Ganda e Cacareco, para jamais esquecer
Introdução
Este artigo conta a história de dois rinocerontes vítimas da insanidade humana, seja em Portugal do início do século XVI (Ganda), seja no Brasil de meados do século XX (Cacareco). Aquele primeiro animal veio da Índia em 1515 para compor a coleção particular do rei D. Manuel I, enquanto o segundo foi cedido por empréstimo ao zoológico de São Paulo no ano que antecedeu às eleições municipais de 1959. Em comum entre eles – animais exóticos que se tornaram muito populares em seu tempo –, havia o estigma do cárcere. Em Ganda a aparência quase mítica espantava os padrões lusitanos da era dos Descobrimentos, enquanto Cacareco ganhou notoriedade por ter recebido em torno de 100 mil votos nas eleições da Câmara Municipal de São Paulo. Resgatar a lembrança deles, na atualidade, é um modo de dizer não a zoos e a todas as formas de exploração animal.
1 – Ganda
O hábito de manter presos animais selvagens ou exóticos, como se fossem troféus, muito se deve à política imperialista de expansão territorial marítima iniciada em Portugal. Nas ruas da Lisboa antiga, após o retorno das esquadras reais, a Corte tinha por costume apresentar ao povo, em desfile aberto, diversas espécies animais retiradas dos territórios ultramarinos (África, Ásia e América do Sul), cujo aprisionamento tinha objetivos não apenas econômicos, mas também psicológicos, como que a demonstrar o triunfo do homem civilizado sobre a natureza bruta.
Na introdução da obra A fauna exótica dos descobrimentos, António Luís Ferronha conta que o rei Dom Manuel I, denominado O Venturoso, durante seus habituais passeios do Paço da Ribeira até o Rossio, gostava de se fazer seguir por um inusitado cortejo zoológico, repleto de paquidermes acorrentados, felinos enjaulados, símios barulhentos e pássaros capturados em terras de além-mar.
Consta que referido monarca mantinha no Palácio da Ribeira e noutros prédios da realeza uma coleção zoológica composta de animais trazidos da Ásia e da África, como elefantes, leões, antílopes, primatas amestrados e diversas aves. Durante uma negociação mercantil entre a embaixada portuguesa representada por Dom Afonso de Albuquerque (tido como o Conquistador do Oriente) e o Sultão de Cambaia, em Goa, foi incluído um rinoceronte asiático que se passou chamar Ganda.
Para conveniência do futuro senhorio, que o poderia manter em sua coleção zoológica particular, veio o paquiderme acompanhado de um tratador indiano que, na viagem, o manteve preso no convés da embarcação, o tempo todo, sob correntes. Tendo em seu poder um animal raro e de inestimável valor comercial, mas sem saber como tratar dele, Dom Afonso de Albuquerque preferiu oferecê-lo ao rei D. Manuel, que possuía jaulas metálicas construídas no palácio.
Em 20 de maio de 1515, após uma viagem marítima que levou quatro meses, a nau Nossa Senhora da Ajuda atraca em Lisboa e logo chama a atenção por trazer a bordo o tão aguardado rinoceronte, que foi o primeiro a desembarcar em solo europeu desde o fim do Império Romano. Referido animal exótico, ao ser exibido publicamente pelos membros da realeza, causou espanto junto à população, que o comparou a uma criatura mítica, o unicórnio, em razão do inusitado chifre.
Mas, conforme descrição feita à época em documento arquivado no Instituto Camões, Ganda era um animal doce, de corpo baixo, um pouco longo; tinha couraça, os pés e as patas de elefante; a cabeça era comprida como a de um porco; os olhos ficavam próximos do focinho; acima do nariz havia um corno grosso e curto, afiado na ponta. Sobre a alimentação, consta que o bicho comia erva, palha e arroz cozido. Mas apesar da aparência bruta o animal era pacato. Isso, entretanto, não demoveu o rei de dar vazão a seus instintos sádicos.
