Luciano Cunha: por uma nova ética animal

Luciano Cunha: por uma nova ética animal

Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luciano Cunha é também coordenador geral das atividades da ONG Animal Ethics no Brasil e autor de “Uma breve introdução à ética animal – desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente” (Appris, 2021).

Como foi seu despertar para a necessidade de uma nova ética em relação aos animais não humanos?

Isto aconteceu em 2005, quando comecei a pensar que, talvez, não houvesse justificativa para consumir os animais, uma vez que implicava suas mortes. Na época, procurei artigos e livros que discutissem a questão. O que me fez realmente pensar que nossa atitude geral em relação aos animais não humanos deveria ser abandonada é que não há argumentos sólidos em defesa de tal atitude. Há vários tipos de defesas de que estaria justificado desconsiderar o bem dos animais não humanos ou dar-lhes uma consideração menor. Contudo, nenhuma delas parece realmente proceder. Por vezes, essas defesas apelam ao mero pertencimento à espécie humana. Contudo, são defesas circulares, pois se propõem a explicar o que haveria de especial em pertencer à espécie humana para questões de consideração moral, mas assumem, de antemão, que isso é importante. Além disso, o critério da espécie parece tão arbitrário quanto é o critério da raça. E o argumento em questão simplesmente assume que o critério da espécie é relevante, sem dar nenhuma explicação adicional do porquê seria. Outras vezes, apela-se a características que os animais não humanos careceriam, como capacidades cognitivas complexas ou terem relações especiais conosco. No entanto, um problema grave com esse tipo de defesa é que há humanos que carecem dessas capacidades e relações e, nem por isso, parece correto dar-lhes uma consideração menor, muito menos excluí-los totalmente da consideração moral. É o caso dos bebês, das crianças até certa idade e de vítimas de certos acidentes ou doenças que impedem o exercício de certas capacidades ou relações. No caso desses humanos, parece que a falta de certas capacidades ou relações é, ao contrário, uma razão para prestar-lhes um cuidado ainda maior, pois isto os torna mais vulneráveis e não para matá-los ou fazê-los sofrer, como se pretende no caso dos animais não humanos. Assim, se a falta de certas capacidades ou relações nesses humanos não pode justificar tratá-los pior, tampouco sua falta nos animais não humanos poderia justificar tratá-los pior, muito menos justificar o que se faz rotineiramente a eles, como, por exemplo, por exemplo, matá-los para consumo, para testes em laboratórios, para usá-los como vestimenta, etc..Há outro argumento que diz que o que é feito aos animais não humanos é justo porque é uma atitude natural. Esse argumento assume que, se uma atitude é natural, então é justa. Contudo, uma atitude ser natural significa apenas que ela é feita por mero impulso ou que cumpre uma função biológica. Mas, isso não mostra que tais práticas são justas. Por exemplo, se um estuprador engravida sua vítima, essa atitude foi natural, dada aquela definição, uma vez que foi feita para realizar um impulso e cumpriu uma função biológica. Mas, isso não parece tornar justa tal atitude. Pelo contrário, tal atitude é hedionda. Então, se o fato de uma atitude ser natural não mostra que ela é justa, boa, desejável ou sequer que é aceitável, mesmo que ficasse provado que o que se faz aos animais não humanos é uma atitude natural, ela continuaria sendo injusta. Existem outras defesas da atitude padrão em relação aos animais não humanos, mas, elas padecem de problemas similares. Refletir sobre esses argumentos foi o que me levou à conclusão de que não é possível justificar a atitude atual padrão em relação aos animais.

O que é senciência e por que razão devemos olhar os animais sob sua perspectiva?

