Ela fez experimentos em primatas por décadas. Agora quer fechar os laboratórios

Ela fez experimentos em primatas por décadas. Agora quer fechar os laboratórios
Lisa Jones-Engel. foto por Lynn Johnson.

“Bem aí! Embaixo dos seus pés! Tem 300 macacos! Eles não viram a luz do sol! Em anos”!

Lisa Jones-Engel está do lado de fora da entrada do Washington National Primate Research Center com outras duas dúzias de manifestantes, a maioria 30 anos mais novos que ela. Com seu rabo-de-cavalo entrelaçado cinza e louro sobre um ombro, ela grita em um megafone. Conforme grita, pensa: “Deus, você soa como uma baita ativista. Soa como um deles.”

Se você tivesse contado a Jones-Engel dois anos atrás que ela estaria fazendo isso, ela ficaria horrorizada. Era uma PhD, uma primatologista, uma cientista, pelo amor de Deus, não uma ativista boba de macacos que reduz questões sofisticadas a gritos de acampamento de verão.

Ela trabalhou no Laboratório da NYU para medicina experimental e cirurgias em primatas, e depois no centro de pesquisa de Universidade de Washington, um de oito centro nacionais de pesquisa de primatas criados nos anos 60. Investiu décadas no campo, capturando por meio de armadilhas e fazendo experimentos com macacos e outros primatas pela Ásia em concessões de prestígio, publicando sua pesquisa em revistas de ponta, foi coautora de um livro sobre doenças em macacos e construiu competência e credibilidade.

Mas agora, aqui estava ela usando uma máscara de macaco chamativa em uma calçada de Seattle, se sentindo vívida e muito desconfortável por ser parte deste espetáculo. Ela resolveu se encorajar.

Vinha tentando arduamente por tanto tempo melhorar a situação dos animais sob seus cuidados, os macacos usados em pesquisas biomédicas. Fez os argumentos calmos e racionais e fez parte do Comitê Institucional de Cuidados e Uso de Animais (Institutional Animal Care and Use Committee, IACUC) de sua universidade. Mas toda vez que questionava um protocolo ou informação solicitada, até questões simples como se os animais no estudo estavam corretamente pareados em idade e sexo, ela não recebia resposta e era desrespeitada. Foi rotulada como problemática, o que não aconteceria com um pesquisador consagrado.

Então, no final de 2019, ela tomou uma decisão drástica e irrevogável: disse sim para um trabalho na People for the Ethical Treatment of Animals (Peta) como uma conselheira cientista sênior, um movimento que ela nunca havia planejado ao início de sua carreira.

Fez uma promessa para si mesma: iria fechar os sete centros de pesquisa primatas restantes dentro de dez anos.

Ela faria isso, também.

Em 2019, o último ano em que a pesquisa esteve disponível, mais de 108.000 macacos foram mantidos e/ou usados em experimentos em laboratórios norte-americanos, junto com cerca de 200.000 porquinhos da índia, 58.000 cachorros, 18.000 gatos e milhões de camundongos e ratos. A Agência de Proteção Ambiental dos EUA espera eliminar a testagem em animais vertebrados até 2035. (Poucos se importam com o que pesquisadores fazem com insetos e outros invertebrados.)

A controvérsia sobre o uso de animais em pesquisas retorna ao século 18 na Europa, quando filósofos como Jean-Jacques Rousseau começaram a argumentar que os animais tinham direitos. Aquela controvérsia tomou corpo nos anos 60 quando o Instituto Nacional de Saúde dos EUA (National Institute of Health, NIH) estabeleceu o centro de pesquisas de primatas e as pesquisas médicas começaram a utilizar primatas não-humanos.

Mais de 108.000 macacos foram mantidos em laboratórios norte-americanos a partir de 2019. Fotografia: Lynn Johnson
Mais de 108.000 macacos foram mantidos em laboratórios norte-americanos a partir de 2019. Fotografia: Lynn Johnson

Neste século, pesquisadores e ativistas dos direitos dos animais ocupam normalmente cantos opostos do cenário ético. Em um canto, o mundo da pesquisa biomédica insiste que animais são cruciais no desenvolvimento de novos tratamentos para humanos, que suas dores são supervisionadas e atenuadas, e os ganhos da pesquisa são uma compensação justa pelo sofrimento.

No outro canto, ativistas dos direitos dos animais alegam que menos de 5% dos testes em animais se traduzem em tratamentos humanos viáveis, e os Institutos Nacionais de Saúde concordam. Eles também dizem que milhares de animais de laboratórios sofrem e morrem desnecessariamente, que há outras opções para a pesquisa, e que os humanos não têm o direito moral ou ético de usar outras espécies assim.