Por imaginar que rinocerontes e elefantes eram inimigos mortais, o rei decidiu promover, no Terreiro do Paço, um combate entre o recém-chegado rinoceronte asiático e um jovem elefante de sua coleção de espécies exóticas. Sucede que não houve a esperada luta, porque o elefante se assustou e fugiu do recinto em que fora colocado frente a frente com o pretenso adversário. Seja como for, a notícia da singular peleja logo chega a outros países europeus. O triste episódio é descrito pelo pesquisador Luís Tirapicos no texto intitulado “O Rinoceronte de Dürer”:
O rei, a rainha e a corte reuniram-se no pátio e aguardaram com grande expectativa. Parecia que os tempos do coliseu de Roma tinham voltado. O primeiro animal a chegar foi o rinoceronte, acompanhado pelo seu tratador indiano. Nos estábulos reais do palácio de Estãos, foi escolhido um elefante muito jovem para defrontar as quatro toneladas de ganda. Com as ruas cheias de gente aos gritos, o pobre elefante foi conduzido até a arena, onde chegou já bastante nervoso. À ordem do rei, foi removido o tecido que bloqueava a visão do rinoceronte, que pôde ver o elefante. O avanço de Ganda, com um ar ameaçador, em direção ao outro paquiderme provocou o pânico dele. O elefante fugiu abanando a tromba e acabaria por investiu com a cabeça contra uma abertura que possuía um gradeamento de ferro. Após várias tentativas, o elefante conseguiu escapar, deixando atrás de si uma nuvem de poeira. O rinoceronte, por sua vez, foi aplaudido pela assistência e saiu vitorioso, sem nem sequer ter entrado em combate.
No final do mesmo ano, o rei de Portugal oferece o rinoceronte como presente ao Papa Leão X, a exemplo do que já havia feito antes com um elefante branco, tendo a oferenda sido aceita. Acorrentado novamente ao convés, agora com destino a Roma, o paquiderme não chegou ao destino porque a embarcação que o transportava naufragou na costa do Mediterrâneo, matando-o por afogamento. Mesmo assim, D. Manuel ordenou que se lhe recuperasse o corpo e, devidamente empalhado, este fosse entregue ao Vaticano, o que se deu em 1516.
Eis aqui uma pequena amostra da sina dos animais exóticos no período da expansão marítima portuguesa. Os bichos cativos, caso sobrevivessem às agruras da travessia oceânicas, tinham como destinatários membros da realeza, nobres ou autoridades. Eles também costumavam ser vendidos a colecionadores particulares, entregues a mercadores, ou, ainda, negociados com trupes mambembes, que lhes submetiam, antes, a rigorosos processos de adestramento. Talvez essa seja uma das vertentes, em solo lusitano, do uso cultural de animais para fins lúdicos, que se iniciou a partir do ingresso de espécies trazidas do Brasil, da África e da Índia. Com o passar do tempo, muitas coleções de espécies exóticas se transformaram em jardins zoológicos.
2 – Cacareco
Em março de 1958, por ocasião da abertura do Zoológico de São Paulo, um comboio ferroviário trouxe do zoo do Rio de Janeiro, por empréstimo, alguns animais para atrair o público, como leões, ursos, camelos, elefante, hipopótamo e hiena. Também veio uma fêmea de rinoceronte com 4 anos de idade, chamada Cacareco (nome de gênero masculino). Não se pode deixar de dizer, aliás, que a longa viagem de trem, pela Rede Ferroviária Federal, foi muito penosa para os animais, o que não interferiu no fato de que a cessão dos bichos entre referidas instituições de entretenimento público era apenas temporária e que todos eles teriam de regressar ao zoo carioca. O escritor Antonio F. Costella, a propósito desses acontecimentos, assim escreveu:
Por ocasião da chegada, os leões mostravam-se especialmente irritados e só se acalmavam, um pouco, quando se viram soltos em seu recinto de exposição. A imprensa, noticiando esse e outros episódios, ocupou-se especialmente do hipopótamo (…), ludibriado por um tratador que conduzia, à frente do bicho, uma cenoura e ia recuando à medida em que o animal avançava. Em compensação ele devorou, depois de trancado, uma enorme quantidade de cenouras (…). Comparativamente, Cacareco foi pouco mencionado nos jornais tanto por ocasião de sua chegada, quanto nos meses seguintes (…). Ninguém podia, ainda, antever o quão famoso aquele rinoceronte haveria de se tornar no ano seguinte.
Se Cacareco passou a ganhar fama, isso se deve também a seu nome, que corresponde a “entulho”, “coisa inútil” ou “objeto sem valor”. A comparação pejorativa que recaiu sobre o animal condenado ao cativeiro no zoo paulista, por incrível que possa parecer, assumiu uma relevância política inusitada, lembrando que em outubro de 1959 haveria eleições para a Câmara Municipal de São Paulo. Diante das candidaturas apresentadas ao pleito eleitoral que se aproximava, o jornalista Itaboraí Martins e alguns colegas seus, desiludidos com a classe política, decidiram – a título de pilhéria – lançar o nome do paquiderme como candidato, sob o slogan “Cacareco para Vereador”.
