Liberdade de culto vs direito dos animais não-humanos[1]
“Aquele que alguma vez observou um selvagem em sua terra nativa não sentirá muita vergonha , ao se ver forçado a admitir que flui em suas veias o sangue de alguma criatura mais humilde. De minha parte, eu tanto admitiria descender daquele heroico macaco que arrostou seu inimigo a fim de salvar a vida de seu guardador […] como de um selvagem que se delicia em torturar seus inimigos, oferece sacrifícios de sangue, pratica infanticídios sem qualquer remorso, trata suas mulheres como escravas, não conhece a dignidade e é obcecado pelas superstições mais grosseiras.”
Charles Darwin
SUMÁRIO: 1. Introdução. – 2. Igreja de Lukumi Babalu Aye (CLBA) v. Cidade de Hialeah, Flórida – 3. Argumentos vazios. Análise à luz do Direito Comparado – 4. O baixo status moral dos animais – 5. Os sacrifícios de animais não-humanos no Direito brasileiro – 6. Considerações finais.
PALAVRAS-CHAVE: direito dos animais não-humanos; crueldade; maus-tratos, abuso de direito; liberdade de culto; liberdade de crença; liberdade religiosa; direitos e garantias fundamentais; ponderação de interesses; hierarquia entre princípios, direito à vida.
I – Introdução
O presente estudo visa analisar e comentar uma polêmica decisão proferida recentemente pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América envolvendo o conflito entre a liberdade religiosa e de culto e os direitos dos animais não-humanos. O leading-case assume particular importância, pois a questão do respeito às liberdades e garantias individuais possui uma conotação histórica de sustentáculo de todo o regime democrático norte-americano. Frise-se também que a Constituição americana, por ser sintética e principiológica, permite que a jurisprudência ganhe um peso construtivo e criativo muito grande. Neste cenário, Adhemar Ferreira Maciel afirma que, “se se pode dizer que os Estados Unidos da América nasceram sob o signo da liberdade, também se pode dizer que cresceram sob a efluência da religião”[3]
A justificativa para a escolha do presente tema encontra-se na evidente lacuna de produção jurídica pátria a respeito do assunto.
A tutela jurídica dos animais não-humanos, nascida no bojo do movimento constitucionalista dos civil rights, vem sendo discutida acadêmica e judicialmente, com crescente vigor, desde meados da década de 70 em diversos países, com especial destaque para os Estados Unidos da América, onde o debate tem, progressivamente, envolvido a opinião pública e conquistado a adesão significativa de cientistas, políticos, filósofos e juristas de renome.
No Brasil, infelizmente, o debate acerca dos palpitantes tópicos que envolvem a matéria têm sido constantemente menosprezados por estudiosos e operadores do Direito, que, habitualmente, preferem não enxergar a magnitude das ideias em confronto, relegando-as a segundo plano.
Ledo engano. O Direito, procurando se aprimorar e captar os anseios da sociedade, vem, progressivamente, se preocupando com a proteção jurídica dos grupos minoritários e marginalizados, bem como com a tutela de direitos difusos e coletivos. Dentro dos grupos ditos minoritários e marginalizados podemos, indubitavelmente, incluir o dos animais não-humanos. Prova da crescente preocupação jurídica e, mesmo legislativa, a respeito do tema foi a recente inclusão, em pé de igualdade, no art. 20 da Constituição Alemã, da responsabilidade do Estado pela proteção dos princípios básicos da vida humana e animal no interesse das futuras gerações[4].
Talvez por isso que, ao tomar conhecimento do precedente jurisprudencial da Suprema Corte norte-americana, diante da relevância dos princípios em jogo, tenha sido despertado a contribuir, ainda que timidamente, para a divulgação de algumas breves noções sobre o tema que vem ganhando notoriedade e destaque dentro da doutrina constitucionalista comparada.
- Igreja de Lukumi Babalu Aye[5](CLBA), v. Cidade de Hialeah – Flórida[6].
Determinadas religiões[7] e cultos com significativo número de adeptos nos Estados Unidos praticam o sacrifício de animais não-humanos como parte integrante de seus rituais. Todavia, essa prática vem provocando intenso debate e controvérsia, principalmente no que concerne ao poder do Estado de proibir a matança de seres vivos em cerimônias religiosas.
Em 11 de junho de 1993 a Suprema Corte dos EUA julgou uma demanda que envolvia a seguinte questão: poderia uma lei municipal vedar determinadas práticas religiosas, mais especificamente aquelas relacionadas a sacrifício de animais não-humanos? O caso envolve, pois, precisar os limites do exercício da liberdade religiosa e até quando estaria acobertada pela proteção da Free Exercise Clause, consistente na 1ª Emenda à Constituição dos EUA.
Como é consabido, no Direito norte-americano, os direitos fundamentais foram alvo de consideração nas sucessivas emendas ao texto constitucional originário. A 1ª Emenda à Constituição americana traz o seguinte texto, essencial à compreensão do caso vertente:
“O Congresso não editará nenhuma lei que atinja a instituição ou interdite o livre exercício de uma religião nem que restrinja a liberdade de expressão ou de imprensa ou o direito que tem o povo de se reunir pacificamente e de dirigir petições ao governo para solucionar suas queixas”
A questão fundamental da mencionada lide envolve a utilização de animais não-humanos pela religião denominada “Santeria”.
A “Santeria” é estruturada em religiões e cultos africanos, trazidos para o Novo Mundo pelos escravos do leste africano, mais especificamente da Nigéria, denominados iorubás. A história desta religião está intimamente relacionada com o desenvolvimento dos cultos afro-brasileiros, tais como a umbanda e o candomblé. Como se verá, as similitudes são grandes e tal como no Brasil, houve, inicialmente, a proibição da prática da religião dos escravos por seus proprietários, influenciando a mistura da iconografia e da simbologia provenientes do cristianismo ao seu panteão de divindades, em um verdadeiro processo de sincretismo.
A “Santeria”, ou “o caminho do santos”[8], foi trazida para os EUA por meio de refugiados cubanos que se instalaram no sul da Flórida. Em 1974 foi fundada a primeira Igreja de Lukumi Babalu Aye pela ialorixá Carmen Pla, e pelos babalorixás Ernesto Pichardo e Fernando Pichardo.[9] Estima-se que hoje existam mais de 50.000 praticantes somente neste estado.
Conforme mencionado anteriormente, o sincretismo religioso presente na “Santeria” envolve a identidade dual entre espíritos iorubás, mais conhecidos como “orixás” (divindades intermediárias) com santos católicos, contando também com elementos de origem indígena e kardecista. Em geral, religiões como a “Santeria” mesclam o culto a uma entidade superior única, sem representação material (monoteísmo), com o culto festivo às entidades intermediárias, que constituem uma espécie de auxiliares daquela para o controle do universo e de todas as coisas (politeísmo).[10]
A “Santeria” e os demais cultos a ela assemelhados são, essencialmente, religiões de possessão pelas divindades intermediárias, que dependem de prévio processo de iniciação com certas características definidas. Possuem uma complexa organização de crenças e rituais que giram em torno dessas divindades ou orixás. As cerimônias e rituais feitos em suas homenagens envolvem diversas etapas, algumas delas incluindo o sacrifício de animais não-humanos.
No caso da “Santeria”, esses sacrifícios são realizados para marcar eventos significantes tais como o nascimento, o casamento e a morte de membros ou ainda quando da iniciação de novos sacerdotes. Segundo seus ensinamentos, os orixás, apesar de poderosos, não seriam imortais, dependendo dos sacrifícios para sua sobrevivência. Os animais não-humanos utilizados nesses rituais são preferencialmente os domésticos tais como galinhas, cabras, pombos, gatos, tartarugas, porcos e cães. São mortos com o corte das carótidas ou ainda pela decapitação. O sangue é parte essencial do ritual e, deste modo, alguns animais não-humanos são “sangrados”, o que, indubitavelmente, resulta numa morte lenta e agonizante.[11] As carcaças e os restos dos corpos e órgãos são habitualmente deixados expostos nos locais de culto por algum tempo ou mesmo indeterminadamente. O locais de culto podem consistir em ambientes fechados e privados tais como terreiros ou templos, ou em locais públicos como rios, cachoeiras, estradas, ruas e encruzilhadas.
