Ministério Público cobra prefeitura de Dom Pedrito (RS) por conta de alteração de lei que prevê abate de animais soltos

Ministério Público cobra prefeitura de Dom Pedrito (RS) por conta de alteração de lei que prevê abate de animais soltos

Após matéria veiculada da Qwerty sobre a alteração de um artigo de lei municipal que prevê o abate de animais soltos apreendidos, no prazo de três dias, com grande repercussão na comunidade local, o Ministério Público Estadual expediu um despacho/ofício para que a prefeitura de Dom Pedrito, o Comam – Conselho Municipal de Meio Ambiente e a Câmara de Vereadores prestem esclarecimentos no prazo de dez dias a contar de hoje (1º).

Nesta quarta-feira (30), a prefeitura já havia se manifestado afirmando que nos próximos dias deverá reunir os setores impactados pela nova legislação que atualiza as regras sobre recolhimento de animais de grande porte abandonados em vias públicas. Na nota consta que o prefeito Mario Augusto pretende avaliar a lei sob os mais diversos aspectos — como o sanitário, o de bem-estar animal e o de convivência urbana — e discutir a necessidade de alterações e adequações às melhores práticas.

Provocado por diferentes setores, com destaque para a ONG Coração Amigo, a promotoria de Justiça de Dom Pedrito, na pessoa da Drª Priscilla Ramineli Leite Pereira determinou que os envolvidos se manifestassem sobre o fato.

Entre as principais considerações, Drª Priscila menciona que “houve verdadeiro retrocesso em matéria de proteção ambiental e da fauna…”. Mais adiante, ela considera que o abate como forma prioritária de enfrentamento ao cenário de abandono destes animais está equivocado, e que a matéria já é disciplinada pela Constituição Federal, cabendo ao município respeitá-las e complementá-las no que diz respeito aos interesses e peculiaridades locais. A promotora lembra no documento que a lei municipal, na atual redação, contraria diversas legislações sobre o tema.

Veja na íntegra o documento

DESPACHO/OFÍCIO Notícia de Fato 01750.000.813/2022

Destinatários: Município de Dom Pedrito e Câmara de Vereadores de Dom Pedrito

Diligências: 01750.000.813/2022-0001 e 01750.000.813/2022-0002

Trata-se de Notícia de Fato registrada de ofício para apurar “nova redação de artigo no Código de Posturas no Município de Dom Pedrito, o qual prevê que os animais apreendidos sejam encaminhados para abate ou leilão”.

O expediente é instruído com reportagem veiculada no Portal Qwerty de Notícias com o seguinte título “Animais que forem apreendidos em Dom Pedrito serão abatidos ou leiloados depois de três dias”. E, no corpo da matéria, consta que o Município de Dom Pedrito teria enrijecido as regras para a população que descumpre a legislação que disciplina as questões relacionadas aos animais soltos em via pública, estabelecendo que uma empresa terceirizada será contratada para recolher os animais e, quando transcorridos três dias sem procura pelos proprietários ou sem apresentação de defesa, os animais serão encaminhados para abate ou leilão, salientando-se que os animais a serem encaminhados para abate serão levados à inspetoria veterinária de Hulha Negra.

No corpo da reportagem, ainda, consta a atual redação do artigo 322 da Lei n.º 2.715, de 23 de novembro de 2022, nesses termos:

“Os semoventes domesticáveis de produção apreendidos que não forem procurados e/ou seus donos não apresentarem defesa por escrito dentro de (03) três dias úteis, que não tiverem procedência comprovada, e/ou não estiverem de acordo com as exigências vigentes serão destinados, preferencialmente para abate sanitário ou, na impossibilidade, para leilão, sem que o suposto proprietário assista direito a qualquer indenização”.

Anote-se que a referida lei ou o Código de Posturas do Município não foi encontrada em sua versão atualizada no site Leis Municipais ou no sítio da Prefeitura Municipal de Dom Pedrito/RS, o que justifica apenas a análise do dispositivo.

Pois bem, antes, em 12/05/2022, o Código de Posturas do Município havia sido alterado pela Lei n.º 2.645/2022, quando estabelecido o seguinte a respeito do recolhimento, abate e leilão de animais:

Art. 322. Os semoventes domesticáveis de produção apreendidos que não forem procurados dentro de 10 dias, que não tiverem procedência comprovada, e/ou não estiverem em acordo com as exigências sanitárias vigentes serão destinados a leilão e/ou abate sanitário, sem que o suposto proprietário assista direito a qualquer indenização.

§ 1º Em caso de ocorrer leilão e/ou abate sanitário este deverá respeitar os seguintes critérios:

I – O leilão somente ocorrerá após a Secretaria Estadual de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural, através da Inspetoria Veterinária do município autorizar a atividade avaliando as condições sanitárias mínimas para a comercialização dos semoventes.

