João: o boi que era alimentado com leite condensado hoje é livre

Quando João e Catarina partiram à procura de um saco de boxe, não foi fácil imaginar o motivo. Mas a verdade é que não era para uso próprio. O equipamento era uma prenda para o boi João (sim, têm o mesmo nome) que estava a ficar “entediado” com os brinquedos na quinta onde vive com a família em Arruda dos Vinhos.
“Pensámos em arranjar um saco de boxe para o distrair porque ele começou a brincar com pedras gigantes, com redenções… tudo que ele encontra que possa brincar, brinca”, começa por contar à PiT João Faria, 45 anos. O bovino que partilha o nome com o dono chegou a família há oito anos quando ainda era bebé e cresceu muito próximo do casal e das suas duas filhas, hoje com 13 e 16 anos.
Contudo, quando atingiu a “puberdade” e tornou-se num adolescente, o óbvio aconteceu: precisava do próprio espaço. E a partir daí, as brincadeiras começaram a ter “impactos maiores”. “Ele é um boi até bastante calmo mas é muito brincalhão e é relativamente desconfiado”, partilha. Para ajudá-lo, a família construiu o seu próprio espaço na quinta.
Hoje, o dia a dia de João é quase sempre o mesmo: a correr, brincar e receber mimos. Mas nem sempre foi assim. A história do boi começou assim que nasceu e foi “arrancado” da mãe. O bovino pertencia a uma produção de leite e foi vendido a um homem que vivia na região que o mantinha acorrentado no quintal de casa. “O plano era matá-lo e cortá-lo ali”.
Na altura, o pequeno era alimentado “apenas com leite condensado e água” e não recebia qualquer outro cuidado. Depois de denúncias, as autoridades veterinárias resolveram retirá-lo daquela vida e durante um mês, João teve que tratar de uma acidose (acumulação de ácido no sangue) e uma grave diarreia.
Depois de recuperado, precisava de um lar, e por sorte — ou obra do destino —, o casal lisboeta havia recentemente deixado o caos da capital portuguesa para criar uma vida no campo. Após ver o apelo sobre o gigante, resolveu acolhê-lo no novo lar, a Quinta D’Alruta. “Quando ele chegou, tinha o tamanho de um cão grande”, recorda.
João foi “um dos primeiros animais” resgatados pelo santuário que cuida hoje de mais de 50, entre cães, aves, ovelhas, bodes, burros, gatos e coelhos. “Todos os que vêm para aqui são parte da família”, realça, acrescentando que já chegaram a recusar acolher novos animais para evitar que os residentes tenham a rotina afetada.
Ver essa foto no Instagram
“Ele é extremamente carinhoso e protetor”
Desde que João (o boi) começou a viver no próprio espaço, os tutores decidiram encontrar-lhe uma namorada. Mas não tem sido fácil. “Não há tantas vacas em situação de resgate, é raro. Aparecem mais bois”, explica-nos João (o humano). Ainda assim, não desistiram de encontrar uma vaca que esteja à procura de um novo lar.
Até lá, o bovino diverte-se com os outros animais da quinta. Por causa do seu tamanho, o gigante protege os mais novos — sejam animais ou humanos. Há alguns anos, o bovino estava sempre acompanhado das ovelhas, mas como o terreno onde está é “basicamente barro”, não é tão cómodo para as “amigas”. “Elas enterram-se muito e deixámos de as colocar ao pé dele”, afirma. Contudo, o bovino continua a ser bastante protetor.
Houve um dia que uma das ovelhas ficou doente e quando o tutor foi lá buscá-la para a levar ao veterinário, João não deixou. “Ele percebeu que ela não estava bem e pôs-se entre mim e a ovelha e impediu que eu fosse buscá-la”, diz. “Fiquei ali cerca de dez minutos a falar com ele como se tivesse a falar com uma pessoa. Explicava-lhe o que eu estava a fazer e o por que razão ela tinha de ir para cima. Passado esse tempo, ele saiu dali e deixou-me levá-la”.
A atitude é um dos muitos momentos partilhados com João que o amante de animais não esquece. “Foi muito especial”, frisa. “Não sei o que aconteceu ali mas pareceu que ele percebeu literalmente que eu ia tratar da ovelha. Ele afastou-se e não me importunou durante o tempo em que estive a tirá-la. É especial porque qualquer coisa que fazemos na zona dele, ele está sempre a importunar e a tentar ver o que temos, o que não temos, a empurrar ou a interagir e nessa situação não, ele só se afastou”.

Já com as filhas do casal, o boi é igual. Quando era mais jovem e pesava “só” 400 quilos, o bovino estava a correr com as duas miúdas quando a mais nova caiu. “Ele vinha diretamente atrás dela, parou e desviou-se. Depois, foi ajudá-la a levantar-se com a cabeça”, recorda. “Eles têm uma relação muito dócil, amigável e carinhosa”.
Com o humano João, porém, é mais desconfiado e “mais territorial”. Embora o “papá” seja o responsável por alimentá-lo, é também aquele que o prende para receber as visitas do veterinário. “A minha filha mais velha consegue abraçar a cabeça do João, eu não”, explica. “Se eu aparecer com pessoas estranhas, ele acha sempre que é alguém do veterinário”, diz, entre risos.
Por outro lado, mesmo com toda a desconfiança, é bastante protetor do cuidador. Certo dia, o humano estava a trabalhar na horta a limpar as ervas quando tropeçou e caiu. Na mesma hora, o gigante foi ajudá-lo a levantar-se. “É um animal que se apercebe bem de tudo o que está a passar por volta dele e tem uma interação muito positiva. Quer participar sempre de uma forma positiva, não é agressivo”.
Hoje, a rotina do boi é só diversão. A família já tentou comprar-lhe bolas de ginásio para entretê-lo mas como “são de ar e não têm muito peso”, João não gosta. “Não são um desafio”. Mas agora, com o saco de boxe, tudo indica que o bovino vai ter muito tempo para se distrair. E, claro, os mimos da família nunca vão faltar.
Para ajudar o santuário, que há cerca de um ano e meio também constituiu uma associação, pode consultar os números de MBWay e IBAN nas suas páginas no Instagram ou Facebook. A família também aceita donativos de materiais, alimentos e equipamentos para os animais. Basta entrar em contacto pelas redes sociais.
De seguida, carregue na galeria para conhecer o dia a dia de João, o boi que reaprendeu a viver.
Por Izabelli Pincelli
Fonte: Pets in Town / mantida a grafia lusitana original