A resposta da comunidade da cidade de Hialeah a essas práticas, após a instalação da Igreja na cidade em agosto de 1987, foi imediata. Inicialmente houve a convocação, pelo City Counsil[12], de duas sessões públicas extraordinárias que adotaram duas resoluções a respeito do tema. A primeira, Resolução 87-66, “anotou a crescente preocupação de residentes da cidade com o fato de que determinadas religiões tenham propostas de engajamento em práticas inconsistentes com a moral pública, paz e segurança”. A segunda Resolução, 87-40, “corrobora e reafirma integralmente as leis do estado da Flórida que dizem respeito à prática de crueldade com animais”.
Já que a Flórida não permite que um município legisle sobre matéria que seja conflitante com a legislação estadual existente, o City Attorney de Hialeah fez uma consulta ao Florida´s Attorney General[13] antes que o município tomasse qualquer medida legislativa. Em resposta à consulta formulada, o Estado afirmou que o sacrifício religioso de animais, não consistindo em abate para consumo, estaria em desacordo com as leis estaduais, já que seria imotivado e cruel, não havendo que se cogitar de qualquer conflito entre uma eventual lei municipal que o vedasse.
A esse respeito, vale dizer que a competência legislativa dos Estados-membros nos EUA é bastante ampla, constituindo a regra. A competência federal é a exceção. A razão de ser desse sistema encontra-se no fato de que as 13 colônias, até a Independência, tinham vivido de maneira independente uma das outras, vivendo realidades culturais, econômicas e de povoamento totalmente distintas. Assim, mesmo sobre as matérias que o Congresso pode legislar, os Estados possuem espécie de competência residual, sendo-lhes autorizado dispor de maneira complementar à legislação federal existente. Esta fórmula, consagrada na decisão R.R. Co v. Tompkins, implica no reconhecimento da inexistência de uma Common Law federal propriamente dita. No que se refere, por exemplo, à proteção animal, há alguns importantes diplomas legislativos federais tais como o “National Enviromental Policy Act (NEPA), o Animal Welfare Act (AWA), o Endangered Species Act (ESA), o Marine Mammal Protection Act (MMPA), entre outros. Certo é, todavia, que os Estados, exercendo a competência legislativa residual e complementar, possuem uma enorme gama de Estatutos Protetivos, e que, via de regra, dispõem, com maior especificidade, a respeito do tema.
No caso, o City Counsil de Hialeah, ato contínuo, legislou proibindo o sacrifício de animais não-humanos em rituais religiosos, determinando que qualquer pessoa que praticasse esses atos seria devidamente processada. A Ordinance[14] 87-52 houve por bem definir sacrifício como “qualquer morte, tormento, tortura ou mutilação de um animal em ritual público ou privado não destinado ao propósito de consumo para fins de alimentação”[15], bem como estabelecer que “é ilícito a qualquer pessoa, grupo de pessoas, corporações ou associações o sacrifício de animais nos limites do município de Hialeah, Flórida.” Finalmente, a Ordinance 87-72 estabeleceu a proibição do abate de animais mesmo para alimentação fora das zonas previamente estabelecidas para essa finalidade. Todas as ordinances foram aprovadas por unanimidade, tendo sido fixada a sanção para seu descumprimento consistente em pena pecuniária de US$ 500,00 (quinhentos dólares), ou privativa de liberdade com encarceramento de 60 (sessenta) dias, ou ambos cumulativamente.
Os “Santerianos”, julgando-se atingidos em suas práticas religiosas com tais atos legislativos, entraram com uma ação[16] tendo por base a 1ª Emenda à Constituição Norte-Americana (Free Exercise Clause).
O juízo monocrático não acolheu a pretensão dos autores, não observando qualquer violação constitucional que pudesse viabilizar a propositura da referida ação. A Corte Distrital[17], em sede recursal, afirmou que os atos expedidos não objetivavam excluir esta ou aquela Igreja, mas sim determinar o fim da prática de sacrifícios animais. Ao examinar os interesses da municipalidade que justificassem as medidas legislativas adotadas, encontrou quatro justificativas para a configuração do interesse público[18] sobre a matéria, mantendo, pois, a decisão monocrática. O primeiro deles é que o sacrifício indiscriminado de animais pode, eventualmente, colocar em risco a saúde e segurança dos participantes dos rituais e mesmo do público em geral na medida em que os animais a serem sacrificados são usualmente mantidos em condições precárias, sem serem inspecionados pela vigilância sanitária, e os seus restos mortais são encontrados em locais públicos. O segundo está relacionado ao fato de que os sacrifícios, ocorridos na maior parte das vezes em locais públicos, poderiam causar danos de ordem emocional e psicológica às crianças e demais pessoas que a ele testemunhassem. O terceiro é o interesse publico da municipalidade em proteger os animais não-humanos de violências e arbitrariedades, tomando-se por base que os métodos de abate são cruéis e não-confiáveis, bem como o fato de que os animais são mantidos em condições precárias, em situação de grande estresse e medo. Por fim, mesmo que se argumentasse que os animais abatidos seriam posteriormente consumidos, o que de fato não ocorre, a esse respeito ponderou que os sacrifícios, pela sua quantidade e habitualidade, violariam o interesse público em restringir para áreas específicas o abate para consumo. A Corte de Apelações[19] manteve, por unanimidade, a decisão proferida pela Corte Distrital.
Todavia, contrariando as decisões anteriores, o magistrado Kennedy, relator do caso na Suprema Corte, ao analisar a demanda, estabeleceu que: a) “Santeria” é uma religião enquadrável no âmbito da 1ª Emenda[20]; b) leis neutras e de aplicação geral, ainda que reflexamente atinjam a prática religiosa, não precisam ser justificadas por interesses públicos relevantes c) se a lei não for neutra ou de aplicação geral, deverá, todavia, satisfazer um interesse público relevante d) no caso, a Suprema Corte concluiu que a supressão de um elemento central do culto Santeriano era, de fato, o objeto das referidas ordinances[21]; e) concluiu, pois, que elas não seriam de aplicação geral e abstrata; f) entendeu também que ultrapassaram os interesses públicos em jogo ao regulamentá-los somente nos casos em que a conduta fosse motivada por convicção religiosa; g) em face das conclusões “d”, “e”, e “f”, supra, as ordinances emanadas pelo poder legislativo local não poderiam resistir ao escrutínio da 1ª Emenda.
Em outras palavras, a Suprema Corte entendeu que os atos legislativos locais, eram formal e substancialmente inaptos a limitarem a prática religiosa dos Santerianos.
Em que pese o respeito à referida decisão, não guarda ela consistência com os precedentes jurisprudenciais da própria Suprema Corte, bem como com a melhor doutrina sobre o tema. Por esta razão, passadas em revista os fatos e os fundamentos da lide, entra-se, agora, na análise crítica do referido decisum.
III – Argumentos vazios – Análise à luz do Direito Comparado.
Por razões de ordem cultural e histórica, a jurisprudência da Suprema Corte dos EUA evoluiu no sentido de se manter quase sempre receptiva às postulações de violação às liberdades fundamentais e aos direitos civis, especialmente nos casos de demandas envolvendo a liberdade de expressão/opinião e a de religião.[22]
Todavia, no caso Lukumi, a municipalidade de Hialeah tinha diversos argumentos para a expedição das já mencionadas ordinances que baniram o sacrifício de animais não-humanos. Dos quatro interesses públicos a serem protegidos, inicialmente enumerados pela Corte Distrital, talvez o mais relevante deles seja o pertinente à efetiva proteção contra a crueldade com animais não-humanos.
Infelizmente, neste caso, a Suprema Corte, ao decidir, deixou de aplicar um dos princípios jurisprudenciais mais tradicionais existentes na Common Law utilizados para a solução de conflitos envolvendo as liberdades fundamentais, o princípio da dicotomia crença-ação[23].
Por meio desta teoria distingue-se claramente a liberdade de crença individual e a liberdade de conduta individual movida por essa crença. No que diz respeito à conduta (ação ou culto), desde as mais antigas decisões envolvendo a liberdade religiosa, a Suprema Corte se deu conta de que permitir que cidadãos se utilizassem da liberdade de religião para praticar atos que seriam proscritos nas respectivas legislações estaduais, seria um autêntico convite à anarquia social. Permitir que cada pessoa seja um ilha e que governe seus atos apenas pela sua consciência religiosa não é uma opção sadia, nem tampouco inteligente[24].
Todavia, no que se refere à crença, a Suprema Corte sempre reconheceu que não deve haver qualquer interferência governamental nesta área. As leis, segundo ela, “são feitas para reger as ações, e embora não possam interferir na mera crença religiosa e opiniões, podem faze-lo em relação à sua prática”[25].
