 Conforme o aponta Hume, apud Singer, TEC, p. 93.

26 SINGER, TEC, p.94.

27 SINGER, TEC, p. 97.

28 SINGER, TEC, p. 99-101.

29 SINGER, TEC, p. 109.

30 SINGER, TEC, p. 106.

31 SINGER, TEC, p.110.

32 SINGER, TEC, p. 150.

33 SINGER, TEC, p.150-1.

34 SINGER, TEC, p. 155.

35 SINGER, TEC, p. 159.

36 SINGER, TEC, p. 161.

37 SINGER, TEC, p.162.

38 SINGER, TEC, p. 163.

39 SINGER, TEC, p. 164.

40 SINGER, TEC, p.168.

41 SINGER, TEC, p.169.

42 SINGER, TEC, p. 170.

43 SINGER, TEC, p. 172.


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