Na Espanha, os santuários dão lares permanentes aos animais de fazenda resgatados

Na Espanha, os santuários dão lares permanentes aos animais de fazenda resgatados
Carla Heras, voluntária do Santuario Gaia em Camprodon, Espanha, embala o pato Laietana. Laietana é um dos 1.500 animais, a maioria deles resgatados das ruas e da indústria agropecuária, que vivem no santuário. Gaia é um dos santuários na Espanha que abrigam animais que antes eram criados para alimentação.

Quando Elena Tova resgatou por impulso um porco doente há quase 15 anos, ela nunca tinha ouvido falar do conceito de um santuário animal. “Não existiam santuários na Espanha. A palavra não existia”, diz ela, e explica que só tinha ouvido “santuário” ser usada em um contexto religioso.

Tova encontrou o porquinho, a quem ela mais tarde chamou de Benito, em uma fazenda nos arredores de Madrid que ela visitava como um lugar para construir um abrigo para cães e gatos resgatados. Todos os porcos da fazenda foram enviados para abate no dia anterior, exceto Benito, porque ele estava com uma infecção e não era adequado para consumo humano. Os proprietários estavam prestes a matá-lo. Tova os convenceu a darem o porco para ela.

Ela procurou por abrigos para acolher Benito. Não existia nenhum. “Percebemos que não poderíamos levá-lo a lugar nenhum, então este foi o início do santuário”, diz Tova. A Fundación El Hogar, fundada em 2007, tornou-se o primeiro santuário para animais de fazenda na Espanha.

Gary, um ovino Awassi artrítico que mora na Fundación El Hogar em L’Esquirol, Espanha, recebe medicamentos e massagens duas vezes ao dia na coluna para estimular a circulação. Ele foi entregue ao santuário quando era um bebê desnutrido há cerca de oito anos, vindo de uma fazenda de gado leiteiro, onde filhotes machos são normalmente mortos por não produzirem leite.

Tova continuou a resgatar cachorros e gatos, mas as pessoas também começaram a trazer galos, galinhas, ovelhas e porcos. Muitas pessoas que trabalhavam com ela foram embora, e disseram que resgatar animais de fazenda era perda de dinheiro. “Não era o que elas queriam. Elas queriam continuar a resgatar cães e gatos”, diz ela. “Para mim, todo animal tem o direito de ser resgatado.”

Quatro anos depois, abriu-se outro santuário, e mais outros depois disso. Agora, existem entre 30 e 40 santuários em toda a Espanha, estima Tova, que fornecem lares permanentes para animais de criação abandonados ou entregues aos locais, como Benito, e que são ajudados por seguidores entusiastas nas redes sociais.

Esforços populares, como o de Tova, têm mudado a forma como as pessoas pensam sobre como os animais criados para uso humano são tratados, diz Valerie Taylor, diretora executiva da Global Federation of Animal Sanctuaries (GFAS), com sede nos Estados Unidos, que credencia santuários sem fins lucrativos em todo o mundo que aderem a práticas éticas, incluindo proibições de reprodução e comércio de animais.

Olivia Gómez trata com eletroterapia uma porca chamada Paola. O Santuario Gaia resgatou Paola em novembro de 2019, depois que ela foi abandonada do lado de fora de uma fazenda quando outros porcos foram levados para um matadouro: ela tinha uma vértebra quebrada e não conseguia andar para o caminhão de transporte. Os veterinários de Gaia trabalharam para curar sua coluna, e agora ela pode se levantar e dar alguns passos.

“Houve uma grande mudança no acolhimento de animais, e é revigorante ver isso ser estendido a espécies [de fazenda], cujo sofrimento é intencionalmente escondido da vista do público.”

Milhões de animais de criação – como a Espanha se compara

A Espanha é um dos maiores produtores de carne suína do mundo. Em 2019, 53 milhões de suínos foram abatidos para carne no país. Os defensores do bem-estar animal criticam as práticas comuns da indústria, como o uso prolongado de baias de gestação que confinam os porcos em espaços apertados e a separação prematura dos bebês das mães. Uma investigação secreta de 2020 por Tras Los Muros, um projeto de fotografia investigativa, documentou em 30 fazendas de suínos na Espanha vários porcos com infecções graves e não tratadas.