A senciência é a capacidade de ter experiências, de ter uma perspectiva de primeira pessoa. É o que temos em comum eu, você e um peixe, por exemplo. E é o que nós três temos de diferente de um sapato, uma planta e uma pedra. É a senciência o que faz com que um organismo seja alguém e não meramente algo. Deveríamos nos basear no critério da senciência para saber a quem devemos respeitar não somente no caso dos animais não humanos, mas, em geral. A verdadeira razão pela qual é injusto desconsiderar o bem dos humanos não é porque os humanos possuem uma série de capacidades ou relações, mas, simplesmente porque são passíveis de serem prejudicados e beneficiados. O que torna alguém passível de ser prejudicado e beneficiado é ser capaz de experiências, uma vez que estas possuem valência (a propriedade de serem positivas ou negativas). Alguém é prejudicado se tem uma experiência negativa (dor, sofrimento) ou se é impedido de desfrutar de experiências positivas (como acontece quando alguém é morto, por exemplo) e é beneficiado quando tem experiências positivas (prazer, alegria) ou se é impedido de desfrutar de experiências negativas (quando tem uma dor aliviada, por exemplo). A razão que explica por que é injusto desconsiderar o bem dos humanos explica, ao mesmo tempo, que é injusto desconsiderar o bem de qualquer outro ser senciente, independentemente de espécie, pois são também prejudicados se não forem considerados. Assim, a senciência parece ser o critério adequado de consideração moral, não apenas no caso dos animais não humanos, mas para as questões éticas em geral.

Pode nos falar um pouco sobre o conceito de especismo e suas implicações no trato que o homem vem, historicamente, tendo em relação aos animais a que define por irracionais?

O especismo foi um conceito criado para fazer uma analogia com o racismo. Assim como o racismo é a discriminação (isto é, o tratamento desfavorável, injusto) contra quem não pertence a certas raças, o especismo é a discriminação contra quem não pertence à certas espécies. Diante dessa definição, alguém poderia perguntar: “como sabemos quando um tratamento desfavorável é injusto?”. Há pelo menos duas maneiras de responder. Uma é que um tratamento é injusto quando viola o princípio da igual consideração. Esse princípio afirma que não há justificativa para sermos tendenciosos em nossos julgamentos e o somos quando damos um peso distinto a níveis de prejuízos e benefícios similares. Por exemplo, se digo que um prejuízo de certa magnitude em um membro da raça A importa em certa medida, estou sendo tendencioso se digo que um prejuízo de magnitude similar de um membro da raça B importa menos. É isso que torna o racismo injusto. Porém, isso implica automaticamente que o especismo é tão injusto quanto o racismo. Além disso, esse princípio mostra que o especismo acontece não apenas quando o bem dos animais não humanos é totalmente desconsiderado, mas, também quando recebe um peso menor, diante de prejuízos e benefícios similares. Outra maneira de explicar quando um tratamento é injusto é com base no princípio da imparcialidade. Suponhamos que tivéssemos de escolher os princípios que as pessoas seguiriam no mundo, mas sem saber que posição ocuparíamos nele. Se houvesse a possibilidade de ocuparmos a posição que ocupam agora os animais não humanos, sendo torturados e mortos rotineiramente, não consideraríamos justo esse tratamento. Isso significa que o especismo só é defendido, porque sabemos que não seremos suas vítimas. Mas, isso mostra então que o especismo não passa no teste da imparcialidade e, portanto, não pode ser justo, uma vez que a imparcialidade é uma característica central da justiça. A situação da qual os animais não humanos padecem é o resultado de uma mentalidade especista. É o especismo que faz com que muitas pessoas considerem aceitável que os animais sejam explorados, o que normalmente resulta em serem prejudicados com uma vida de sofrimento intenso e também com a morte, que os priva de vários anos de desfrute. É também o especismo que faz com que haja uma completa negligência (e até mesmo uma oposição) a se prestar ajuda aos animais, quando são prejudicados por doenças, desastres naturais, sede e fome, por exemplo. Nesses casos, as pessoas normalmente dizem que “devemos deixar a natureza seguir o seu curso” e que “o que importa é o equilíbrio ecológico, a preservação das espécies e ecossistemas e não o bem dos indivíduos”. Contudo, pensam algo completamente diferente quando elas próprias ou outros humanos são as vítimas dos processos naturais. Isto mostra que essa atitude também é especista.

A questão econômica seria o cerne da naturalização da exploração animal?