A varíola do macaco, um primo viral da varíola, que atualmente se dissemina nos Estados Unidos e Europa, tem sido bastante associada aos primatas enviados para laboratórios de pesquisa. “Há tantos macacos entrando nos aeroportos dos EUA”, diz Jones-Engel. Semana passada, por exemplo, ela ouviu de um denunciante sobre um voo de carga da EgyptAir que decolou de Camboja com o carregamento cheio de macacos de cauda longa, “quase certamente doentes”, que foram transportados por 2.897 km de uma ponta a outra do país para o Texas após o desembarque.

“Toda e qualquer coisa a que esses macacos foram expostos ou infectados à medida que se deslocam ao longo dessa “cadeia de suprimentos” tem o potencial de se espalhar para os humanos”, diz ela.

A perspectiva dos ativistas cresceu com o desenvolvimento acelerado das vacinas de Covid-19, possível em parte porque os testes em animais foram conduzidos ao mesmo tempo que os testes em humanos ao invés de sequencialmente. Para alguns, isto prova que os testes em animais são uma formalidade desnecessária.

Por décadas, Jones-Engel se identificou como uma pesquisadora, começando no ensino médio, quando se voluntariou por sete meses no acampamento de pesquisa da antropologista Birute Galdikas, na Indonésia. Galdikas estuda orangotangos, mas pediu a Jones-Engel para investir seu tempo com os macacos selvagens que vivem em pântanos ao redor do acampamento. Às vezes, Jones-Engel remou em uma canoa feita de árvore, mas ela, na maioria das vezes, se arrastava pela lama até as axilas. “Ela nunca saía seca” disse Galdikas com admiração. “Ela era corajosa.”

Por mais de 30 anos, Jones-Engel seguiu macacos, construindo um banco de dados de sangue, fezes e outras amostras de mais de 1.000 macacos. Ela gosta de pensar em si mesma como um macaco, na verdade: inteligente, sociável, boa em forragear e protetora. “Deus te ajude se você olhar de soslaio para um dos meus jovens, diz ela. Ela está apenas em parte brincando.

Ainda assim, ela zombou de ativistas dos direitos dos animais. “Eles não entendiam que há pessoas decentes que pensam que um dos maiores chamados é cuidar de um animal em um ambiente de laboratório”, explica agora, referenciando suas crenças passadas. Pesquisadores de primatas pensavam que “os ativistas de animais são pessoas loucas, destrutivas, perigosas e ignorantes, e nós somos cientistas. Voltem, seus tolos, e deixem-nos trabalhar.

Essa foi uma posição confortável para um cientista ambicioso como Jones-Engel, por um tempo. Mas seu pensamento começou a mudar com o tempo, principalmente depois de se converter ao judaísmo em 1994, quando estava grávida de cinco meses de filhas gêmeas.

Ela e seu marido, Gregory Engel, organizam jantares semanais de Shabbat em suas casas em Seattle e Barrow, no Alasca, onde ele exerce a medicina. Esses jantares incluem diversos grupos de amigos, vizinhos e errantes. “Uma das coisas que faço como judia é construir uma comunidade, reunir pessoas que precisam dela, quer saibam disto ou não”, diz ela. “Quando vejo macacos em gaiolas individuais, vejo que você tirou o que é mais importante para um macaco. Você tirou a sua capacidade de ter um relacionamento.”

Depois disso, 10 anos atrás, ela estava dirigindo perto de Zorargonj, Bangladesh, procurando por macacos para amostra, quando viu um homem andando com um macaco em uma coleira e pediu ao colega para encostar o carro. Abriu a porta da van e o macaco pulou na van e agarrou suas bochechas. Poxa, ela pensou. Eu vou perder meu rosto?

Lisa Jones-Engel em Bangladesh, em 2014, onde ela colhia amostras biológicas de donos de macacos e seus animais. Fotografia: Lynn Johnson.
Lisa Jones-Engel em Bangladesh, em 2014, onde ela colhia amostras biológicas de donos de macacos e seus animais. Fotografia: Lynn Johnson.

Em vez disso, o macaco colocou o nariz e a boca bem perto do de Jones-Engel, quase, mas não exatamente se tocando, e pelos próximos 30 segundos eles ficaram assim: dois primatas compartilhando a respiração no ar úmido. Então o macaco a soltou. O proprietário disse que ela poderia ir em frente e pegar uma amostra, mas Jones-Engel não podia. Naquele momento, não tinha como ela ter causado sequer um segundo de dor ou desconforto àquele macaco.

Dois meses depois, Jones-Engel estava pegando macacos em armadilhas em um vilarejo em Bangladesh. Ela capturou uma dúzia de animais enquanto gritavam, incluindo a mãe e seu filhote; ela os anestesiou, tirou amostras, deixou-os acordar e os liberou.