Como se verá, a teoria da dicotomia crença-ação vem sendo amplamente utilizada para a solução de conflitos, pois a experiência judicial mostrou que é bastante razoável e prudente, permitindo amplo espaço para a tolerância e para a pacífica e saudável convivência dos mais diversos credos e religiões dentro de uma mesma base territorial.
De acordo com ela, a liberdade de consciência e de religião é, de fato, assegurada, na medida em que o indivíduo pode, sem qualquer ingerência estatal, acreditar nas ideias e doutrinas religiosas que melhor lhe aprouverem e se pautar por seus ensinamentos e dogmas, desde que respeitados os limites impostos pelo ordenamento jurídico que, em última análise, dentro de um regime democrático e de direito, é fruto da vontade soberana do próprio povo.
Vários exemplos podem ser dados para se verificar a eficiência do princípio.
Como se viu, no que toca à liberdade de crença individual, sua proteção é absoluta. Pode-se citar o Torcaso v. Watkins[26], onde um notário deixou de receber a comissão devida pela prestação de seus serviços em decorrência de sua recusa de acreditar em Deus. Assim como a crença em Deus, ou qualquer outra entidade deve ser respeitada, a “crença na ausência Dele” deve também receber plena proteção, enquadrando-se na hipótese de plena liberdade de crença individual, inatingível, portanto.
Por outro lado, há a liberdade de conduta individual. Um dos exemplos mais radicais, mas que justamente por isso, ilustra à perfeição o que se vem afirmando, é o caso de determinadas seitas “religiosas” que, dentre outros princípios, defendem, ainda hoje, por mais repulsa que isso possa causar, a supremacia racial do homem branco sobre as demais etnias. Dentre elas, talvez a mais conhecida seja a Ku Klux Khan (KKK). O cidadão, infelizmente, pode até mesmo partilhar dos ideais propagados por essa absurda doutrina. Todavia, essa crença deve permanecer no campo das ideias. No momento em que ela desborda desses limites, a prática de ações que concretizem esses dogmas deve ser prontamente coibida pelo Estado. Assim, absolutamente inaceitável e reprovável os maus-tratos a pessoas de origem negra realizado sob o ilusório manto da liberdade de crença e de opinião. A prática de ações nitidamente contrárias ao ordenamento jurídico não pode encontrar guarida em liberdades fundamentais que, apesar de fundamentais, não são absolutas. Elas não podem ser utilizadas como instrumento da tirania, do abuso e do arbítrio, transformando a o regime democrático em uma autêntica ditadura das minorias.
Outro caso bastante típico, encontrado também em nosso país, é o do impedimento de transfusão sanguínea pelas testemunhas de Jeová. Os pais de criança portadora de grave enfermidade poderiam recusar que fosse submetida a tratamento médico que objetivasse salvar-lhe a vida, consistente na transfusão sanguínea? Adotando a teoria da crença-ação, em Prince v. Massachusetts[27], a Suprema Corte já se manifestou a respeito, dispondo claramente no sentido de que “o alegado direito dos pais e responsáveis pelos menores de impedir transfusões sanguíneas baseado em convicção religiosa não é protegido pela 1ª Emenda à Constituição”.
A questão da poligamia motivada por convicção religiosa pode ser incluída nesse rol exemplificativo. Certas religiões permitem e, até mesmo, estimulam, que o homem contraia matrimônio com mais de uma mulher[28]. Todavia, na maioria das sociedades ocidentais, essa prática não é aceita, constituindo inclusive ato ilícito, punível civil e penalmente. Uma pessoa, alegando professar esse credo, não pode efetivamente se esquivar das sanções impostas pelo ordenamento jurídico e constituir uma família poligâmica. Hugo Lafayette Black, magistrado da Suprema Corte, relata justamente um caso bastante antigo, Reynolds v. United States[29]: “o Congresso declarou crime a poligamia no Território de Utah, antes que ele se tornasse um Estado. Processados de acordo com essa lei, os mórmons, baseando-se em que a sua fé religiosa aprovava a prática, alegaram que a lei territorial que a considerava crime, violava a Primeira Emenda. A Suprema Corte não aceitou o argumento, assinalando que a Primeira Emenda protege somente o direito de ser mórmon, de crer nessa religião e de sustenta-la, mas que uma Igreja não pode, dando a determinada conduta aprovação religiosa, impedir o governo de considera-la crime. Estabeleceu-se deste modo o limite exato entre a liberdade de crer numa doutrina e de defende-la, e a de adotar a conduta que viole a lei.”[30]
Por fim, podemos ilustrar a hipótese com casos em que determinados rituais religiosos envolvem o consumo de drogas alucinógenas. Já se pacificou o entendimento de que o uso de substâncias entorpecentes, quando proibidas, deve ser igualmente coibido e as sanções cabíveis devem ser aplicadas, independentemente da motivação da conduta, seja ela de ordem religiosa ou não[31].
Deste modo, fica clara a distinção que faz a Suprema Corte entre a liberdade de crença individual, que é absoluta, e a liberdade de conduta individual, que não é absoluta, seja ela movida pela religião ou qualquer outro fator[32]. De acordo com essa premissa, a conclusão evidente é a de que as condutas individuais motivadas por convicção religiosa podem, em determinadas hipóteses, ser reguladas, enquanto que a liberdade de crença individual não. Gerald Gunther[33], sintetizando com correção a doutrina, explana que “a liberdade de culto, ainda que este se harmonize com as convicções de cada qual, não está totalmente isenta de restrições legislativas”.
O sucesso da aplicação desse princípio consiste na eficácia com que assegura o direito do proselitismo religioso, político e ideológico contra a ingerência do Estado no intelecto ao mesmo tempo que protege a sociedade das práticas abusivas deles decorrentes. Isso fez com que, desde então, essa teoria da dicotomia crença-ação fosse reiteradamente repetida e aplicada nos julgados desta Corte Especial.
Paralelamente a essa construção doutrinária, estabeleceu-se na jurisprudência norte-americana a orientação genérica de que, excepcionando-se a categoria das liberdades fundamentais consagradas nas dez primeiras emendas à Constituição, as leis deveriam presumir-se constitucionais, só devendo ser declaradas inconstitucionais diante de erro grosseiro ou ausência de interesse governamental. Já nos casos que envolvessem as ditas liberdades fundamentais, a presunção se inverte, tendo os direitos individuais e as liberdades civis posição de franco privilégio diante do confronto com outros interesses públicos[34], que precisarão ser considerados como absolutamente urgentes e essenciais.
Conforme bem sintetiza Daniel Sarmento[35], “em ambos os casos é realizada uma ponderação, só que com as normas que regulam direitos sociais e econômicos, atribui-se certa primazia aos interesses abraçados pelo legislador, enquanto que, nas normas que interferem com o exercício das liberdades clássicas, o peso maior vai recair sobre estas próprias liberdades, criando praticamente uma presunção de inconstitucionalidade em desfavor das leis que as restringem.”
Não bastasse esse maior rigor afeto aos direitos individuais clássicos, passou a Suprema Corte a adotar diferentes padrões para cada um deles, em razão de sua maior significância e impacto.
Assim, quando a lei faz qualquer tipo de distinção baseada em critérios de raça, cor, etnia, e religião, abrangidos aí os casos relativos à liberdade de culto, foi adotado o “compelling state interest test”, [36], também denominado de “scrutinity test” (teste da relevância do indeclinável interesse público em jogo), pelo qual o órgão editor da norma debatida passa a ter que demonstrar que a discriminação é absolutamente imprescindível para a proteção de algum outro interesse governamental. Pode-se dizer, com segurança, que esse padrão de teste é o mais rigoroso entre os existentes para ponderar os interesses conflitantes[37].
De fato, o que se vem observando é que a simples menção da palavra “religião” em uma demanda que verse sobre a 1ª Emenda dissolva toda a presunção de constitucionalidade do ato legislativo. O teste da relevância do interesse público vem sendo aplicado com tamanho exagero e rigorismo que determinados interesses, apesar de legítimos e importantes para o corpo social, não são ponderados como deveriam, permitindo que sob a bandeira da Free Exercise Clause tudo seja permitido, subvertendo os critérios anteriormente adotados.