A questão econômica certamente aumenta a quantidade de animais que sofrem e morrem. Se os humanos percebem que há uma maneira mais eficiente de alcançar determinada meta (no caso, maximizar os lucros) e não têm uma consideração moral por aqueles que seriam prejudicados por tais práticas (no caso, os animais não humanos), provavelmente farão isso, por pior que seja para as vítimas. Contudo, isso parece mostrar que, apesar de a questão econômica aumentar drasticamente a quantidade de animais explorados, o pilar no qual se apoia a exploração animal é o especismo. É o especismo que faz com que a exploração animal exista. Se houver especismo, os animais serão altamente prejudicados, independentemente de qual é o sistema econômico vigente. Se, por outro lado, abandonamos o especismo, rejeitaremos práticas que prejudicam os animais, mesmo que tais práticas possam maximizar o lucro.

Os problemas ambientais passam obrigatoriamente pela revisão da postura humana quanto aos animais não humanos?

Se rejeitarmos o especismo, teremos de olhar de maneira completamente diferente os problemas que são comumente chamados de ambientais. Por exemplo, comparemos estas duas situações: (1) animais selvagens morrendo com alguma doença (2) humanos morrendo com alguma doença. O primeiro caso é tipicamente classificado como um problema ambiental e o segundo não. Isto é assim porque, dada a prevalência do especismo, os animais selvagens são normalmente vistos como partes do ambiente, assim como são lagos, rochas e montanhas, por exemplo. Os humanos, por outro lado, são considerados enquanto indivíduos. Tal fato mostra que o respeito pelos animais enquanto indivíduos e o ambientalismo partem de fundamentos muito distintos. As posturas ambientalistas normalmente defendem que o que é importante é preservar as espécies e os ecossistemas. Por esta razão, normalmente aprovam a exploração animal, desde que seja feita de modo sustentável. Se rejeitarmos o especismo, consideraremos injustas essas práticas, assim como consideraríamos injusta uma política de matança de humanos, mesmo que feita de maneira sustentável. Se rejeitarmos o especismo, adotaremos metas muito distintas em relação às nossas intervenções no meio ambiente. Atualmente, as visões que prevalecem são o antropocentrismo e o ambientalismo. Na visão antropocêntrica, o meio ambiente deve ser deixado da maneira que mais beneficie os humanos, mesmo que isso seja altamente prejudicial aos animais não humanos. Na visão ambientalista, certos aspectos do meio ambiente devem ser mantidos, mesmo que isso seja pior para os animais que nele vivem. Por exemplo, os ambientalistas consideram como boa em si a presença de plantas e animais que são nativos de cada local, em oposição às espécies classificadas como exóticas ou invasoras. Por esta razão, vários programas de governo, ao redor do mundo, promovem matanças de animais membros de espécies classificadas como invasoras. Por exemplo, no sul da Europa, os patos-de-rabo-alçado americanos foram introduzidos há algumas décadas, por humanos. Esses patos entrecruzaram-se com os patos europeus. A única diferença entre esses patos é a cor da pelagem da cabeça. A cor da pelagem da cabeça dos patos americanos prevaleceu nos patos híbridos, algo que foi considerado pelos ambientalistas como uma ameaça à biodiversidade e ao equilíbrio ecológico, apesar da função ecológica, tanto dos patos europeus, quanto dos patos americanos e híbridos ser exatamente a mesma. Foi realizada, então, a chacina de todos os patos americanos e híbridos. Isto é defendido pelos ambientalistas não por acreditarem que o resultado é uma menor quantidade de mortes e sofrimento para os animais. Pelo contrário, defendem que a “pureza das espécies” é algo bom em si e que evitar a hibridização é mais importante do que não causar mortes e sofrimento para os animais. Por outro lado, se rejeitarmos o especismo e adotarmos uma ética centrada na senciência, nossa meta será deixar o meio ambiente da maneira que mais beneficie os animais afetados (por exemplo, de modo que haja menor quantidade de sofrimento e mortes ao longo do tempo), da mesma maneira que concluiríamos no caso de humanos. É por essa razão que algumas organizações como a Ética Animal, a Wild Animals Initiative e vários pesquisadores ao redor do mundo têm proposto a criação do campo da biologia do bem-estar. Esse campo de pesquisa reuniria conhecimentos das áreas de biologia, mais especificamente ecologia e zoologia, além de ciência veterinária e ciência do bem-estar animal e estudaria como os animais são tipicamente afetados em seus ambientes naturais do ponto de vista do que é melhor ou pior para eles, enquanto seres capazes de sofrer e desfrutar e não simplesmente como exemplares de espécies e componentes de ecossistemas, como é tipicamente o foco em pesquisas conservacionistas. O conhecimento proveniente da biologia do bem-estar poderia orientar as tomadas de decisões de maneira que os animais na natureza fossem ajudados, em vez de prejudicados, por nós.