Os macacos fugiram, exceto o filhote, que ainda se agarrava à rede. Sua mãe, ao perceber que ele foi embora, se virou e correu de volta para a armadilha para pegá-lo. Ao vê-la se colocar de volta em perigo por causa de seu ,filhote Jones-Engel teve uma revelação.

“Como qualquer mãe, ela estava disposta a fazer o que fosse possível para ter seu filhote”, lembrou. “Como uma mãe, sabia o que isso lhe custou. E simplesmente fui… nossa, não posso mais fazer experimentos com eles porque são como nós”.

Aquela observação (eles são como nós) é, de várias maneiras, o paradoxo para o coração do debate sobre os primatas na pesquisa. O psicólogo John Gluck, agora um professor e pesquisador no Kennedy Institute of Ethics, na Universidade de Georgetown, articula o paradoxo em seu livro Voracious Science & Vulnerable Animals: quando pesquisadores querem extrapolar os resultados com animais para humanos, enfatizando similaridades entre demais animais e humanos, ele explica. Mas quando eles querem justificar pesquisa que causam medo, dor ou morte, protocolos que nunca deveriam ser aprovados por humanos, enfatizam as diferenças.

Dito de outro modo, podemos aprender com eles pois são como nós; podemos fazer experimento com eles porque não são como nós.

Jones-Engel já lutava contra este paradoxo quando leu o de Gluck em 2017 e voou para encontrá-lo. Ele a encorajou a aceitar uma cadeira no IACUC, onde ela investiu os próximos dois anos tentando balancear visões opostas, de pesquisas em animais e cuidado animal.

Ela rapidamente ficou frustrada com as expectativas de que o comitê carimbasse a pesquisa em vez de interrogá-la. Seus pedidos por mais informações em um protocolo ou uma revisão de um design de estudo foram rotineiramente negados. Ela foi rotulada como problemática, o que causou tensão entre ela mesma e a integrante do comitê, Jane Sullivan, e, por fim, ela demitiu-se da universidade e do comitê. (Como outros na universidade, Sullivan negou entrevista para esta história.)

Um ponto que a separava de outros pesquisadores no comitê era o profundo conhecimento de animais na vida selvagem. A maioria dos pesquisadores conhecem seus ratos e camundongos apenas como prisioneiros, nunca como seres independentes, competentes e livres.

Lisa Jones-Engel na Indonésia no ano de 2007. Fotografia: Lynn Johnson.
Lisa Jones-Engel na Indonésia no ano de 2007. Fotografia: Lynn Johnson.

“Se você tem alguém preso a vida inteira, sabe que não é uma pessoa comum”, diz John Ioannidis, um professor de medicina em Stanford que escreveu sobre as limitações da pesquisa com animais. “Esses primatas vivem em um ambiente muito estranho, em uma jaula, isolado e sobre stress intenso”.

Também é muito fácil ver estes animais como ferramentas de pesquisa em vez de seres independentes. “Se você trabalha com animais que estão constantemente em uma jaula, não sente seus espíritos. Eles não são iguais a você”, diz Birute Galdikas.

Mas os meses de Jones-Engels nos pântanos com macacos selvagens e seus anos como uma bióloga de campo a ensinaram como os macacos comem, se preparam e dormem. O modo como constroem hierarquias sociais, como resolvem problemas e fazem escolhas. Seu entendimento lhe deu um nível diferente de respeito e compaixão por macacos de laboratórios. Ela queria fazer mais por eles. Sentia que lhes devia. “Os dias muito sagrados são duros, vamos colocar assim” ela brinca. “Eu tenho muitos macacos pelos quais me redimir.”

Ela sabia que o argumento moral não iria longe, então tentou a ciência. Pelos últimos 20 anos, tem havido uma crescente conscientização sobre as maneiras pelas quais as condições de vida dos animais de laboratório os afetam e, portanto, afetam os resultados da pesquisa. “Imagine o que é para um macaco estar sozinho em sua jaula”, ela diz. “Esta solidão tem todas essas implicações posteriores para o animal, para seu bem-estar mental e físico.” Macacos enjaulados também estão propensos a doenças como tuberculose, malária, Staphylococcus aureus resistente à meticilina (MRSA) e salmonela; seus sistemas imunes estão comprometidos por estresse, dor e isolamento. Altos níveis de doenças infecciosas como Chagas, coccidioidomicose e tuberculose vêm sendo encontradas em colônias reprodutivas.

Jones-Engel pensou que os cientistas gostariam de estar cientes dessas questões e da maneira como elas comprometem as descobertas científicas. Eles podem ajudar a explicar por que apenas um pequeno percentual de estudos em animais se traduz em benefícios clínicos para humanos. “Macacos não são pequenos humanos peludos”, diz ela.