A Espanha também é um grande produtor de carne de coelho, com 48 milhões de coelhos abatidos em 2016. Aqui também, ativistas documentaram tratamento desumano. Uma investigação secreta em 72 fazendas de coelhos realizada em 2014 pelo grupo espanhol de direitos dos animais Animal Equality documentou coelhos vivos jogados em latas de lixo, coelhos em gaiolas com feridas não tratadas e canibalismo entre coelhos que viviam sob confinamento sem espaço suficiente.

A organização sem fins lucrativos de bem-estar animal Would Animal Protection, que avalia as leis de bem-estar animal de todos os países, classificou a Espanha como D (em uma escala de A a G) em sua proteção de animais de criação, e citou o uso contínuo de baias de confinamento e a falta de exigência para que os animais sejam atordoados antes do abate, entre outras preocupações. (França, Itália, Reino Unido e Alemanha também obtiveram um D e os EUA obtiveram um E.)

Lucho Galan, porta-voz da Interporc, grupo comercial que representa a suinocultura espanhola, afirma por e-mail que “a Espanha é uma referência mundial em bem-estar animal”, e que a Interporc incentiva fortemente os fazendeiros a proporcionarem uma ótima qualidade de vida aos animais.

“Por sua vez, esses chamados santuários nos parecem uma opção legítima, mas o mesmo respeito que os fazendeiros dão [aos santuários] é o que esperamos deles para a nossa atividade”, afirma. Muitos na comunidade de resgate destacam a importância de desenvolver um bom relacionamento com os fazendeiros, para facilitar os resgates e manter um diálogo aberto sobre o tratamento dos animais.

“Os santuários são a única oportunidade que temos de ver esses tipos de animais em um ambiente diferente, a única maneira de aprendermos sobre e realmente nos conectarmos com esses animais fora da indústria [agropecuária]”, diz Abigail Geer, fundadora do santuário Mino Valley Farm Animal Sanctuary, na Galiza, uma área rural no noroeste da Espanha.

Patri, um peru do El Hogar, repousa em um berço, cercado por travesseiros e almofadas para gravidez para prevenir escaras devido à pressão. Originalmente resgatado de uma lixeira do lado de fora de uma fazenda de perus, ele tem um distúrbio incurável nas articulações que o impede de andar. Ele também passa o tempo pendurado em um balanço feito sob medida, para que possa esticar as pernas.

Geer, nascida no Reino Unido, fundou o santuário com o marido em 2012. Foi o primeiro na região da Galiza. Tudo começou espontaneamente: os Geers mencionaram aos amigos que eles desejavam começar um santuário um dia, e alguém trouxe para eles uma ovelha, incapaz de andar, que havia sido abandonada na encosta de uma montanha. Localizado em 20 hectares de prados e bosques, o santuário agora abriga mais de 300 animais, a maioria é de resgatados da indústria agropecuária.

Muitos animais em Mino Valley e El Hogar têm necessidades especiais. Como as leis proíbem os animais doentes de serem fornecidos para a indústria de alimentos, eles – junto com os animais deficientes e feridos – são frequentemente encontrados abandonados ou são entregues, diz Geer.

Quase todo animal de santuário tem uma história de origem angustiante. Lá está River, um porco encontrado próximo às margens de um rio com quatro patas fraturadas. Um ciclista o encontrou e contatou El Hogar. Agora, River está curado e prosperando. O Mino Valley é o lar de 16 coelhos que foram deixados para morrer em um incêndio em um celeiro de uma fazenda de carne em 2019. Agora eles vivem em cercados espaçosos e cheios de feno.

Obstáculos e esperança

Para cada animal resgatado, milhares morrem sozinhos. “Esses fatos vivem com você e o perseguem”, diz Geer, que luta contra a insônia, a culpa e a depressão. Mas com o tempo, ela diz que se tornou melhor em controlar esses sentimentos. “Isso não significa que eu não sofra quando os animais morrem, mas definitivamente melhorei. Tenho que continuar fazendo isso sem ficar completamente esgotada.”

“As pessoas nos santuários são muito fortes, mas também muito sensíveis”, diz Tova. “Há muitos altos e baixos e, no longo prazo, depois de muitos anos, nem todo mundo aguenta.” Ela e outros proprietários do santuário dizem que são os animais do santuário, a quem todos se referem como sua família, que lhes dão força.

Neo, um pitbull de El Hogar, foi encontrado doente e paralisado em alguns arbustos em 2016. Embora ele ainda não sinta nada da cintura para baixo, cuidados de saúde intensivos e fisioterapia fizeram com que agora ele possa correr facilmente com as patas dianteiras, e explore os 60 acres de terra de El Hogar.

