Ética e interpretação

Palavras nada mais são do que palavras? E o que são elas, de fato? Há mais ou menos 400 anos, o filósofo inglês Thomas Hobbes descreveu a função da palavra: guardar imagens, arquivá-las, e mantê-las vivas para repassar a outras mentes humanas conteúdos objetivos de experiências nossas, conteúdos subjetivos de experiências mentais privativas de quem as vivencia. Por isso, quando se afirma que discutir conceitos é pura perda de tempo, erra-se. Não há humanidade sem palavras.

Sem elas, teríamos, cada um de nós, de começar do zero o entendimento das noções essenciais à consciência de si e à interação com a consciência do outro. Não há possibilidade de ética sem clareza conceitual. E essa custa a ser forjada, porque cada um de nós tem arquivos com palavras que nem sempre significam a mesma coisa para os outros. Por isso, debater é fundamental. Silenciar o debate é matar a humanidade, pois destrui a subjetividade. Mas, debater apenas para impor os arquivos da própria subjetividade também não leva a melhor acerto. Para se ter um projeto moral compartilhado é preciso passar pela desconfortável experiência de esclarecer o que as palavras significam. Sem tal clareza não formamos um conceito objetivo. Sem um objeto comum bem definido não temos um objetivo ao qual destinar o benefício de nossas ações.

Temos hoje uma quantidade imensa de informações disponíveis em textos impressos e nos media eletrônicos. Qualquer pessoa capaz de ler pode acessar informações sobre qualquer assunto que lhe interesse: das viagens espaciais aos componentes dos alimentos processados e pesticidas usados para o cultivo bélico de cereais, frutas e legumes.

Mas, apesar da informação, via de regra, as pessoas não dispõem de meios para formatar um objeto com as informações disponíveis, especialmente quando se trata de formatar um objeto para reformatar a própria mente, sem a qual não há moralidade. Para esse fim, é preciso que sejamos capazes de interpretar as informações disponíveis, seguindo um padrão ético já examinado e reconhecido como válido.

Interpretar as informações não é o mesmo que emitir opiniões levianas sobre os objetos ou temas referidos nelas. No campo da ética, interpretar significa redesenhar a própria moralidade à luz das informações acessadas. Na ética, o conservadorismo dos arquivos compete contra o refinamento moral. Se, por um lado, os princípios éticos são universalizáveis, por outro, eles não dizem nada sobre o modo pelo qual cada um de nós deve incorporá-los. Incorporar princípios éticos de forma crítica requer interpretação. O princípio da não-violência (ahimsa), por exemplo, não deixa dúvidas sobre quais os objetos aos quais se refere. A dúvida atormenta apenas a mente daqueles que decidem adotá-lo para redesenhar o perfil de sua própria biografia, tirando dela tudo o que representa dor e sofrimento para qualquer ser senciente, isto é, qualquer ser capaz de perceber eventos e estímulos, e distinguir o que é prazeroso, do que é doloroso. Seres sencientes têm essa capacidade: a de saber o que é favorável ao seu bem-estar. Aliada a ela, seres sencientes têm também o discernimento para escolher o que lhes favorece e fugir do que não lhes favorece. Esse é o caso dos animais.

Isso se aplica a animais, sem distinção de espécie. Por isso, o princípio da não-violência, se seguido eticamente, não admite discriminar a dor e sofrimento de um determinado animal e defender o fim da dor infligida a outros. Isso é “especismo eletivo”.

Deixar de comer certos alimentos, alegando que causam dor aos animais abatidos para a produção deles, e comer outros alimentos que igualmente causam dor e sofrimento aos animais usados para sua extração, é especismo eletivo. Não é ética, pois não se pode mostrar um argumento sequer que indique o quanto os animais discriminados por nossa escolha especista eletiva são beneficiados por ela. Quando tentamos justificar o que fazemos, acabamos apresentando argumentos centrados em nosso interesse pessoal.

Não há ética fundada sobre a defesa de interesses pessoais. Argumentos dessa natureza são econômicos, não são éticos. O agente moral sempre encontra uma razão “econômica” para justificar sua busca de benefícios para si, e com ela pretende também justificar o uso de certos animais e defender o fim do uso de outros. O problema é que cada um escolhe um tipo de bicho para defender, e outros, para atormentar. Por isso não temos uma ética animalista. Temos somente argumentos que não escapam dos interesses antropocêntricos. Assim, não evoluímos moralmente, e os animais é que são brutos?

Fonte: ANDA – Agência de Notícias de Direitos Animais


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