Que rumo deveríamos seguir a favor da prevenção dos danos à natureza e aos animais?

O conceito de dano, como vimos, só se aplica a seres sencientes. Isto é assim porque, para alguém ser prejudicado, é necessário que haja, antes de tudo, alguém. O que faz com que um organismo seja alguém e não algo é justamente a senciência (isto é, a capacidade de ter experiências, de ter uma perspectiva de primeira pessoa). Assim, certamente que os animais são passíveis de serem prejudicados. Por outro lado, “natureza” é um conceito abstrato. Normalmente é utilizado em referência a tudo aquilo que não é resultado de ação humana (apesar dessa definição também ser problemática, pois situa os humanos fora do âmbito das coisas naturais). De qualquer modo, “a natureza” não é alguém; não há um ser que é a natureza que poderia ser prejudicado. Por outro lado, os animais selvagens que se encontram na natureza, sim, são normalmente prejudicados de muitas maneiras. São prejudicados por práticas humanas, direta e indiretamente, mas, ao contrário do que muita gente imagina, também são altamente prejudicados pelos próprios processos naturais, independentemente de ação humana e já o eram muito antes do surgimento da espécie humana. Desnutrição, fome e sede; doenças; lesões físicas; condições meteorológicas hostis; desastres naturais; conflitos interespecíficos, intraespecíficos e sexuais, além de estresse psicológico, infelizmente, são a norma na vida selvagem. Além disso, dado que a maioria das espécies de animais se reproduz maximizando a quantidade de filhotes (em ninhadas que vão desde centenas até vários milhões dependendo da espécie), a quantidade de animais que nasce é sempre gigantescamente maior do que a quantidade de animais que conseguem sobreviver. Por exemplo, em populações estáveis, a média é de apenas dois descendentes por ninhada. Isto mostra que a quantidade de sofrimento e de mortes prematuras para os animais selvagens é gigantesca. Algumas pessoas defendem que, em relação a essa situação, deveríamos simplesmente “deixar a natureza seguir o seu curso”, porque não fomos nós que causamos tais danos. Contudo, quando os humanos são as vítimas dos processos naturais, a atitude é oposta. Criamos hospitais, sistemas de vacinação, nos protegemos com roupas, moradias, etc. Assim, parece que é apenas devido à predominância do especismo que há uma atitude distinta quando os animais não humanos são as vítimas. Se realmente nos importarmos com os animais, não consideraremos relevante saber se aquilo que os prejudicou teve origem em nossas práticas ou em processos naturais. O que buscaremos é fazer com que sejam ajudados. Diante disso, parece que o único rumo adequado diante da situação dos animais na natureza é defender que deveriam ser pesquisadas maneiras de ajudá-los com segurança, de modo que o resultado seja melhor do que não ajudar. Como mencionei na resposta anterior, o conhecimento proveniente do campo da biologia do bem-estar poderia informar cientificamente esses projetos de ajuda. Aliás, curiosamente, os animais selvagens já vêm sendo ajudados há muitas décadas, ainda que por razões antropocêntricas ou ambientalistas. A vacinação contra a raiva e contra a peste bovina são exemplos. Os animais selvagens foram vacinados em massa contra essas doenças. Isto aconteceu principalmente por razões antropocêntricas, como prevenir o contágio em humanos ou devido ao interesse econômico que os humanos possuíam em explorar os animais que poderiam ser contaminados com essas doenças. Por vezes, acontece também por razões ambientalistas, como a preservação de uma espécie ameaçada de extinção. Por exemplo, pesquisas na Universidade de Helsinki, em 2018, descobriram que é possível vacinar uma colônia inteira de abelhas vacinando apenas a rainha, pois as novas abelhas nasceriam imunes. Apesar dessas motivações antropocêntricas e ambientalistas, inegavelmente os animais foram beneficiados e esses casos são suficientes para mostrar que é possível ajudar os animais. Obviamente, muito mais poderia ser feito para ajudar os animais selvagens, se houvesse uma preocupação com o próprio bem deles. Esta é mais uma razão pela qual é importante divulgar as razões para se rejeitar o especismo. Penso que esse é o rumo que deveríamos tomar em relação à situação dos animais selvagens.

