‘Então você está querendo dizer que todo caçador é um psicopata?’

‘Então você está querendo dizer que todo caçador é um psicopata?’
Foto ilustrativa

No dia 16 de março de 2019 estive participando do seminário “Aspectos Éticos, Legais, Instrumentais e Psíquicos da Caça”, que ocorreu na sede da UMAPAZ, no Parque Ibirapuera, sob a iniciativa e organização da ONG Olhar Animal.

Tendo a honra de haver palestrado ao lado dos Promotores de Justiça Dra. Vânia Maria Tuglio e Dr. Laerte Fernando Levai, da Psicanalista do Projeto Espaço de Palavra, Dra. Renata Zancan e da Engenheira Ambiental Dra. Rafaela Maia Ribeiro, assistente técnica do GAEMA – Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente do Ministério Público, minha palestra foi a ultima do dia, com o título “Controle populacional de javalis”.

Em grande parte minha palestra seguiu o modelo de palestra anteriormente ministrada na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, porém neste caso ela foi adaptada de modo a focar na questão da caça dos javalis e de que forma este tema se integrava à discussão da caça de uma maneira mais ampla.

Durante a apresentação do slide 19 transmiti informação obtida de artigo lido no site Canal Rural (http://www.canalrural.com.br/noticias/jornal-da-pecuaria/saiba-como-feito-treinamento-caes-para-cacar-javalis-65250), onde o sr. Mario Knichalla Neto afirma que “Mais de 90% dos controles são finalizados com facas ou zagaias (lanças)” .

Expliquei que “finalização”, no caso, se refere ao golpe final que leva o javali à morte, após este haver sido rastreado, acuado, agarrado e imobilizado por cães e pessoas portando armas de fogo. Expus o conceito de que o fato do animal não ser simplesmente abatido à distância com arma de fogo, mas sim por meio de armas brancas e com as próprias mãos do caçador, tornava sua morte algo mais pessoal.

Fosse realmente a intenção meramente controlar uma população descontrolada de animais o abate seria realizado em larga escala, e não um a um, como uma caçada que envolve o uso de cães e armas brancas.

Parafraseei, também, colocação que escutei no seriado Dexter, quando o personagem principal foi questionado sobre o porquê de ele não praticar sua “justiça” utilizando armas de fogo, o que tornaria sua atividade inclusive mais fácil. A resposta, para quem acompanha o seriado, é que sendo Dexter um psicopata, a utilização de armas de fogo não satisfaria essa sua necessidade de matar. Ele necessitava seguir a um ritual para preencher o vazio que sentia, e apunhalar suas vitimas era o clímax de seu prazer.

A tal altura um dos ouvintes da apresentação interrompeu e questionou se eu então estava querendo dizer que todo caçador é na verdade um psicopata, ao que respondi negativamente, mesmo porque havíamos acabado de escutar excelente palestra da Dra. Renata Zancan, que havia já dito que diferentes distúrbios psicológicos podiam levar uma pessoa a caçar (obviamente excluídos os motivos de necessidade e sustento próprio).

Também não quis arriscar inferir que um comportamento perverso e aparentemente psicótico como a caça possa qualificar alguém como psicopata em todos os casos (já que a pergunta incluía a palavra “Todos”), e generalizações tendem a se mostrar falsas. Mas após a apresentação não consegui parar de pensar em relação ao assunto.

Então resolvi pesquisar no “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais” – DSM e na “Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde” – CID, onde a psicopatia é denominada, respectivamente, como “Transtorno de Personalidade Antissocial” e “Transtorno de Personalidade Dissocial”.

No DSM-IV-TR, onde o transtorno de personalidade antissocial recebe o código F60.2/301.7, seus critérios diagnósticos são descritos como:

“A. Um padrão pervasivo de desrespeito e violação aos direitos dos outros, que ocorre desde os 15 anos, como indicado por pelo menos três dos seguintes critérios:

    1. Fracasso em conformar-se às normas sociais com relação a comportamentos legais, indicado pela execução repetida de atos que constituem motivo de detenção;
    2. Impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro;
    3. Irritabilidade e agressividade, indicadas por repetidas lutas corporais ou agressões físicas; porém, paradoxalmente, têm fama e geralmente agem de forma bem comportada.
    4. Desrespeito irresponsável pela segurança própria ou alheia;
    5. Irresponsabilidade consistente, indicada por um repetido fracasso em manter um comportamento laboral consistente ou honrar obrigações financeiras;
    6. Ausência de remorso, indicada por indiferença ou racionalização por ter ferido, maltratado ou roubado outra pessoa.
    7. Comportamento sexual exacerbado e inadequado, via de regra com vários parceiros, sem nenhuma ligação afetiva;
    8. Agressividade contra animais domésticos;
    9. Desrespeito e desprezo por ambientes familiares;

B. O indivíduo tem no mínimo 18 anos de idade.

C. Existem evidências de Transtorno de Conduta com início antes dos 15 anos de idade.

D. A ocorrência do comportamento antissocial não se dá exclusivamente durante o curso de Esquizofrenia ou Episódio Maníaco.”

Por “direitos dos outros”, descritos no item A, entendam-se não os direitos naturais (que incluiriam os direitos animais), mas os direitos positivos, pois no item 1 estes se mostram vinculados às “normas sociais” e “comportamentos legais”.

Ademais, seria leviano afirmar que “todos” os caçadores são, necessariamente, impulsivos, briguentos, dissimulados, irresponsáveis em relação à segurança, irresponsáveis com relação ás suas obrigações, dados a perversões sexuais ou negligentes em relação ás suas famílias.

A bem da verdade, este critério diagnóstico do DSM transparece um ponto de vista antropocêntrico pois limita a necessidade de remorso apenas àqueles que feriram, maltrataram ou roubaram outros seres humanos, excluindo aí os animais; também descreve como problemática especificamente a agressividade voltada aos animais domésticos e não a todos os animais. Mas ainda que estes pontos de vista fossem expandidos e extrapolados de modo a incluir os animais em nossa esfera moral, ainda assim só se poderiam incluir os caçadores em dois dos critérios elencados, e não três.

Já o transtorno de personalidade dissocial é classificado pela CID sob o código F60.2, onde é descrito como:

“Transtorno de personalidade caracterizado por um desprezo das obrigações sociais, falta de empatia para com os outros. Há um desvio considerável entre o comportamento e as normas sociais estabelecidas. O comportamento não é facilmente modificado pelas experiências adversas, inclusive pelas punições. Existe uma baixa tolerância à frustração e um baixo limiar de descarga da agressividade, inclusive da violência. Existe uma tendência a culpar os outros ou a fornecer racionalizações plausíveis para explicar um comportamento que leva o sujeito a entrar em conflito com a sociedade.”

Embora esta descrição possa ser verdadeira para muitos entusiastas da caça, ela certamente não descreve esta população como um todo.

Assim sendo reafirmo, desta vez de forma mais embasada, que embora seja a caça uma prática inerentemente perversa, e muitos caçadores a pratiquem por diversão e não necessidade, não se pode afirmar que estes sejam todos psicopatas. Outrossim, reforçando o que foi dito pela Dra. Renata Zancan, há que se verificar cada caso, quais as disfunções cerebrais que podem estar ocorrendo, assim como o histórico pessoal do indivíduo, para que se possa determinar o que o leva a sentir prazer em matar animais.

Por Sérgio Greif

Fonte: Olhar Animal

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