No caso em tela, a utilização do “compelling interest test” se mostra de questionável acerto, na medida em que a lei editada não discrimina indivíduos com base na sua liberdade de crença. Não há que se cogitar de discriminação alguma e, consequentemente, da utilização desse padrão de teste. O que se prevê é a limitação do âmbito de certas atividades de determinado grupo religioso que afrontam princípios outros que a comunidade tem como relevantes.
O teste apropriado para o balanceamento das questões atinentes a essa matéria deveria ser o da igual ponderação dos interesses (“equal protection analysis” ou “rational relationship”). Sob esse teste (igual ponderação de interesses), as leis baseadas em interesses importantes e legítimos certamente sobreviveriam às demandas fundamentadas em condutas motivadas por convicção religiosa.
No que toca aos interesse do município de Hialeah, deve-se dizer que são, indubitavelmente, importantes e legítimos. A prevenção contra a crueldade com animais não-humanos já, há muito, foi reconhecida como sendo tema da mais alta relevância. Nos EUA é alvo de incontáveis diplomas legais, até mesmo por se entender que uma das razões desses estatutos protetivos seja a própria proteção, via reflexa, da moral pública, evitando que cidadãos presenciem cenas de violência e crueldade. Conforme bem assinalado no caso Stephens v. Mississipi State[38], “a crueldade para com animais é manifestação clara de uma natureza vil e degradada, e tende, inevitavelmente, a se espraiar para a crueldade para com outros seres humanos”.
Além disso, como já discutido, a alegação de ausência de neutralidade feita pelo magistrado Kennedy é totalmente infundada. Conforme destacado pela Corte Distrital, as ordinances não traziam consigo proibição alguma relacionada à supressão da “Santeria” como religião. Tinham por objeto a vedação da prática de sacrifícios animais, seja por quem fosse, “Santerianos” ou não. Sob esse enfoque, de acordo com a lógica apresentada pelo relator do caso, não deveria ter aplicado qualquer teste visando a caracterização do interesse público.
Ainda assim, mesmo criticando-se a utilização desse padrão de teste (“compelling”) para a ponderação dos interesses conflitantes, eles são flagrantes, como visto anteriormente. Diante do evidente interesse público de proteção das vidas de seres sencientes, bem jurídico que deve ser tutelado acima de todos os demais, levando-se também em consideração a teoria da dicotomia crença-ação, que sustenta a possibilidade de intervenção estatal na prática individual de condutas motivadas por convicção religiosa, as ordinances deveriam ter sido mantidas pela Suprema Corte.
A confusão criada pelo magistrado Kennedy pode ser identificada no início de seu voto, quando, inadvertidamente, misturou os já repisados conceitos de liberdade de crença e liberdade de prática religiosa, ao afirmar que “embora a prática de sacrifícios animais possa ser considerada repulsiva para alguns, crenças religiosas não precisam ser aceitáveis, lógicas, consistentes ou compreensíveis para merecer a proteção da 1ª Emenda.” Percebe-se, nitidamente, que o relator do caso incluiu a prática de sacrifícios animais como sendo equivalente à própria crença em si, esta sim, inabalável e protegida com absolutismo.
Ao fazê-lo, o magistrado pecou não só ao ignorar a teoria da dicotomia crença-ação, gerando uma cadeia sucessiva de equívocos, como também e, talvez o mais grave, revelou preconceito inconcebível em relação ao animais não-humanos.
Dizer que a prática de sacrificar animais deve ser aceita porque é uma conduta historicamente associada à própria religião que o prega é um absurdo tão inconsistente quanto o de dizer que os negros e as mulheres não deveriam nunca terem se tornado cidadãos e se emancipado porque tradicionalmente não o eram.
O argumento é tão preconceituoso que, se mudássemos o objeto dos sacrifícios ritualísticos, substituindo o animal não-humano por um bebê humano certamente que a premissa e a conclusão seriam imediatamente reformadas. O animal não-humano não deixa de ser vítima por ser não-humano, assim como o ser humano não se torna vítima por sua condição de homo sapiens. A prática do sacrifício religioso deve ser combatida em nossa sociedade porque provoca o afrontamento do maior e mais tutelado bem jurídico de todos, que é a vida, seja ela humana ou não.
Ao afirmarmos que um ser vivo só merece proteção se pertencente à nossa própria espécie, estamos utilizando uma retórica extremamente frágil. Eleger, arbitrariamente, uma capacidade inata (ser racional ou não, ser capaz de se comunicar por meio de linguagem articulada,…), ou qualquer outra aptidão física (cor da pele, sexo, etnia,…) para justificar a diferenciação de tratamento não igualitário entre seres que são capazes de sentir dor, sofrer e de se auto orientar no espaço e no tempo, é, de fato, bastante perigoso. É importante ressaltar que esse mesmo tipo de raciocínio já foi amplamente utilizado pelos proprietários de escravos para justificar a escravidão ou mesmo pelos nazistas para justificar o holocausto.
Conforme ressalta o professor e filósofo Peter Singer, “se um ser sofre, não pode haver nenhuma justificativa de ordem moral para nos recusarmos a levar esse sofrimento em consideração. Seja qual for a natureza do ser, o princípio da igualdade exige que o sofrimento seja levado em conta em termos de igualdade com o sofrimento semelhante […] Os racistas violam o princípio da igualdade ao darem maior importância aos interesses dos membros de sua raça sempre que se verifica um choque entre os seus interesses e os interesses dos que pertencem a outra raça. Sintomaticamente, os racistas de descendência europeia não admitiram que, por exemplo, a dor importa tanto quando é sentida por africanos como quando é sentida por europeus. Da mesma forma, aqueles que eu chamaria de ‘especistas’, atribuem maior peso aos interesses de membros de sua própria espécie quando há um choque entre os seus interesses e os interesses dos que pertencem a outras espécies. Os especistas humanos não admitem que a dor é tão má quando sentida por porcos ou ratos como quando são seres humanos que a sentem […] No que diz respeito a esse argumento (preferência de tratamento em razão da inteligência), animais, recém-nascidos e seres humanos com graves deficiências mentais pertencem à mesma categoria; e, se, o usarmos para justificar as experiências com animais, temos de nos perguntar se estamos preparados para admitir que sejam feitas as mesmas experiências com recém-nascidos humanos e adultos com graves deficiências mentais. Se fizermos uma distinção entre os animais e esses seres humanos, caberá também a pergunta: de que modo poderemos fazê-la, a não ser com base numa preferência moralmente indefensável por membros de nossa própria espécie?”[39]
Talvez a resposta ao tratamento especista que dispensamos a todos os seres sencientes que não integram a nossa própria espécie seja explicada pelo seu tratamento contraditório e ambíguo pela sociedade de modo geral, refletindo em decisões equivocadas como a que se acabou de analisar.
IV – O baixo status moral dos animais.
Muito embora os argumentos expostos acima sejam altamente plausíveis e legitimadores do interesse governamental em banir práticas cruéis contra seres sencientes, não foram sequer examinados pela Suprema Corte. A pergunta que se deve fazer é: por quê?
Devido a diversos fatores, históricos, culturais, filosóficos, teológicos e mesmo psicológicos, o Direito, continua, de modo geral, ainda no terceiro milênio, a negar justiça aos animais não-humanos, trancafiando-os em universo de não existência. Por essa razão, são considerados juridicamente como coisas, tal como uma mesa, um livro, uma porta, e tal como um dia o foram os escravos, as mulheres, os asiáticos, os judeus, …
No século XIX, mais precisamente em 1854, o Tribunal de Justiça da Califórnia impediu que chineses testemunhassem em processos nos quais pessoas “brancas” fossem partes, por serem considerados “uma raça de pessoas a que a natureza marcou como inferiores e que são incapazes de progresso ou de desenvolvimento intelectual após determinado ponto”[40]. Em 1857, a Suprema Corte dos EUA afirmou categoricamente que “um negro, da raça africana não pode ser considerado um cidadão norte-americano, pois o status de sua raça, à época da ratificação da Constituição dos Estados Unidos da América do Norte, os qualifica como seres de ordem inferior e tão inferiores aos ‘brancos’ na escala dos seres que eles não podem ter os mesmos direitos que o ‘homem branco’”[41]. Em 1875, o Tribunal de Justiça de Wisconsin negou, por unanimidade, a prática do Direito por uma mulher, dado que “a prática do Direito pela mulher era uma aberração da ordem da natureza”[42].