A filosofia e a ciência têm falhado no debate sobre uma nova ética animal?

Acredito que, apesar de haver alguma resistência, esse debate tem ocorrido mais na filosofia e na ciência do que em outros ramos da sociedade. Entretanto, nessas áreas também há profissionais que defendem veementemente que nossa atitude atual perante os animais não humanos não deveria ser modificada. Contudo, isso é um sinal de que o debate vem acontecendo. E, felizmente, vem acontecendo em proporções cada vez maiores. A quantidade de artigos publicados sobre ética animal nos últimos 40 anos supera em quantidade tudo o que foi publicado sobre o tema em toda a história. Na ciência, também existem cada vez mais estudos demonstrando que a maior parte dos animais não humanos, incluindo invertebrados, são sencientes. Na área do direito, parece também ter havido um aumento considerável de discussões. A dificuldade maior parece ser fazer com que o debate alcance a sociedade como um todo. Por essa razão, é importante que as organizações e ativistas, individualmente, façam com que a discussão se torne acessível ao público em geral. A Ética Animal, por exemplo, é uma organização cujo site contém muitos artigos curtos, explicando tanto a parte ética quanto a parte científica sobre senciência, em uma linguagem bastante acessível e tem oferecido, gratuitamente, cursos abertos à comunidade, em parceria com várias universidades, como a Universidade Federal de Santa Catarina e a Universidade Federal de Uberlândia.

O veganismo é a saída para uma humanidade mais saudável e ética?

O veganismo certamente traz benefícios para a humanidade, mas, a razão central para se adotar o veganismo não tem a ver com os benefícios para a humanidade. A razão central é simplesmente que a exploração animal é injusta e, por isso, deveria ser abolida. Como vimos, os animais não humanos são prejudicados não apenas por práticas humanas, mas também por processos naturais (fome, sede, doenças, desastres naturais etc.). Assim, ainda que o veganismo seja muito importante para que haja menos animais sofrendo e morrendo, não resolveria tudo, ao contrário do que acreditam algumas pessoas. Ainda teríamos de pesquisar maneiras de ajudar os animais que vivem fora do controle humano. Ao contrário do que muitas pessoas acreditam, as vidas desses animais já são terrivelmente ruins, independentemente das práticas humanas e a quantidade desses animais é, por incrível que pareça, tão gigantesca que faz até mesmo os números da exploração animal, que são enormes, ficarem pequenos, se comparados. Em resumo, se rejeitamos o especismo, seremos veganos, mas, rejeitar o especismo vai além do veganismo. Se realmente nos preocupamos com os animais, vamos querer fazer algo para que eles não sejam prejudicados, independentemente de se o que os ameaça são práticas humanas ou processos naturais.

O quer dizer aos inimigos do veganismo que alegam terem os vegetais sentimentos e emoções parecidos aos dos animais, daí não haver diferença entre ingerir uns e outros?

Há um problema ético e um problema factual com esta afirmação. O problema ético é que, se isso fosse verdade, então a conclusão que se segue é que deveríamos pesquisar maneiras de diminuir o sofrimento e as mortes de ambos e não que está justificado matar ambos. Por exemplo, essas pessoas não diriam: “animais não humanos e humanos são sencientes, logo, está justificado matar humanos”. Além disso, o fato dessas pessoas não se preocuparem com as plantas parece mostrar que realmente não acreditam, de fato, no que estão a afirmar. Trata-se de uma mera racionalização para se sentirem confortáveis em continuar consumindo os animais. Por exemplo, ao se realizar uma cirurgia em um animal, dar anestesia antes, fará com que ele não sinta dor. Mas, ninguém acredita seriamente que, ao se cortar um vegetal, deveríamos dar anestesia nele antes.

