Matar não educa
Até ontem, caçador de elefantes. Hoje, caçador de caçador de elefantes. Uma virada. Mas sem qualquer aprimoramento moral. O velho que antes matava paquidermes, agora se arma e arma os mais jovens para matar humanos iguais ao que ele foi até ontem, com o “brilho da conversão” nos olhos, o mesmo brilho com o qual, certamente, antes matava elefantes? Não houve transformação moral alguma nessa virada. Para haver qualquer transformação moral é preciso enfrentar em si mesmo a compulsão antes dirigida para o alvo vítima. Sem a ahimsa, o princípio que ordena deter, em primeiro e absoluto lugar, a violência em si mesmo, em sua mente, em suas palavras e em suas ações, não há transformação moral digna de elogios.
Quando um “até ontem caçador de elefantes” se converte pelo argumento de que “os elefantes são mais valiosos economicamente, vivos”, para o país que antes os caçava, do que mortos, sua mente não sofreu qualquer evolução, pois os elefantes continuam, nessa forma de raciocinar, a ser considerados objetos com os quais se pode fazer dinheiro. Antes ele fazia dinheiro com partes tiradas do corpo do elefante morto. Agora pensa que, vivos, os elefantes podem render mais para ele e seu país, do que desmanchados em podridão. E se amanhã houver um argumento econômico que prove que os elefantes são um entrave ao desenvolvimento do mesmo país? Onde estará o brilho nos olhos de um humano que só emite tal faísca quando vislumbra benefício material para si ou para sua gente?
O estatuto moral dos animais deve ser garantido sem qualquer atrelamento a argumentos econômicos. A fundamentação do argumento do valor da vida do animal não é o quanto pode ser valioso no mercado, é o quanto essa vida representa de fruição para o animal que a vive, não importa se o formato dele é de um jeito, ou de outro, porque a aparência externa de um animal não acresce nem diminui o espírito que veio aqui nesse planeta expressar. A configuração material que chamamos corpo é apenas um modo de trazer um certo tipo de espírito à vida. Nascer com o formato de um humano não é mérito pessoal. É apenas uma chance de poder tecer um espírito na liberdade que essa materialidade possibilita. Cada animal, em sua configuração específica, traz consigo a potencialidade dessa condição singular.
Quando o “até ontem caçador de elefantes e hoje caçador de caçadores de elefantes” para de apontar sua arma para os paquidermes e gira o cano em direção ao corpo de outro humano que ainda faz o que até ontem ele mesmo fazia com a maior naturalidade, ele apenas muda o alvo de sua mira assassina, não aprendeu nada da ahimsa, o princípio que ordena conter a violência, a um só tempo, em sua mente, em suas palavras e em suas ações. Tendo alcançado esse estado no próprio espírito, o ahimsa não requer que se pegue em armas. Requer que se mostre que é possível viver sem matar, explorar, torturar qualquer ser senciente. Ser a mudança que se quer ver no mundo, exigia Gandhi, aliás, filho de uma jainista seguidora do princípio ahimsa.
Matar não é a melhor forma de ensinar. Se alguém houvesse matado esse ex-caçador de elefantes, ontem, enquanto seu alvo era o corpo de um elefante, ele não teria aprendido coisa alguma em relação ao dever moral humano de “não matar”, ao dever de “defender a vida animal”. No verbo matar nada resta do aprender. Matar é acabar com o tempo do aprendizado. Matar é decompor o corpo do outro, desalojar seu espírito, justamente aquele que veio para se expressar e aprender a fazer isso sem destruir os corpos alheios. Aprender a fazer isso em meio aos outros, assim definia Aristóteles a natureza humana em sua singularidade política, que quer dizer, aprender a saber viver em meio aos outros sem matá-los para liberar espaço, pois o espaço que o espírito precisa é unicamente o da expressão singular que o marca, não é o espaço ocupado pelo outro no mesmo território (de terra demarcada).
Na decomposição do corpo do outro nada há que o espírito possa aprender, pois não há evolução alguma na podridão. A morte chama e clama por matéria em decomposição. Evolução é ligação. Matéria em decomposição é desligação, desmanche. Só podemos transformar nosso espírito, mantendo bem vivo nosso corpo e o disciplinando para não atender a impulsos de decomposição e matança, pois esses são desejos de desmanche, de des-ligar… seu próprio corpo, ou o dos outros. Decompondo-os, não lhes ensinamos nada. Não há pedagogia alguma na morte, nem na natural, nem na violenta, essa, tão temida, que vem pela mão de outro.
Morte é decomposição. Ela desmancha todos os corpos e organismos vivos. No desmanche da matéria nada que beire o espírito pode aprender coisa alguma. Separado dela, esse já não pode realizar ato algum de aprimoramento da virtude, do aprendizado de estar junto de, estar com, estar em meio aos muitos, aos outros, com suas formas e configurações específicas, irrepetíveis. Viver é dispor-se a permanecer enclausurado na matéria desenhada pelo próprio corpo, convivendo com bilhões de outros seres igualmente formatados, ainda que cada um desses bilhões de outros corpos tenha lá seu próprio e irrepetível espírito. A expressão dessa singularidade é o que dá genuíno valor à vida, seja lá em que formato ela veio aparecendo a nós.
Educar é formatar um segundo espaço para os movimentos que o indivíduo pode fazer ao deslocar-se e expressar-se em meio aos bilhões de outros indivíduos de iguais bilhões de outros formatos e configurações materiais. Matar é desmanchar esses corpos, impedir seus ensaios, atrofiar para sempre sua expressão, seja ela consciente, ou não. Por isso, a pena de morte é o ato mais antiético que se pode adotar, em relação aos humanos que não receberam educação, e em relação aos animais que nenhuma ação empreenderam para que fossem condenados à execução sumária.
Enquanto os verbos matar, caçar, aprisionar, apropriar-se de, possuir, explorar, continuarem a traduzir o cerne da nossa moralidade em relação a qualquer espécie de animal, estaremos na mais baixa frequência moral e espiritual da humanidade, porque impedimos com tais ações que o espírito de cada espécie, alvo individual da mira do matador, se apresente e se represente, pois destruímos a materialidade na qual ele veio se manifestar em sua singularidade.
Fonte: ANDA – Agência de Notícias de Direitos Animais
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