Lei Áurea para os Animais

Por Dr. phil. Sônia T. Felipe

Temos centenas de leis maravilhosas de proteção ao meio ambiente. E nunca se devastou tanto em nosso país como se devasta hoje. As leis, vazias e sem o aparato estatal que força a todos ao seu cumprimento, são “para inglês ver”. Essa expressão foi criada exatamente para designar as leis que estavam sendo aprovadas contra a escravidão, mas não eram para ser respeitadas, eram apenas para atender à exigência britânica de abolição do “tráfico” de humanos da África para o Brasil. E o Brasil tinha uma dívida imensa com os bancos ingleses, a começar pelo empréstimo dos Rotschild que garantiu autonomia a D. Pedro I para proclamar a Independência em relação à Coroa Portuguesa de seu pai. Então, foram aprovadas muitas leis. Nenhuma delas visava de verdade a abolição da escravatura.

Cada uma delas dava apenas um volteio para escapar do eixo que deveria ser seguido, mas não era. Então, tivemos: a Lei que proibia o tráfico de afros para o Brasil. Foi respeitada? Tanto não foi que os ingleses tiveram que postar navios para combater os que se tornaram “piratas” do tráfico humano. Era uma Lei para inglês ver.

Tivemos na sequência a Lei que proibia vender os humanos de um Estado para outro. Foi cumprida? Não. Era para inglês ver.

Tivemos a Lei que libertava os sexagenários. Para onde eles iriam, se a eles não era dado o direito de comprar a terra, e, nessa idade, com o desgaste da escravização, pouco restava de vida para ser recomeçada do zero? Essa Lei era para poupar o senhor de sustentá-los até a morte, depois de tê-los exaurido. E assim por diante.

Nenhuma dessas leis foi, de fato, cumprida. Elas tiveram apenas um papel: junto com o ativismo jornalístico de José do Patrocínio e de outros, e com a luta dos escravos por sua emancipação civil, as leis serviram para preparar a sociedade para a cena final, protagonizada pela Princesa Isabel, a Lei Áurea, assinada no dia de hoje, 13 de maio do ano de 1888.

Analogamente ao que aconteceu nos setenta anos de leis que não tiveram força para derrubar a prática institucionalizada e sacramentada pela igreja de usar humanos para trabalhos forçados, como ainda hoje são usados animais de outras espécies que não a nossa, a humana, temos leis no Brasil que proíbem maus-tratos e crueldade contra os animais desde a década de 20 do século XX, a era em que Getúlio Vargas foi ditador em nosso país. Foram cumpridas? Nunca! Sequer conhecidas. Nem nas universidades, cujos cientistas ignoravam a existência delas e achavam que, por serem cientistas, não precisavam respeitar nada, a não ser o que viesse a prejudicar o resultado das pesquisas.

Enfim, temos leis e leis proibindo o desmatamento. Temos leis boas e bonitas para tudo quanto é assunto. Elas são cumpridas de fato? Os que as cumprem não precisam delas, porque já as seguem por conta de sua posição ética.

Começamos, no Brasil, a exemplo do que a Holanda fez há meia década atrás, a discutir a hipótese de criação de um Partido Político Animal. Temo pela energia que será queimada com isso.

Um dia, quem sabe, quando o movimento de defesa dos direitos animais estiver mais forte no Brasil, pode ser que eu ache válido alguns seguirem para o planalto na condição de deputados e senadores defensores dos animais. Por enquanto acho muito cedo.

Tenho acompanhado a tragédia (no sentido grego) dos candidatos sós, os que sobem lá por conta de uma marca pessoal. Não têm poder algum. Seu carisma nas urnas é como nuvem de fumaça que se esvai no embate dos interesses corporativos, institucionais, patronais, sindicais e financeiros em jogo em um campo onde tudo tem que ser “vendido”, negociado, conquistado, antes de ser aprovado por maioria na hora da votação. Sem o respaldo sólido de eleitores conscientes e participativos do mandato parlamentar, nada é aprovado e o indivíduo fica lá, entra mudo e sai calado.

A criação dessas entidades políticas, de partidos, confederações ou tenha lá o nome que se der, é uma forma de vampirizar a energia dos poucos que lutam. Hoje, todos os ativistas estão direcionando suas forças, sua energia mental, suas emoções e seu parco dinheiro para a “causa animal”, cada grupo tendo seu modo particular de fazer ativismo animalista. Nenhum grupo tem um perfil exatamente igual ao do outro. Essa biodiversidade tem ajudado muito a crescer na sociedade civil a consciência animalista.