Já o problema factual é que não há base científica para o que afirmam. Algumas pessoas pensam que sim, porque acreditam equivocadamente que comportamento é evidência suficiente para a senciência. Por exemplo, elas percebem que as plantas desempenham certos comportamentos, como realizar a fotossíntese, absorver nutrientes do solo, algumas abrem e fecham mediante estímulos ou mesmo crescem diante de certas frequências sonoras. Há, inclusive, um livro muito citado, “A vida secreta das plantas”, que descreve tais comportamentos. Contudo, nada disso implica que elas sejam sencientes. Isto é assim porque, para um organismo ser senciente, é preciso que ele esteja organizado de determinada maneira, de modo a criar as condições para o aparecimento da consciência. Para tanto, é necessário que o organismo possua um sistema nervoso e um órgão centralizador (como um cérebro ou gânglios, por exemplo). É esse órgão que cria as condições para o aparecimento da consciência. Seres que possuem um sistema nervoso com um órgão centralizador, caso se comportem de determina maneira, é uma evidência adicional de que são sencientes, pois a melhor maneira de explicar tal comportamento é partindo do pressuposto de que estão tentando evitar as experiências negativas e buscar as experiências positivas. Porém, em seres que não possuem um sistema nervoso (como é o caso das plantas) é possível que haja certos comportamentos, mas que são resultado de um mecanismo do tipo estímulo-resposta, sem experiência alguma. Isso é assim por conta do que se chama arco reflexo. Imaginemos, por exemplo, aquele exame da martelada no joelho para tirar carteira de motorista. Nesse caso, a informação que chega ao sistema nervoso percorre dois caminhos. Um deles, muito mais curto, vai para os músculos, o que resulta no movimento por reflexo. O outro, mais longo, vai para o cérebro, onde a informação é processada, dando origem à experiência. O ponto é: nos seres que não possuem sistema nervoso (como é o caso das plantas, bactérias, vírus, fungos e animais poríferos, como as esponjas) ou que possuem um sistema nervoso mas, sem nenhum órgão centralizador (como é o caso dos equinodermos e os cnidários), é possível que exibam certos comportamentos por reflexo, entretanto, sem a experiência, haja vista que, por não haver nenhum órgão centralizador, não seriam criadas as condições para o aparecimento da experiência. Seria uma mera resposta mecânica ao estímulo. Até o momento, ao que parece, todo ser senciente pertence ao reino animal. Contudo, é possível que no futuro esse cenário seja diferente. É possível que no futuro existam seres não orgânicos que possuam um aparato que desempenhe exatamente a mesma função que desempenha o cérebro. Algumas pessoas duvidam dessa possibilidade, mas, podemos imaginar um exemplo para ilustrá-la. Imaginemos um caso onde nossos neurônios fossem gradualmente substituídos por neurônios artificiais. Se nossa senciência não fosse desaparecendo à medida que os neurônios fossem substituídos, isto mostraria que é possível que seres não orgânicos, no futuro, sejam sencientes, desde que tenham uma estrutura organizada de modo a desempenhar a mesma função de um cérebro. Se há essa possibilidade, isto coloca uma questão ética importante, pois é muito possível que, se tais seres vierem a existir, seriam discriminados, torturados e mortos como hoje são os animais não humanos, devido a não serem orgânicos. É por essa razão que alguns autores têm se preocupado em combater não apenas o especismo, mas também o substratismo.

No ritmo em que caminha a humanidade, é possível algum prognóstico quanto à efetiva tomada de consciência sobre uma nova ética animal?

Não penso que seja possível um prognóstico, porque é algo que depende do quanto cada um de nós se esforça para divulgar os argumentos contra o especismo. Quanto mais divulgarmos, provavelmente mais rapidamente as atitudes diante dos animais não humanos mudarão. Isto parece mostrar, então, o quão importante é fazermos com que esses argumentos e informações cheguem para o maior número de pessoas possível. E mostra que nossa responsabilidade é muito grande. Algumas pessoas veem isso como um fardo. Mas, não precisamos ver as coisas necessariamente assim. Podemos ver como uma oportunidade única de fazermos com que haja menos sofrimento e mortes daqui para frente.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Por Angelo Mendes Corrêa e Itamar Santos

Fonte: Bom Dia Europa

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