As pessoas na comunidade de resgate compartilham uma linguagem e credo universais. A maioria dos proprietários de santuários são veganos e tendem a se referir aos animais como alguém e evitar o uso de pronomes quando o sexo de um animal é desconhecido. Ismael Lopez fundou a Fundación Santuario Gaia nos arredores de Barcelona em 2012. Ele diz que percebeu o início de uma mudança na forma como as pessoas na Espanha pensam sobre os animais. “As pessoas têm evoluído mais rápido do que a política”, diz ele.

Essas mudanças se refletem nas redes sociais e se traduzem em benefícios tangíveis. A fundação Gaia agora é o lar de 1.500 animais e tem mais de um milhão de seguidores no Facebook. “Sem as redes sociais, esse crescimento não seria possível”, diz Lopez.

El Hogar e Mino Valley também têm seguidores dedicados no Instagram e no Facebook, da Espanha e de todo o mundo. Os santuários compartilham histórias de resgate em tempo real, e arrecadam dinheiro para casos individuais. Outros têm opções de contribuição mensal por meio de sites como o Patreon. Todos os santuários contam com doações do público.

Enquanto as mudanças ocorrem em um nível básico, os proprietários de santuários dizem que ainda enfrentam obstáculos estruturais. Se um caminhão cheio de porcos bate a caminho de um matadouro, por exemplo, é ilegal resgatar os animais sem a permissão do proprietário.

Neo, um pitbull de El Hogar, foi encontrado doente e paralisado em alguns arbustos em 2016. Embora ele ainda não sinta nada da cintura para baixo, cuidados de saúde intensivos e fisioterapia fizeram com que agora ele possa correr facilmente com as patas dianteiras, e explore os 60 acres de terra de El Hogar. Fotos: Ana Palacios

“Eles não são vítimas, são propriedade”, diz Tova, explicando que os proprietários podem solicitar o dinheiro do seguro para animais que morrem em um acidente de trânsito. Por causa dos regulamentos sobre transporte e saúde animal, resgatar animais também requer papelada e aprovação do governo, o que muitas vezes pode levar até duas semanas, diz Lopez, tempo que um animal doente ou ferido pode não ter.

Até mesmo encontrar bom atendimento veterinário para os animais do santuário pode ser um desafio, dizem Geer, Tova e Lopez. Frequentemente, eles resgatam animais que precisam de cuidados de saúde complexos. Mas, para os veterinários, especialmente em áreas rurais e agrícolas, diz Geer, muitas vezes é “a primeira vez que eles veem esses problemas nesses animais e a primeira vez que as pessoas pedem ajuda com esses problemas”.

No entanto, nos últimos anos, os estudantes de veterinária começaram cada vez mais a se integrar aos santuários. O Santuario Gaia já recebeu vários estudantes de veterinária por meses a fio, diz Lopez.

O verdadeiro poder dos santuários de animais de fazenda “está nas conexões que podem promover entre humanos e animais individuais”, diz Taylor da GFAS, especialmente quando as pessoas podem seguir a evolução de um animal resgatado.

Laro, um bezerro de 20 meses, foi mantido amarrado por uma corrente curta em um galpão na Cantábria, no norte da Espanha. Deixado em pé em suas próprias fezes, ele só conseguia se deitar e se levantar; ele nunca pôde andar pelo local. Angela Gómez, que morava na região, o ouviu gritar quando ele tinha alguns meses e, por mais de um ano, ela foi visitá-lo todas as semanas, acariciando-o através de uma ripa do galpão. Seu dono planejava mantê-lo até os três anos de idade e depois abatê-lo pela carne, diz ela.

Gómez acabou por persuadir o fazendeiro a entregar Laro em agosto passado, quando ele tinha 14 meses. Mino Valley publicou sobre seu caso no Instagram e arrecadou 1.100 euros em um dia para cobrir seu transporte pelo país até o santuário.

Vídeos dos últimos sete meses mostram sua nova vida, a começar com seus primeiros passos vacilantes após chegar a Mino Valley. “Ele estava com medo até de andar”, diz Geer. Outro vídeo o documenta a olhar para as folhas farfalhantes. Em outro, sua primeira nevasca.

Esta semana, o santuário publicou um vídeo dele correndo, pulando e rodando pela floresta.

“Às vezes”, diz Geer, “eu choro sinceramente quando olho para eles, de felicidade.”

Por  Natasha Daly / Tradução de Ana Carolina Figueiredo

Fonte: National Geographic

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