O homem que arriscou a vida contra o ISIS para salvar os animais do zoo

As pessoas sempre disseram que Abu Laith parecia um leão. Era baixo e tinha uma grande barriga, cabelo claro e arruivado, e uma voz que parecia um felino enorme a rugir. Além disso, nascido com o nome Imad, era conhecido por Abu Laith — que significa literalmente “pai de leões”.
Este homem, natural de Mossul, a terceira maior cidade do Iraque, adorava animais desde que se lembrava e era um verdadeiro fã do canal National Geographic. Tinha cuidado de cães, gatos, pássaros, coelhos e até de insetos ao longo dos anos, mesmo que os seus pais não gostassem muito da ideia.
Pai de 13 filhos, Abu Laith começou a ajudar nos trabalhos no zoo de Mossul em 2013. Tinha reparado que muitos dos animais estavam subnutridos e viviam em más condições por alguma negligência do dono, Ibrahim, um homem bem relacionado e com dinheiro.
Com a aprovação de Ibrahim, Abu Laith começou a cuidar dos animais depois do trabalho, para limpar as jaulas, alimentá-los e ver vídeos da National Geographic no YouTube para perceber como poderia melhorar a qualidade de vida das várias espécies. Afeiçoou-se particularmente a um leão bebé a que deu o nome de Zombie.
Trabalhava no zoo sem receber nada em troca, mas o seu objetivo era adquirir conhecimentos para um dia, mais tarde, abrir o próprio jardim zoológico. Até tinha já feito alguns contactos com investidores, mas tudo mudou de repente. O seu futuro parceiro de negócios foi assassinado e Abu Laith foi erradamente acusado do crime — por isso, passou quatro meses preso antes de ser absolvido.
O homicídio coincidiu com a invasão do ISIS (também conhecido como Estado Islâmico) a Mossul, o que fez com que a cidade se tornasse num dos principais bastiões desta organização terrorista que pretendia instalar um enorme Califado por todo o Médio Oriente, norte de África e sul da Europa.
Abu Laith, um otimista por natureza, não gostou do facto de ter de obedecer às leis e regras ultra conservadoras e restritivas do ISIS — mas teve de o fazer, apesar de nem ser um homem muito religioso. No entanto, os problemas intensificaram-se ao longo dos meses que se seguiram.
Além das execuções públicas e do ambiente de terror, a escassez de comida tornou-se vulgar, não era apropriado que a sua mulher saísse de casa sozinha, e com 13 crianças para alimentar (e outra a caminho, porque a sua mulher estava grávida) tudo se tornou bastante difícil. Em cima destas preocupações, Abu Laith tinha a cabeça ocupada pelos animais do zoo, já que quase não havia comida apropriada para eles. Dava azeitonas aos macacos, algo de que eles gostavam, mas os leões não apreciavam arroz.
Com a ajuda dos filhos, começou a pedir a vizinhos e conhecidos para que contribuíssem com pequenas quantidades de comida para alimentar os animais. A própria família de Abu abdicou de algumas refeições para conseguir ajudar aqueles animais.
Apesar das boas intenções, a situação tornou-se desesperante. O pequeno Zombie e os pais estavam tão esfomeados que, num certo dia, a mãe leoa conseguiu sair da jaula para entrar na dos ursos, atacando uma pequena cria e comendo-lhe um braço.
Outro problema surgiu na vida de Abu Laith, que passou a ficar permanentemente fechado em casa. Tinha sido apanhado a beber whiskey por um membro do ISIS, o que é uma prática proibida no Corão, e não comparecia na mesquita — por isso teve que se esconder no sótão para não ser executado. Pagou um pequeno salário a um amigo para cuidar dos animais do zoo, mas ninguém lhe dava tanta importância quanto ele.
Naquele cenário horrível, Abu terá ficado escondido durante quase dois anos. Só saiu duas vezes para ir à rua: para assistir ao nascimento do seu 14.º filho e para ir numa ocasião ao jardim zoológico. Só no verão de 2017, quando o exército iraquiano recuperou o controlo de Mossul e expulsou o ISIS da região, é que Abu Laith pôde sair livremente. Porém, ficou devastado ao ver quais tinham sido os efeitos causados aos animais que adorava.
As jaulas estavam mais nojentas do que nunca. Alguns dos animais tinham fugido, outros tinham morrido à fome, de forma lenta e agonizante. Zombie e os pais ainda estavam vivos, assim como a mãe urso, a que chamou Lula. Alguns meses depois, com pouca comida e a cidade arruinada, uma ajuda inesperada chegou através do Facebook.
Um veterinário egípcio, que trabalhava com associações internacionais, chamado Amir Khalil, viu uma foto na rede social que fez com que tivesse de agir. Alguém tinha publicado uma imagem de um urso prestes a morrer ao lado de um leão no mesmo estado. “É assim que os animais estão a viver no zoo de Mossul… Será que alguém pode ajudar?”
Khalil viajou de imediato para o Iraque e ficou chocado com o que encontrou: um zoo coberto de fezes e urina, e de caixas de explosivos usados pelo exército. “Você é um médico?”, perguntou logo Abu Laith, quando viu Khalil. Laith levou o egípcio até Zombie que, na altura, era apenas um dos dois animais que tinham sobrevivido. O outro era a ursa Lula. A mãe de Zombie tinha matado o seu pai para o comer, e depois ela própria também tinha morrido.

Abu Laith e Amir Khalil uniram esforços e decidiram que queriam dar uma vida decente àqueles dois animais, algo que tinha de acontecer fora de Mossul. Khalil ia transportá-los para fora do Iraque e contactar locais que os pudessem receber. Até o conseguir fazer, Abu Laith ia alimentá-los e administrar medicamentos, com a ajuda de Khalil e da sua associação.
Khalil contactou Ibrahim, o dono do zoo, porque precisava dos papéis certos para os conseguir transportar — mas Ibrahim exigiu uma enorme quantia de dinheiro, apesar de aqueles animais estarem praticamente mortos. Houve vários avanços e recuos nesta fase da história — com postos de controlo do exército iraquiano a proibirem o veterinário egípcio de sair do país com os animais enjaulados e uma burocracia incompreensível para um país estruturalmente destruído.
Depois de muitos dias de negociações, conseguiram chegar a um acordo com Ibrahim e o exército para conseguirem sair do Iraque. Lula foi para um santuário natural na Jordânia, Zombie está atualmente num espaço do mesmo género na África do Sul.
Abu Laith tentou ao máximo proteger os animais, apesar de não ter meios para isso, tirando até alimentos à família para os dar aos leões e ursos, entre outras espécies. Passou fome para salvar os animais. A sua história comovente de heroísmo, coragem e generosidade é contada num novo livro, que é publicado em Portugal esta terça-feira, 2 de junho.
“Por Amor aos Animais” foi escrito pela jornalista britânica Louise Callaghan, correspondente no Médio Oriente, que relata em detalhe esta história real. Esta edição da LeYa/ASA está à venda por 16,50€ e pode ser encomendada online.
Por Rodrigo Farinha
Fonte: NIT