Embora não seja objeto do presente trabalho discutir as raízes históricas do preconceito contra os animais, advindas desde os primórdios do filosofia estoica, passando pelo direito romano e pelo cristianismo, até os dias de hoje, o fato é que se criou, artificialmente, ao longo do tempo, um universo hierárquico e imutável, como que numa espécie de grande escala de valores dos seres vivos, desenhada para satisfazer os interesses de dominação humana.
A defasada tese do antropocentrismo teleológico pela qual o mundo físico foi construído para servir a humanidade, defendida por filósofos gregos como Platão e Aristóteles[43] influenciou os estoicos[44] que, por sua vez, forneceram as bases para que os romanos[45] as disseminassem por todo o seu vasto império. Os hebreus, bebendo dessa fonte viciada, incluíram-na nas Escrituras Sagradas[46], formalizando relação de dominação e cisão entre o homem e os demais seres vivos.
Essa absorção dos ensinamentos gregos pelo cristianismo explica o longo reinado da teoria no mundo ocidental. Por incrível que pareça, atravessaram séculos praticamente intocadas, sendo amplamente utilizadas no século V d.C., por Santo Agostinho[47], e, posteriormente, no século XIII d.C., por São Tomás de Aquino[48], dentre outros, para sancionar o mesmo tipo de raciocino de exclusão.
Apesar dos incontestáveis argumentos darwinianos, trazidos à baila no revolucionário “A Origem das Espécies”, no sentido de que todos os organismos descenderam de um ancestral comum[49], não fazendo qualquer sentido em se falar em qualquer tipo de hierarquia entre os seres vivos, a falsa metáfora da superioridade do homem frente aos demais seres vivos dominou, perverteu e obstruiu a verdadeira descoberta do seu lugar na natureza.
O axioma Aristotélico utilizado para distinguir quem tem direitos dos que não os têm, consiste no seguinte silogismo: “Os seres humanos do sexo masculino de origem grega ocupam o topo da hierarquia; eu sou um homem grego; deste modo ocupo o topo da hierarquia” evoluiu ao longo do tempo para assumir a feição genérica de : “Somente grupos de que eu faça parte ocupam o topo da hierarquia; eu integro esses grupos; deste modo, ocupo o topo da hierarquia”. Esse silogismo aliado à hierarquia entre os seres vivos é, de fato, embora completamente infundado, muito cômodo para justificar a dominação de um grupo (homens) em relação a outro grupo (não-homens). Parafraseando o cineasta Mel Brooks, que sintetizou com maestria o axioma Aristotélico, poderíamos dizer que “It´s great to be the king!”[50].
Infelizmente, essa retórica equivocada a respeito da relação do homem com os outros seres e o mundo natural foi objeto de codificação não só nas Sagradas Escrituras e nos textos doutrinários, como também em textos jurídicos propriamente ditos. O imperador Justiniano, no séc. VI d.C, valendo-se dessas fontes e de outros escritos de juristas romanos, providenciou a inclusão desses conceitos no Direito Romano. Este, influenciou estruturalmente todo o Direito Continental e mesmo a Common Law, por meio das doutrinas de Bracton, Britton, Fleta, Coke, Locke, Blackstone, Kent e Holmes.
Deste modo, o que de fato ocorre é que estamos, ainda hoje, repetindo, mecanicamente, ideias de juristas romanos, por mais tolas e vazias que efetivamente sejam. A sua fundação já entrou em colapso há muito, mas os dedos gélidos de sua mão morta ainda governam o nosso ordenamento jurídico, fazendo com que não consideremos os animais não-humanos como aptos a serem sujeitos de direito.
Já em 1894, H. S. Salt alertava que “somente a difusão do mesmo espírito democrático permitirá que os animais gozem dos “direitos” pelos quais até os homens lutaram, por tanto tempo, em vão. A emancipação humana da crueldade e da injustiça trará consigo, no devido tempo, a emancipação também dos animais. As duas reformas estão inseparavelmente vinculadas, e nenhuma pode ser plenamente realizada sem a outra.”[51]
V – Os sacrifícios de animais não-humanos no Direito brasileiro.
Apesar das marcantes diferenças de concepção existentes entre os sistemas jurídicos filiados à Common Law e os da família Romano-Germânica, o problema enfrentado pela Suprema Corte norte-americana traz à baila determinados questões comuns a todos os sistemas jurídicos, independentemente da forma pela qual estão estruturados.
Por essa razão é que o ilustre René David destaca que “o direito comparado não é o domínio reservado de alguns juristas que encontram o seu interesse nesse ramo. Todos os juristas são chamados a interessar-se pelo direito comparado, quer para melhor compreenderem o seu próprio direito, quer para o tentarem aperfeiçoar, ou ainda, para estabelecer, de acordo com os juristas dos países estrangeiros, regras de conflito ou de fundo uniformes ou uma harmonização dos diversos direitos.”[52]
Como se passará a verificar, nosso ordenamento também adotou a diferenciação de tratamento entre a liberdade de crença e a de culto (dicotomia belief-action). Conforme Paulo M. de Lacerda[53], essa distinção é bastante antiga, podendo ser visualizada desde o período anterior ao da primeira Carta Republicana, por meio do Decreto n.º 119-A, de 7 de janeiro de 1890, expedido pelo Governo Provisório, que dispõe em seu art. 2º que “a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos atos particulares ou públicos que interessem o exercício deste direito”, consagrando a separação entre Igreja e Estado[54].
A liberdade conferida ao exercício do culto foi sendo cada vez mais relativizada nos diplomas constitucionais posteriores[55]. De acordo com Pinto Ferreira[56], “a Constituição de 1934 distinguiu entre a liberdade de crença e a liberdade de culto […], o que também aconteceu com a Carta Ditatorial de 1937.” Alcino Pinto Falcão[57] em comentários ao diploma de 1946, leciona que “o gênero é a liberdade religiosa; crença e culto, que não se confundem, são as espécies […] E a posição do Estado frente à crença e ao culto não é igual. Quanto a primeira, com respeito à personalidade humana, o Estado moderno se abstém de qualquer coação sobre a consciência do indivíduo, plenamente livre de pertencer a uma ou outra confissão, ou de não ter qualquer fé religiosa; mas por ser ato externo, no exercício do culto pode, em certas circunstâncias, dar-se a intervenção estatal.”. Segundo Jessé Torres Pereira Júnior[58], a Constituição de 1967 “consagra a distinção ao proclamar, de um lado, ser ‘plena a liberdade de consciência’, e de resguardar, de outro – tornando expressas quais são aquelas circunstâncias – ‘o exercício dos cultos religiosos que não contrariem a ordem pública e os bons costumes (art. 153, § 5º), […] reproduzindo o critério do art. 50 da Constituição suíça – ‘É garantido o livre exercício dos cultos, em limites compatíveis com a ordem pública e os bons costumes.”
A Constituição Federal de 1988 assegura, nos termos nos incisos VI e VIII seu art. 5º, a liberdade de crença e de culto religioso nos seguintes termos: “VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e liturgias;” e “VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”[59].
Percebe-se, com nitidez, que o nosso ordenamento adota a diferenciação clássica entre a liberdade de crença e a liberdade de exercício religioso (liberdade de culto) consagrada na doutrina alienígena. Ao contrário das cartas anteriores, não obstante o fato de a vigente não trazer mais a ressalva da observância da “ordem pública e dos bons costumes” na parte relativa à liberdade de culto, segundo José Afonso da Silva[60], por presumir que “de fato, parece impensável uma religião cujo culto, por si, seja contrário aos bons costumes e à ordem pública”, ela está subentendida, sendo que a parte final do inciso VIII, supramencionado, excepciona, expressamente, o fato de que não se poderá utilizar a escusa de consciência religiosa para se deixar de praticar ato legalmente imposto, ou praticar ato considerado ilícito, o que, vale dizer, implica na adoção da diferenciação de tratamento entre a primeira (liberdade de crença), inatingível e absoluta, e a segunda (liberdade de culto), sancionável e relativa.
Conforme bem assinalado pelo sempre brilhante Pontes de Miranda, “no estado atual do direito público, a liberdade de culto é limitada por medidas de ordem pública, com o mesmo critério que preside as outras limitações: as práticas – assim em atos como em palavras – têm de respeitar as leis penais, isto é, não podem ser tais que constituam crimes ou contravenções: nem lhes seria permitido infringir as outras liberdades.[61]”
Partindo da inatacável premissa da possibilidade de intervenção justificada do Estado na liberdade de culto, resta-nos perquirir se o ordenamento jurídico pátrio protege os interesses das vítimas dos referidos sacrifícios ritualísticos, os animais não-humanos.