Se for criada uma confederação, por exemplo, 90% da energia passará a ser desviada da luta pelos animais para lutas internas pelo poder, pela proeminência, pela presidência, pela vice-presidência, pelas secretarias e daí por diante. Todo o dinheiro que hoje os ativistas empregam em sua luta também será canalizado para dar sustentação à confederação, para viagens e reuniões em outras cidades, Estados e assim por diante.

Por isso, na minha opinião, que, obviamente, pode estar fora do tom geral, é muito cedo para fundarmos um partido animalista ou uma confederação. Não somos nem um milhão de pessoas, em um país cuja população é de 200 milhões e tanto. Se tivermos umas 10 mil pessoas ativas, é muito. Não construímos ainda na sociedade civil uma base de sustentação para dar o próximo passo. Dar um passo além das pernas é desequilibrar-se. Isso já vi acontecer com muito partido político.

Temos, no movimento animalista brasileiro, digamos, umas 1.000 pessoas espalhadas por duas dezenas de grupos que, embora atuantes com perfis distintos, acham que estão na mesma frequência moral e política, têm os mesmos ideais e gostariam de vê-los concretizados.

Digamos que essas pessoas fundem um Partido Animal. O que aconteceria? Muito empenho pela liderança, disputa de cargos e aprovação de candidaturas, tudo igualzinho ao que acontece hoje nos Partidos. Toda a energia hoje usada para ir para as ruas nos sábados, domingos, feriados e outros dias com algumas horas livres para o ativismo serão destinadas às reuniões, viagens, conchavos, telefonemas, trocas de mensagens por e-mail, redes sociais etc.

E o que veremos acontecer? Exatamente o que descrevo acima. Os animais não serão mais lembrados. Os interesses dos homens e mulheres disputando cada espaço de poder no âmbito interno da nova máquina e tentando abocanhar novos espaços fora da própria máquina tomarão todo tempo, toda energia dos ativistas. Já conhecemos isso em nossa história.

Dou exemplo do PV. Não foi para a frente. Por quê? Porque quando criaram o partido acharam que não precisavam mais continuar a construir a base de sustentação junto à sociedade civil. Viraram seus olhos para as urnas, a burocracia de sustentação do partido. Fecharam os olhos para o meio ambiente, que era afinal o sujeito em nome do qual o partido fora criado.

E aqui estamos. Num país continental, no qual mais se devasta para a produção de carnes, ovos e leites. O partido verde virou o quê? Cadê o movimento verde na sociedade civil? Não existe, porque são todos (quem sabe possa haver exceção, desconheço) comedores de carnes, ovos e leites, os maiores devastadores da natureza, aqui e ao redor do mundo. Quando existe algum movimento ambientalista na sociedade, ele já não tem ligação alguma com o partido, porque as pessoas não veem no partido sua representação genuína na causa ambiental.

É isso que poderá acontecer com a criação de um partido animal ou mesmo uma confederação. Sei que a maior parte dos homens custa mais a entender o meu raciocínio, do que boa parte das mulheres. A mente masculina só sente que algo tem valor quando tem um brasão representando esse valor. Não é uma crítica aos homens. É um modo de interpretar a necessidade masculina por uma agremiação. Mas nem sempre o melhor é criar logo um brasão, um escudo, atrás do qual seja possível todos se reunirem.

Exatamente por ser apenas um escudo, matando a biodiversidade do ativismo animalista que hoje temos, é que nem todos poderão se reunir e estar bem protegidos ou representados por ele.

Hoje, a ideia é espalhar, não, concentrar. Espalhar o movimento, não congelar o movimento. Não colocar cercados e limitações, porque mal aprendemos a nos mover nessa causa, não criamos estilos nem escolas, ainda. Tudo isso é tarefa preliminar à criação de um Partido Político.

Os monopólios políticos de modo algum são libertários. Se continuarmos a fazer um trabalho sério por mais dez anos, quem sabe, lá para 2025, se ainda houver planeta, Estados e democracias, e animais de qualquer espécie, possamos enfim ter um escudo desses, uma sigla, um brasão representando os animais. Por enquanto, o que acontecerá será a fragmentação do movimento, as brigas por poder, as discórdias e o esvaziamento do bolso já roto de todos os ativistas que usam o coração como combustível para mover sua luta. Não renderá nada bom para os animais. Bom trabalho até lá, a todas as pessoas seriamente engajadas no ideal Abolicionista Animalista.  


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Olhar Animal – www.olharanimal.org


 

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