II – Os compradores dos animais leiloados ficarão com a responsabilidade – inclusive de custeio de realizar os exames sanitários obrigatórios para trânsito dos animais e solicitar a Secretaria Estadual de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural a emissão de Guia de Trânsito Animal respeitando a legislação Estadual vigente.

III – Caso os fiscais da Secretaria Estadual de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural entendam que os animais não apresentem as condições sanitárias para venda deverão ser encaminhados a abate sanitário, conforme disposição legal do referido órgão.

§ 2º Ocorrendo Leilão dos semoventes domesticáveis de produção e existindo conveniado, este não poderá perceber mais do que 35% do valor bruto arrecadado.

Logo, em comparativo, observa-se que houve verdadeiro retrocesso em matéria de proteção ambiental e da fauna: a alteração ocorreu quanto à redução do prazo para eventual procura dos animais, fixando-se 03 dias úteis para tais providências, sob pena de encaminhamento para leilão ou abate, sendo, atualmente, priorizado o abate.

Com efeito, dito isso, o que se extrai do dispositivo hoje vigente, datado de 23 /11/2022, é que:

1. os proprietários têm o prazo de até 03 dias úteis para procurar por seus animais ou para apresentarem defesa escrita;

2. os animais sem procedência comprovada serão encaminhados para o abate sanitário ou, na impossibilidade, para leilão;

3. os animais que não estiverem de acordo com as exigências vigentes serão encaminhados para o abate sanitário ou, na impossibilidade, para leilão;

4. o proprietário, nas hipóteses de abate ou leilão, não terá direito ao pagamento de indenização

Sabe-se da possibilidade de animais serem encaminhados ao abate. No entanto, esta deve ocorrer nas estritas hipóteses legais, devendo ocorrer como última alterativa em situações extremas, o que atualmente não se verifica pela legislação atual, a qual prevê, inclusive, o abate de forma prioritária ao leilão, a ser realizado até mesmo quando não houver procedência comprovada, não limitando tal possibilidade às indicações sanitárias para a medida extrema.

Em verdade, o que se extrai do artigo é que todo animal domesticável de produção, encontrado solto em via pública, sem procedência comprovada (ou seja, sem suposto proprietário comprovado), será encaminhado ao abate, o que não é permitido pela legislação federal e estadual que regula a matéria, pois o correto seria permitir o abatimento de animais exclusivamente quando o animal puder ser nocivo à saúde pública, constatada a contaminação por doenças ou pragas infecto-contagiosas, e não a eliminação de animal apreendido em qualquer situação.

Melhor esclarecendo, até mesmo o parágrafo 2º do artigo 322 da Lei n.º 2.645 /2022, que alterou o Código de Postura em 12/05/2022, cuja redação atual não é conhecida (dada a recente modificação do caput do artigo 322), previu que os animais serão encaminhados ao abate acaso os fiscais da Secretaria Estadual de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural entendam que não apresentem condições sanitárias para venda.

Com efeito, o art. 24 , inciso VI da Constituição Federal estabelece que é competência concorrente da União, Estados e Municípios legislar sobre fauna e proteção do meio ambiente. Ocorre, todavia, que as normas gerais devem ser editadas pela União, cabendo ao município respeitá-las e complementá-las no que diz respeito aos interesses e peculiaridades locais.

Assim, jamais poderá a lei municipal criar hipóteses de abate animal em desconformidade com a legislação da União.

Com efeito, o art. 37 da Lei 9605/1998 assim dispõe:

Art. 37. Não é crime o abate de animal, quando realizado:

I – em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família;

II – para proteger lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de animais, desde que legal e expressamente autorizado pela autoridade competente;

III – (VETADO)

IV – por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo órgão competente.

E, a Lei Estadual n.º 13.467/2017, em seu artigo 12, §3º estabelece que os animais somente serão encaminhados ao abate quando não sanadas as irregularidades que ensejaram a apreensão, a saber, irregularidades estas relacionadas.

Artigo 12, §3º – O proprietário que tiver animal apreendido terá o prazo de 3 (três) dias úteis para apresentar defesa por escrito. Após sanadas as irregularidades que ensejaram a apreensão, o animal poderá ser devolvido ao proprietário, salvo se existente risco zoossanitário. Não sanadas as irregularidades, os animais serão destinados a abate e os produtos do mesmo poderão ser destinados aos órgãos, conforme dispõe a Lei n.º 12.380/2005 e legislação correlata, sejam fundos públicos ou público-privados, ou doados às instituições filantrópicas e de assistência social.