De acordo com o art. 1º da Lei n.º 5.197, de 3 de janeiro de 1967, alterada pela Lei n.º 7.653, de 12 de fevereiro de 1988, a fauna nacional pertence ao Estado. Deste modo, segundo bem assinala José Afonso da Silva, “não foi incluída entre os bens da União. Portanto, não constitui seu domínio patrimonial de que ela possa gozar e dispor. Mas , na medida em que é ela que representa o Estado Brasileiro, tomado em seu sentido global, a ela compete cuidar e proteger esses bens, que assumem características de bens nacionais, não como mero domínio eminente da Nação.”[62] O próprio caput do art. 225 da Constituição Federal dispõe que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é bem de uso comum do povo, de todos os cidadãos brasileiros.
A Constituição Federal dispõe no inciso VII, do parágrafo primeiro do art. 225 que incumbe ao Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade.” Dispõe ainda, em seu art. 173, § 5º e 225, § 3º que as condutas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas e jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
A repartição de competências em matéria ambiental pauta-se pelos mesmos princípios que regem a divisão de competências entre os entes federativos. Assim, no que se refere à proteção dos animais, o art. 24, VI da CF/88 estabelece que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal, legislar concorrentemente sobre caça, pesca e fauna, devendo a legislação federal restringir-se a aspectos gerais enquanto as normas suplementares e regulamentadoras ficam por conta dos Estados e do Distrito Federal. Ao lado deste artigo, tem-se também o art. 23, VII que declara competir, em regime de competência material comum (mais no âmbito da execução das leis protetivas que no da produção legislativa), à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, a proteção da fauna e da flora.
Pelo princípio da simetria, as Constituições Estaduais também trazem em seu corpo, normas gerais de proteção e preservação da fauna e da flora[63].
Edna Cardozo Dias resume bem a questão ao lecionar que “vale observar que todos os animais são constitucionalmente protegidos, nativos ou não, silvestres ou aquáticos, bem como os domesticados, impondo-se ao Poder Público (União, Estados, DF, municípios, órgãos públicos) e a coletividade o dever de defendê-los e de preservá-los, no interesse das presentes e futuras gerações. Todos os animais, silvestres, terrestres, aéreos ou aquáticos são de propriedade do Estado e são de domínio público, integrantes do patrimônio indisponível, no interesse de todos. Eles estão sujeitos a regime excepcional, pois fazem parte do seguro coletivo da humanidade das gerações presentes e das futuras.”[64]
A tradição de proteção dos animais não-humanos em nosso ordenamento não é recente, podendo ser buscada no Decreto Federal n.º 24.645, de 10 de julho de 1934, que dispunha sobre a proibição de práticas de abuso e crueldade contra os seres sencientes. Posteriormente, em 3 de outubro de 1964, foi publicado o Decreto-Lei n.º 3.688, Lei das Contravenções Penais que, em seu art. 64[65], inclui no rol das contravenções penais os maus-tratos[66] e crueldade cometidas contra animais.
Diversos outros diplomas legislativos foram editados desde então vinculados a questão da proteção animal tais como o Código de Pesca (Lei n.º 221/67), Lei de Proteção à Fauna (Lei n.º 5.197/67), Lei dos Zoológicos (Lei n.º 7.173/83), Lei da Inspeção de Produtos de Origem Animal (Lei n.º 7.889/89), entre outras. No âmbito estadual, e até mesmo municipal, também encontramos grande variedade de legislação atinente ao tema[67].
Recentemente, entrou em vigor a Lei de Crimes Ambientais Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, regulamentada pelo Decreto 3.179, de 21 de setembro de 1999, que tipificou como crime, e não mais apenas contravenção penal, a prática de abuso e crueldade contra animais não-humanos. Seu art. 29[68] trata da matança de animais da fauna silvestre enquanto o art. 32[69] trata da prática de abuso e maus-tratos contra animais de quaisquer espécies.[70]
Segundo ensinamento de Luiz Régis Prado, tem-se que o art. 32, supramencionado, trata de crime comissivo, comum, plurissubsistente, material, simples e de ação múltipla ou de conteúdo variado. Deve-se observar , todavia, que entendemos ser possível a forma omissiva, por meio de crime omissivo por omissão (ex.: privação prolongada de alimentação). Afirma ainda o citado autor que este artigo “revogou de forma tácita a contravenção insculpida no art. 64 da Lei de Contravenções Penais.”[71]
O tipo objetivo do art. 32 prevê diversas condutas alternativas, “praticar ato de abuso”, “maus-tratos”, “ferir”, “mutilar” e “realizar experiência dolorosa em animal vivo”. Helita Barreira Custódio, em parecer elaborado em razão do Novo Código Penal Brasileiro[72], sintetizando essas condutas, conceitua a crueldade como sendo “toda a ação ou omissão dolosa ou culposa (ato ilícito), em locais públicos ou privados, mediante matança cruel pela caça abusiva, por desmatamentos ou incêndios criminosos, por poluição ambiental, mediante dolorosas experiências diversas (didáticas, científicas, laboratoriais, genéticas, mecânicas, tecnológicas, dentre outras), amargurantes práticas diversas (econômicas, sociais, populares, esportivas como tiro ao vôo, tiro ao alvo, de trabalhos excessivos ou forçados além dos limites normais, de prisões, cativeiros ou transportes em condições desumanas, de abandono em condições enfermas, mutiladas, sedentas, famintas, cegas ou extenuantes, de espetáculos violentos como lutas entre animais até exaustão ou morte, touradas, farra do boi ou similares), abates atrozes, castigos violentos e tiranos, adestramentos por meios e instrumentos torturantes para fins domésticos, agrícolas ou para exposições, ou quaisquer outras condutas impiedosas resultantes e maus-tratos contra animais vivos, submetidos a injustificáveis e inadmissíveis angústias, dores, torturas, dentre outros atrozes sofrimentos causadores de lesões corporais, de invalidez, de excessiva fadiga ou de exaustão até a morte desumana da indefesa vítima animal.”
Frise-se que o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se manifestar no sentido da proibição da “farra-do-boi”[73], quando do julgamento do RE 153.531-B de Santa Catarina, interposto por associações de proteção dos animais, no qual foi relator o Ministro Marco Aurélio. A Ementa do julgado possui o seguinte teor: “A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do art. 225 da Constituição Federal, no que veda a prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado “farra do boi”. Conforme destacado no brilhante voto do eminente relator: “Não se trata, no caso, de uma manifestação cultural que mereça o agasalho da Carta da República. Como disse no início do meu voto, cuida-se de uma prática cuja crueldade é ímpar e decorre das circunstâncias de pessoas envolvidas por paixões condenáveis buscarem, a todo custo, o próprio sacrifício do animal.”
O que se verifica, portanto, é que, diante da ponderação de valores envolvidos na questão, o STF decidiu, acertadamente, por privilegiar o de maior valor, a vida, em detrimento de uma manifestação cultural.
VI – Conclusão.
Como verificado anteriormente, o livre exercício dos cultos religiosos, também esbarra, portanto, nos limites impostos pela “ordem pública e os bons costumes”, bem como nos traçados pelo ordenamento jurídico, sendo absurdo permitir que o exercício da liberdade religiosa contravenha às leis.
Diante de todo o exposto, imperativo é concluir que a prática de rituais religiosos, consistentes na matança de animais não-humanos, é condenável filosófica, ética e juridicamente, devendo tais condutas serem enquadradas nos tipos legais pertinentes, especialmente no tipo penal previsto no art. 32 da Lei n.º 9.605/98, por constituírem ato ilícito punível tanto no âmbito cível quanto penal.
Uma sociedade democrática, em nome da tolerância, deve se pautar pelo respeito absoluto à liberdade de crença, de consciência e de pensamento de cada um de seus cidadãos, mas deve, em respeito a eles também, coibir seriamente as condutas que atentem contra bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico. Os maus-tratos e abusos contra animais não-humanos constituem, indubitavelmente, em grave afronta a sua integridade física e psicológica dos próprios animais bem como contra a própria dignidade dos seres humanos. Que bem maior há que a própria vida? A vida não possui gênero, nem admite espécie.