Mas mesmo através das lentes de melhorar a ciência, ela não conseguiu que seus colegas ouvissem.

“Lisa é uma pessoa atenciosa”, reconhece Shiu-Lok Hu, uma antiga colega e virologista da Universidade de Washington (UW). “Mas o modelo animal que usamos é um modelo substituto e não é uma maneira válida de prever resultados em testes em humanos”. Em outras palavras, a pesquisa com animais se concentra em fazer perguntas pelo bem da ciência pura, em vez de encontrar tratamentos práticos para as pessoas.

Lisa Jones-Engel em um dos seus primeiros protestos pela Peta, no campus da Universidade de Washington perto do prédio que abriga o laboratório de pesquisa em animais. Fotografia: Lynn Johnson.
Lisa Jones-Engel em um dos seus primeiros protestos pela Peta, no campus da Universidade de Washington perto do prédio que abriga o laboratório de pesquisa em animais. Fotografia: Lynn Johnson.

“Digo aos meus alunos que em 99% das vezes as coisas não funcionam”, diz Hu. “Vocês têm que aprender com essas falhas. Vocês podem dizer que se 99% dos experimentos não funcionam, por que não funcionam? Essa seria o jeito errado de abordá-los.” Como muitos outros pesquisadores de animais, ele desvia de questões sobre a ética de submeter os animais à dor por causa da pesquisa pura. Por exemplo, quando perguntado se manter animais em gaiolas e fazer experimentos com eles estava, por definição, prejudicando-os, ele respondeu: “Bem, sim. E não. Não sei.”

Racionalizações como esta frustram Jones Engel. “Em que ponto perguntamos muito pelos animais?” diz. Ela pensou que poderia mudar a situação por dentro do sistema, e seu fracasso quase a destruiu.

Quando eu falei com ela pela primeira vez anos atrás, ela comentou: “Se você está do lado da ciência, veste o manto do cientista. Se está do lado do movimento dos direitos dos animais, veste o manto do advogado, da moral, da pessoa ética. Eu tenho um pouco de mim em cada lado porque entendo ambos. E é um lugar horrível para se estar”.

Estes dias, o lugar horrível é, majoritariamente, uma memória. Jones-Engel está ansiosa para trabalhar, para abrir sua caixa de entrada de e-mail e ver se uma de suas muitas solicitações da Lei de Liberdade de Informação foi atendida. Ela sabe o que outros cientistas pensam da Peta, que na melhor das hipóteses é ingênua e, na pior, propaga mentiras, e, na verdade, às vezes ela concorda.

No protesto, por exemplo, ela ouviu outros ativistas falarem sobre invadir e soltar os macacos, e pensou, não, não, isso é uma péssima ideia! Alguns minutos depois, ela ouviu alguém cantando “Estamos aqui hoje! Na UW! Onde eles estão matando bebês!”. O exagero a fez querer se encolher e morrer.

Mas ela também acredita que o exagero força as pessoas a prestar atenção de maneiras que, caso contrário, não prestariam. A organização recebeu críticas por veicular campanhas na mídia justapondo imagens de maus-tratos de animais com imagens de escravidão, ou comparando a dor dos judeus durante o Holocausto com o sofrimento dos animais criados em fazendas industriais. “Somos todos animais”, explica Jones-Engel. “Todos nós sofremos. E a Peta não se intimida em colocar isso bem na sua face. Pode ser chocante, e acredito que essa seja a intenção da Peta.”

Lisa Jones-Engel no Camboja, em 2011. Fotografia: Lynn Johnson.
Lisa Jones-Engel no Camboja, em 2011. Fotografia: Lynn Johnson.

Essa é parte da razão pela qual ela sente que encontrou sua tropa. “Uma das coisas que provavelmente me dá um prazer indevido é que você realmente não pode dizer não para a Peta”, diz ela. “Se você fizer isso, a Peta elaborará um processo e o deixará na sua porta. Eles vão montar um anúncio de TV e começar a exibi-lo.” Uma vez que a organização assume um problema, seu compromisso é absoluto. Para Jones-Engel, vale a pena deixar de lado o prestígio, a adrenalina e outras armadilhas de sua antiga vocação. Ela está fazendo as pazes com a ideia de que pode nunca mais voltar, agora.

Há um alívio em deixar ir, em ficar firme ao lado dos direitos dos animais, em usar sua formação científica e conhecimento para o que ela vê como um propósito maior. Seu trabalho é um chamado tanto quanto a ciência com C maiúsculo já foi. “Se você realmente olhar”, ela simplesmente diz, “é rara a pessoa que não pode ver.”

Por Harriet Brown / Tradução de Leonardo Faria

Fonte: The Guardian

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