Logo, em razão de tais incongruências, bem como tendo em vista que a Lei n.º 2.715, de 23 de novembro de 2022, não está disponível ao acesso público, pertinente colher esclarecimentos junto ao Município de Dom Pedrito e Câmara de Vereadores, inclusive para que informem e esclareçam em quais condições e de que forma é realizado o abate de animais, se de forma prioritária ou subsidiária, e, principalmente, quais as situações que permitem a medida drástica.

Aliás, tais esclarecimentos guardam pertinência, entre outras justificativas, porque o Supremo Tribunal Federal proibiu, em dezembro de 2021 (https://www.conjur. com.br/dl/adpf-640-voto-relator.pdf), o abate de animais em situação de maus tratos, o que, pela redação atual do artigo 322 da Lei Municipal n.º 2.715/2022, é permitido em Dom Pedrito.

A esse respeito, cabe pontuar que, doutrinariamente falando, muito embora o bem jurídico tutelado pela lei dos crimes ambientais seja o meio ambiente equilibrado, considerado direito fundamental de 3ª geração, e portanto se afirme tradicionalmente que a vítima de tais crimes seja a coletividade, fato é que cada vez mais as legislações ao redor do mundo avançam para reconhecer que os animais não devem mais ter natureza jurídica de meras “coisas”, mas sim de seres sencientes, ou seja, capazes de sentir sensações e sentimentos de forma consciente.

Na Argentina, desde 2014, os animais já são inclusive considerados como sujeitos de direitos. Já na Bélgica, por sua vez, o Parlamento de Bruxelas votou por unanimidade para reconhecer os animais como uma categoria especial. Em fevereiro de 2019, a França passou a adotar uma lei do governo britânico e permitiu que cães e gatos tenham direitos de seres vivos.

No Brasil, por sua vez, na cidade de São Paulo, entrou em vigor a Lei n° 16930 /2019, que permite o translado de animais domésticos de pequeno porte nos transportes coletivos. Na mesma senda, há uma série de decisões paradigmáticas do Superior Tribunal de Justiça, como por exemplo no REsp 1.713.167, em que se permite fixar regime de visitação de animais em caso de separação/divórcio. Não só, o artigo 25 da Lei n.º 9.605/1998, em seu parágrafo 1º, ao tratar da apreensão de produto e da instrução de infração, administrativa ou criminal, estabelece, com clareza que os animais devem ser guardados e cuidados com zelo e responsabilidade:

Art. 25. Verificada a infração, serão apreendidos seus produtos e instrumentos, lavrando-se os respectivos autos. (Vide ADPF 640)

§ 1o Os animais serão prioritariamente libertados em seu habitat ou, sendo tal medida inviável ou não recomendável por questões sanitárias, entregues a jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas, para guarda e cuidados sob a responsabilidade de técnicos habilitados. (Redação dada pela Lei nº 13.052, de 2014)

§ 2o Até que os animais sejam entregues às instituições mencionadas no § 1o deste artigo, o órgão autuante zelará para que eles sejam mantidos em condições adequadas de acondicionamento e transporte que garantam o seu bem-estar físico. (Redação dada pela Lei nº 13.052, de 2014) (Vide ADPF 640).

Assim sendo, há de ser considerado que os animais devem ser tratados com cautela e respeito, não sendo pertinente determinar como medida inicial e prioritária, o abate imediato de semovente domesticável de produção tão logo apreendido, sem uma prévia análise sobre a possibilidade de leilão ou outras alternativas, como as elencadas no dispositivo acima citado.

Em suma, não se pode jamais permitir uma matança em massa de animais pelo Município por simplesmente terem sido abandonados.

Ademais, a sistemática de remeter os animais para abate de forma prioritária em outro município inclusive pode inclusive servir de grande ônus financeiro ao Município.

Diante de tudo isso, determino sejam expedidos ofícios ao Município de Dom Pedrito, ao Conselho Municipal do Meio Ambiente e à Câmara de Vereadores para que, no prazo de 10 dias:

A) prestem esclarecimentos sobre a situação acima referida;

B) esclareçam em quais situações é autorizado o abate de animal domesticável de produção apreendido, indicando se a medida é imediata ou depende de prévia avaliação da Secretaria de Agricultura e Pecuniária e se outras medidas são previamente analisadas, como o leilão do animal e outras informações pertinentes, devendo informar ainda, quantos animais foram abatidos no ano de 2022 nestas circunstâncias, com a respectiva documentação que comprove os motivos do abate;

C) encaminhem a Lei n.º 2.715, de 23 de novembro de 2022 e o Código de Posturas do Município atualizado, devendo inclusive publicá-lo nos sites oficiais

D) encaminhem contrato com a empresa que faz a apreensão e transporte de animais.

Serve o presente como ofício.

Dom Pedrito, 01 de dezembro de 2022.

Priscilla Ramineli Leite Pereira,
Promotora de Justiça.

Fonte: Qwerty

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