Como já alertava o sábio padre Antônio Vieira, “que teologia há ou pode haver que justifique a desumanidade e sevícia?”[74]
Helita Barreira Custódio[75] relata que na antiga Grécia, “Sócrates pede, perante a Ágora (assembleia pública), uma pesada pena para um jovem que se divertia ao cegar uma andorinha, afirmando que ‘tal jovem não seria jamais um bom cidadão ateniense, porque quem demonstra instinto cruel contra criaturas mais fracas faltam potencialmente capacidades de convivência e de respeito civil também com os próprios semelhantes.’”
Cabem aqui a esperança grandiosa e a sábia advertência do filósofo Jeremy Benhtam, criador do utilitarismo moderno, feita numa época em que os escravos africanos mereciam o mesmo tratamento ainda hoje dispensado aos animais:
“Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser humano seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação dos sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou , talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adulto são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, do que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim; que importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de sofrimento”[76].
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[1] Esse artigo foi originalmente elaborado em 2004 e publicado no ano seguinte na Revista de Direito Constitucional e Internacional (São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, n. 51. p. 295-318), anteriormente, portanto, à decisão proferida nos autos da ADIN n.º 70010129690/2004/TJRS, demanda em que se discute o mesmo embate principiológico envolvendo a liberdade de culto e o sacrifício ritualístico de animais. Em razão desse fato, novo artigo será elaborado tratando da decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e do vindouro posicionamento do Supremo Tribunal Federal no âmbito do RE n.º 494601/2006.
[2] “The Descent of Man” (1871), p. 440, extraído de “O Homem e o Mundo Natural”, por Keith Thomas, Cia. Das Letras, 1996, p. 224.
[3] “Os macacos de Darwin”, Revista de Direito Renovar n.º 18/2000, p. 21
[4] “O Estado é responsável pela proteção dos princípios básicos da vida humana e animal no interesse das futuras gerações” (Art. 20 da Constituição da Alemanha).
[5] Página na internet : www.church-of-the-lukumi.org
[6] “Church os the Lukumi Babalu Aye v. City of Hialeah”, 508 U.S. 520 (1993).
[7] Ao longo do presente trabalho o vocábulo “religião” é utilizado em sentido lato, devendo ser entendido como sistema de crença, prática e organização que conformam uma ética ligada ao respeito a poderes superiores, sobrenaturais. Não se entrará no mérito da questão de se saber, em sentido estrito, se determinadas religiões africanas comportam essa denominação, ou se seriam somente cultos, sistemas de crença, seitas, etc… Essas palavras são utilizadas indistintamente, pois as propriedades formais dos sistemas religiosos são fruto de contextos históricos variados e, portanto, não são levadas em consideração para a exclusão da Santeria como grupo religioso.
[8] “The way of the saints”
[9] Na hierarquia do candomblé, o posto mais alto tanto pode ser ocupado por um homem, chamado de “pai-de-santo” ou babalorixá, ou por uma mulher, denominada de “mãe-de-santo” ou ialorixá.
[10] “A concepção dos orixás é francamente politeísta, constitui uma verdadeira mitologia, ao mesmo tempo que sua representação material continua sendo inteiramente fetichista” (R. Nina Rodrigues, A representação dos orixás. In: Antologia do negro brasileiro. Porto Alegre, Globo, 1950. p. 310).
[11] Algumas espécies de aves, como a galinha, possuem quatro carótidas e o corte mal realizado em seu pescoço não provoca a sua morte imediata.
[12] Literalmente Conselho Municipal, estrutura legislativa próxima à nossa Câmara de Vereadores.
[13] Paralelamente equivalente ao nosso Procurador do Município e Procurador Geral do Estado, respectivamente.
[14] Espécie de lei municipal. Segundo o Black´s Law Dictionary, “An ordinance is the equivalent of a municipal statute, passed by de City Council, or equivalent body, and governing matters not already coverede by federal or state law” (West Publishing Company, 5th edition, p. 989).
[15] “Sacrifice means unnecessarily kill, torment, torture, or mutilate an animal in a public ou private ritual or ceremony not for the primary purpose of food consumption”.
[16] 42 U.S.C. Section 1983 action.
[17] “District Court”.
[18] “Compelling governamental interests”.
[19] “Eleven Circuit Court of Appeals”
[20] “Given the historical association between animal sacrifice and religious worship,… petitioners assertion that animal sacrifice is an integral part of their religion ‘cannot be deemed bizarre or incredible.’ Neither the city nor the courts below, moreover, have questioned the sincerity of petitioners´professed desire to conduct animal sacrifices for religious reasons’
[21] “The ordinances had as their object the supression of religion. The patern… discloses animosity to Santeria adherents and their religious practices; the ordinances were gerrymandered with care to proscribe religious killing of animals but to exclude almost all secular killings; and the ordinances suppress more religious conduct than is necessary to achieve the legitimate ends asserted in their defense.”
[22] Vide Reynolds v. United States, 98 U.S. 145 (1878); Mormon Church v. United States, 136 U.S. 1 (1890); Prince v. Massachusetts, 321 U.S. 158 (1944); Gillete v. United States, 401 U.S. 437 (1971); United States v. Lee, 455 U.S. 252 (1982); Bob Jones Univ. v. United States, 461 U.S. 574 (1983); Tony and Susan Alamo Found. v. Secretary of Labor, 471 U.S. 290 (1985); Bowen v. Roy, 476 U.S. 639 (1986); O´Lone v. Estate of Shabazz, 482 U.S. 342 (1987); Employment Div., Dept. of Human Resources v. Smith, 494 U.S. 872 (1990); International Society for Krishna Consciousness , Inc. v. Lee, 60 U.S.L.W. 4749 (1992).
[23] “Belief-action dichotomy”.
[24] Vide Reynolds, 98 U.S. at.167.
[25] Vide Reynolds, 98 U.S. at.166.
[26] 367 U.S. 488 (1961).
[27] 321 U.S. 158 (per curiam): “Parents claimed right to fobid blood tranfusions for their children based on religious belief is not protected bu the First Amendment”.
[28] “Renegade Mormons”, Newsweek, n.º 20, Jan., 1975.
[29] 98 U.S. – 145 (1877).
[30] “A Constitucional Faith” citado em “A Inobservância do Princípio da Continuidade das Leis como Fator de sua Multiplicação – Um Exemplo”, por Cássia Maria Senna Ganem, na Revista de Informação Legislativa n.º 113/1992.
[31] Vide Smith II, 494 U.s. at 877.
[32] Vide Bowen v. Roy, 476 U.S. 639, 699 (1986): “Our cases have long recognized a distinction between the freedom of individual belief, which is absolute, and the freedom of individual conduct, which is not absolute.”
[33] “The freedom to act, even when the action is in accord with one´s religious convictions, is not totally free form legislative restrictions”. Cases and Materials on Constitucional Law, Section 2, The Free Exercise of Religion, New York, The Foundation Press Inc., 1975, p. 1505.
[34] O leading case desta posição jurisprudencial foi o United States v. Carolene Products Co, julgado em 1938. 304 U.S. 144 (1938).
[35] “A Ponderação de Interesses na Constituição Federal”, ed. Lumen Júris, 2002, p. 157
[36] Vide Sherbert v. Verner, 374 U.S. 398 (1963); Thomas v. Review Board of Indiana Employment Sec. Div, 450 U.S. 707 (1981); Hobbie v. Unemployment Appeals Comission of Florida, 480 U.S. 136 (1987).
[37] Para se exemplificar, existem outros testem bem menos rigorosos tais como o “rational relationship” e “clear and present danger”, entre outros.
[38] 3 So. 458, 459 (Miss. 1888).
[39] Ética Prática”, Martins Fontes, p. 67 a 70.
[40] People v. Hall, 4 Cal. 399, 404-405 (1854), California Supreme Court.
[41] Dred Scott v. Sandford, 60 U.S. (19 How) 393, 403-405, 407, 409 (1856).
[42] Goodell, 39 Wis. 232, 245 (1875).
[43] “Pode-se inferir que as plantas existem para o bem dos animais, e que os animais existem para o bem do homem, os domésticos para o uso e alimento, os selvagens, se não todos, ao menos grande parte deles, para alimento e para a confecção de vestimentas e outros utensílios. Se a natureza não faz nada incompleto, e nada em vão, a inferência deve ser a de que ela fez os animais para o bem do homem”. Aristóteles em “Política”.
[44] “Tudo no mundo foi criado para o benefício de alguma outra coisa – plantas para o suporte de animais, animais para o suporte e serviço do homem, o mundo para benefício dos Deuses e dos homens […]” Eduard Zeller, “The Stoics, Epicureans and Sceptics”, p. 185-186.