Não tardou para que os jornais paulistanos publicassem imagens das pichações pró-rinoceronte, fazendo com que a pretensa candidatura do animal ganhasse visibilidade e, mais do que isso, a simpatia dos eleitores desgostosos com a atuação dos vereadores. No curso do ano eleitoral que transcorria em São Paulo, entretanto, Cacareco foi levado de volta ao zoo do Rio de Janeiro, desta vez na carreta de um caminhão. O mais curioso é que a campanha prosseguiu firme, tanto que o jornalista Itaboraí conseguiu imprimir, a título de propaganda, cédulas eleitorais com a imagem do rinoceronte e os dizeres “Para vereador Cacareco”.
Importa observar que na época o voto era escrito em cédulas de papel e depositado nas urnas. Seja como for, ainda que os votos no animal fossem nulos, cerca de 100 mil eleitores escreveram na cédula o nome de Cacareco como o candidato de sua preferência. Irreverências a parte, o certo é que qualquer pessoa seria eleita com folga para vereador se alcançasse nas urnas a votação atribuída ao rinoceronte a título de “voto de protesto” No livro sobre a figura de Cacareco, Antonio Costella escreveu que este animal “passou a representar a caricatura de todos os defeitos que marcavam nosso cenário político”. A este respeito, o autor fez considerações muito pertinentes:
No fenômeno Cacareco não pode ser encontrado nenhum paralelismo com os eventos promovidos, hoje, pelas associações de proteção animal ou outras entidades preocupadas com questões ecológicas. Nas décadas dos anos cinquenta, quando os fatos ocorreram, e até nos sessenta, não havia nenhuma especial simpatia pelos rinocerontes ou pelos animais silvestres em geral. Bem ao contrário, a consciência das pessoas com relação aos direitos dos animais era baixíssima.
Já em relação ao destino desse rinoceronte fêmea que acabou perecendo, precocemente, vítima de nefrite aguda – e cujos retos mortais encontram-se expostos no Museu de Anatomia da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo – Antonio Costella traz informações complementares e conclui:
De volta ao Rio de Janeiro, onde permaneceu mais alguns anos, ela recebeu nova missão: colaborar na inauguração do Zoológico de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, para onde foi transportada em companhia do tratador Antonio José Mota. Três meses depois retornou ao Rio de Janeiro e, passados um ano e meio, morreu. Morreu sem completar sequer dez anos de vida (…). Ora, os rinocerontes pretos africanos, livres em seu ambiente nativo, costumam chegar aos 45 anos. Não é difícil compreender que a vida de Cacareco e a de seus familiares foi drasticamente encurtada pelo fato de viverem em cativeiro (…). Eis, portanto, a lição que Cacareco nos legou e para a qual ninguém deu atenção: os animais silvestres não devem ser retirados de seu habitat.
3 – À guisa de reflexão
Nos zoológicos, sem dúvida, a condição existencial dos bichos submetidos ao regime de confinamento (sistema este que passa a ideia de uma “vitrine de animais”) não difere muito do que se vê nos empreendimentos que exibem, montam ou utilizam animais para fins de lazer ou diversão, sabido que tais situações criadas pelo homem são anômalas do ponto de vista etológico e, em maior ou menor grau, subvertem a natureza das espécies exploradas.
A triste vida dos rinocerontes Ganda e Cacareco, vida essa marcada por grandes deslocamentos marítimos ou territoriais, vida vivida atrás de grades e de recintos opressivos, vida exposta a perigos ou doenças de toda ordem e que se viu abreviada sem que eles pudessem exercer sua natureza em plenitude, não era a vida que mereciam ter. Por isso a história deles precisa sempre ser lembrada, contada, revivida, para denunciar a insensatez dos homens e os males causados por toda cultura permeada pela violência.
Referências
COSTELLA, Antonio F. Cacareco, o vereador. Campos do Jordão: Mantiqueira, 1996.
FERRONHA, António Luis; BETTENCOURT, Mariana; LOUREIRO, Rui. A fauna exótica dos descobrimentos. Portugal: Edição ELO, 1993.
TIRAPICOS, Luís. O Rinoceronte de Dürer. Centro Virtual Camões. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/e71.html. Acesso em: 12 nov. 2023.
Por Laerte Levai
Fonte: Olhar Animal
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