[45] Nas “Meditações” do imperador romano Marco Aurélio, encontramos a seguinte passagem: “[…] Não é claro que os seres inferiores existam para o bem dos superiores – mas as coisas que têm vida são superiores às que não a tem, e daquelas, as que superiores são as que possuem razão”. Marcus Aurelius, “The Meditations of The Emperor Marcus Aurelius Antonius”, v. 16, p. 184, The Chesterfield Society, 1890.
[46] “Deus disse ‘ Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra.’” (Gn 2, 26);
“Deus abençoou Noé e seus filhos, e lhes disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra. Sede o medo e o pavor de todos os animais da terra e de toas as aves do céu, como de tudo o que se move na terra e de todos os peixes do mar: eles são entregues nas vossas mãos. Tudo o que se move e possui a vida vos servirá de alimento, tudo isso eu vos dou, como vos dei a verdura da plantas.’” (Gn 9, 1-4)
Fonte: “A Bíblia de Jerusalém”, Edições Paulinas.
[47] Santo Agostinho defendia por exemplo a ideia de que o Sexto Mandamento, “Não matarás”, só se aplicava aos seres humanos, pois “todas as outras criaturas são insensíveis, apesar de vivas, e, portanto, podem ser mortas […]” (The City of God, Modern Library, 1950, p. 360).
[48] “Todos os animais são naturalmente sujeitos ao homem. Isso pode ser provado de três maneiras. A primeira delas é a ordem da própria natureza […] as plantas devem servir aos animais, e o homem pode usar ambos […] O filósofo Aristóteles afirma que a caça de animais selvagens é não só justa como natural, pois desta maneira o homem estaria a exercer um direito natural. Segundo que é provado, pela ordem da divina providência que as coisas superiores sempre governam as inferiores. Deste modo, já que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, está em posição superior aos demais animais, que são governados, por direito, por ele.” São Tomás de Aquino em “A Summa Teológica”, Q.96, art. 1, p. 918.
[49] Talvez, a mais importante consequência da teoria do ancestral comum foi a mudança da posição do homem. Para teólogos e filósofos, o homem era uma criatura à parte da Natureza e dos outros seres vivos. A demonstração científica de que o homem evoluiu a partir de um primata o colocou novamente na árvore filogenética do reino animal.
[50] The History of the World, Part One. Tradução: “Nada melhor que ser o rei!”
[51] “Cruelties of Civilization”, extraído de “O Homem e o Mundo Natural”, Cia. Das Letras, 1996, p. 221.
[52] “Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo”, Martins Fontes, 1986, p. 9.
[53] Princípios de Direito Constitucional Brasileiro, Rio de Janeiro, Azevedo, 1932, vol. II, p. 55.
[54] No Império, a religião oficial era a Católica, tal como dispunha o art. 5º da Carta de 1824.
[55] As Constituições de 1891, 1934, 1937, 1946, de 1967 e sua Emenda n.º 1, de 1969, respectivamente estatuíram:
1891 – Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum (§ 3º do art. 72).
1934 – É inviolável a liberdade de consciência e de crença, e garantido o livre exercício dos cultos religiosos, desde que não contravenham à ordem pública e aos bons costumes (art. 119, § 5º).
1937 – Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum, as exigências da ordem pública e dos bons costumes (n.º 4 do art. 122).
1946 – É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo os dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil (§ 7º do art. 141).
1967 – (Com a redação da Emenda n.º 1/69) : É plena a liberdade de consciência e fica assegurado aos crentes o exercício dos cultos religiosos, que não contrariem a ordem pública e os bons costumes.”
(Extraído do artigo “A Inobservância do Princípio da Continuidade das Leis como Fator de sua Multiplicação – Um Exemplo”, por Cássia Maria Senna Ganem, na Revista de Informação Legislativa n.º 113/1992)
[56] “Curso de Direito Constitucional”, 2º vol., São Paulo, Saraiva, 1974, p. 503.
[57] “Constituição Anotada”, vol. II, Rio de Janeiro, José Konfino, 1957, p. 92.
[58] Artigo “A liberdade de culto no pleito de 15-11-86”, publicado na Revista de Informação Legislativa n.º 94 do ano de 1987, p. 253 a 262.
[59] No que se refere à obrigação alternativa, o art. 143 da CF/88, que dispõe sobre o serviço militar obrigatório, permite, em seu parágrafo primeiro, que, em tempos de paz, se possa alegar imperativo de consciência, entendendo como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para que se possa deixar de cumprir as atividades de caráter essencialmente militar.
[60] “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Editora Revista dos Tribunais, 6ª edição, 1990, p. 221.
[61] “Comentários à Constituição de 1967, tomo V, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 128.
[62] “Direito Ambiental Constitucional”, ed. Malheiros, 4ª edição, 2002, p. 194.
[63] A Constituição do Rio de Janeiro, em seu art. 258, § 1º, IV afirma que incumbe ao Poder Público “proteger e preservar a flora e a fauna, as espécies ameaçadas de extinção, as vulneráveis e raras, vedadas as práticas que submetam os animais à crueldade, por ação direta do homem sobre os mesmos”. A Constituição do Estado de São Paulo trata do tema no art. 193, X, no qual determina que o Poder Público deve “proteger a flora e a fauna, nesta compreendidos todos os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as práticas que coloquem em risco sua função ecológica e que provoquem extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade, fiscalizando a extração, produção, criação, métodos de abate, transporte, comercialização e consumo de seus espécimes e subprodutos.”
[64] “A Tutela Jurídica dos Animais”, ed. Mandamentos, Belo Horizonte, 2000, p. 103.
[65] “Art. 64. Tratar animal com crueldade ou submete-lo a trabalho excessivo:
Pena – prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa
- 1º. Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo.
- 2º. Aplica-se a pena com aumento da metade, se o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público.”
[66] O Código Penal trata de maus-tratos em seu art. 136.
O dicionário Aurélio assim define o verbo maltratar: “1. Tratar com violência; infligir maus-tratos a; bater em; espancar. Não se devem maltratar os animais; 2. Lesar fisicamente; mutilar; 3. Tratar com palavras rudes, tratar mal, receber mal; 4. Insultar , ultrajar, vexar; 5. Danificar, estragar, arruinar: As crianças maltratam qualquer objeto; 6. Bater, açoitar; 7. Causar danos ou prejuízos.”
[67] Exemplificando, no Estado do Rio de Janeiro há o Código Estadual de Proteção aos Animais, Lei n.º 3.900, de 29/07/2002; a Lei n.º 3.714, de 22/11/2001, que proíbe a participação de animais em espetáculos circenses no Estado, etc…
[68] “Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida:
Pena – detenção de seis meses a um ano, e multa.”
[69] “Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena – detenção de três meses a um ano, e multa.
- 1º. Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
- 2º. A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre a morte do animal.”
[70] Alguns julgados sustentam também a aplicação do crime de dano, previsto no art. 163 do Código Penal, aos casos de morte do animal sem a qualificadora dos maus-tratos. Vide RT 669/330.
[71] “Crimes Contra o Ambiente”, Editora Revista dos Tribunais, 2ª edição, 2001, p. 70.
[72] Extraído do livro “A Tutela Jurídica dos Animais”, ob. cit, p. 156.
[73] A farra do boi consiste na soltura e imediata perseguição do animal por populares que, para estimular a “brincadeira” açoitam, batem, mutilam e, por fim, matam o animal já cansado e completamente entregue. Segundo Edna Cardozo Dias, a prátca é altamente condenável, e não pode ser justificada por constituir manifestação cultural, visto que “um autêntico conceito de cultura é unicamente aquilo que eleva o homem acima do instinto e o leva a viver em harmonia com a ética, rejeitando do passado tudo que, atavicamente, o mantenha na brutalidade e grosseria”; ob. cit., p. 214.
[74] “Sermões”, Ed. Lello, vol. XII, p. 333.
[75]“Crueldade Contra Animais e a Proteção Destes Como Relevante Questão Jurídico-Ambiental e Constitucional”, Revista de Direito Ambiental, n.º 7, Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 65.
[76] BENTHAM, Jeremy. Introduction to the Principles of Moral and Legislation, , capítulo 18, seção I, nota, retirado de SINGER, Peter. Ética Prática. 2.ed. São Paulo, 1998, p. 66.
Texto publicado na Revista de Direito Constitucional e Internacional (São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, n. 51. pág. 295-318).