Peter Singer: “Onde a religião não prevalece, reduzimos o sofrimento”
Nos seus novos livros, o controverso filósofo defende uma solução pragmática para a moralidade, colocando-nos a par do progresso alcançado nas grandes batalhas éticas do nosso tempo.
Foi chamado de “o mais influente filósofo vivo”, “o homem mais perigoso do mundo” e “o pai dos direitos dos animais” – tudo graças a uma ideia simples, mas transgressiva: a de que a moralidade humana deve basear-se no “aumento da felicidade e na redução do sofrimento” de todos os seres vivos.
Com base nesta máxima, Peter Singer, professor emérito de Bioética na Universidade de Princeton, Nova Jérsia, provocou ondas para lá da sua especialidade com Fome, Riqueza e Moralidade (1972), ensaio em que defende a perspectiva utilitarista e o imperativo moral de doar dinheiro para eliminar a fome no mundo, e Libertação Animal (1975), livro em que aponta o dedo ao abuso de animais à escala industrial.
Em Ética no Mundo Real e Libertação Animal, Hoje (editados este ano em português pela Edições70), numa linguagem corrente e acessível a qualquer leitor, o filósofo australiano atualiza para o século XXI as suas principais ideias – algumas das mais controversas do academismo moderno. Em discurso direto, um pensador que não foge às grandes questões.
O que significa ser-se utilitarista?
Significa que a ação correta é a que terá as melhores consequências. Utilitaristas preocupam-se com os estados desejáveis e indesejáveis de consciência, e procuramos aumentar a felicidade e reduzir o sofrimento de todas as criaturas sencientes [com experiências subjetivas interiores].
É uma posição contrária à tradição cristã que rege o Ocidente?
Sim, na medida em que esta diz que há tipos de prazer que não devemos ter, como o sexual, a não ser num casamento heterossexual. Mas não tenho a certeza de que o Cristianismo não é hedonista: o motivo pelo qual recomenda que abdiquemos de certos prazeres é que teremos felicidade no Céu para sempre; caso contrário, arderemos no Inferno para sempre. Isso soa-me bastante hedonista – o problema, para mim, é que os factos estão errados.
Se não basearmos a moralidade na religião, em que podemos baseá-la?
É um assunto controverso, mas creio que haja uma base objetiva para a moralidade. Há coisas que podemos encarar como evidentes: a dor é indesejável e o prazer é, creio, desejável. Além disso, não é só a nossa experiência que interessa, mas a de qualquer ser vivo – acho que esta é uma asserção objetiva, também. É a partir daí que exploro algumas questões em Ética no Mundo Real: como podemos ter vidas preenchidas e prazerosas, e contribuir para que todos os seres vivam melhor.
Como podemos pesar diferentes ações na balança do utilitarismo?
É preciso avaliar caso a caso. No caso das alterações climáticas, por exemplo, sabemos que as consequências de continuar a queimar combustíveis fósseis serão negativas – é quase certo que os especialistas tenham razão. Mas há questões menos claras: o perigo que a inteligência artificial representa para a sobrevivência humana, por exemplo. Há que olhar para as evidências e tentar fazer previsões.
E em relação aos animais?
Podemos fazer estimativas: sabemos que, quanto mais complexo o animal e sofisticado o seu cérebro, mais provável é de estar próximo de nós na sua capacidade de sofrer e ter prazer. Claro que podemos estar errados, como no caso do polvo, que hoje sabemos ser muito inteligente. Estamos constantemente a aprender – o importante é que isso se reflita na maneira como tratamos os animais.
O que está errado na forma como tratamos os animais?
Há situações em que infligimos muito sofrimento aos animais para retirar pouco ou nenhum benefício, e é nestes que devemos focar os nossos esforços. É o caso, creio, da agricultura industrial, o maior abuso alguma vez infligido a outros seres vivos: todos os anos, criamos e matamos 200 mil milhões de animais, em condições degradadas, sobrelotadas e inadequadas ao seu bem-estar. E daí retiramos alguns alimentos cujo sabor apreciamos, mas que não são indispensáveis para nós. Ou as experiências farmacêuticas em animais, não para salvar vidas, mas para criar produtos de que não precisamos.
Podemos vir a ser verdadeiramente éticos com os animais?
Não sei… não acredito que aconteça no nosso tempo de vida. Mas o meu foco em Libertação Animal, Hoje é se estamos a fazer progressos. E a resposta é sim, de várias formas. Desde a primeira edição de Libertação Animal, em 1975, algumas das piores práticas foram proibidas na União Europeia e Reino Unido: o confinamento de galinhas em jaulas minúsculas, e de vacas e porcos em espaços tão estreitos que os impediam de virar-se, mantidos numa dieta anémica. Estamos a fazê-lo demasiado devagar, é certo, mas estes avanços dão-me esperança de que algures no futuro cheguemos lá.
Alguns temas que aborda estão sujeitos a mudanças culturais. Como saber se estamos no caminho certo?
As coisas que mudam culturalmente estão a mudar na direção certa. O casamento entre pessoas do mesmo sexo é um exemplo de algo que é específico de certas culturas porque continua a haver uma influência forte da religião, que tende a ser conservadora na moralidade. A mudança é lenta, mas em sociedades em que a religião é menos influente, essa mudança acontece na direção do aumento da felicidade. Onde a religião não prevalece, tendemos a reduzir o sofrimento. Outro exemplo é a eutanásia: quando comecei a pensar sobre ela, nos anos 70, era ilegal no mundo inteiro, e hoje em dia é legislada em vários países. À medida que os países se tornaram menos influenciados pela religião, moveram-se na direção certa.
Vivemos um tempo de clivagem política em torno de alguns temas – alguns entre a direita e esquerda, mas outros em que a divisão não é tão clara, como o policiamento do discurso, a imigração ou a identidade de género.
Embora seja visto como parte da esquerda, berço da “cultura woke”, sou um forte defensor da liberdade de pensamento e discussão, e é por isso que ajudei a fundar o Jornal de Ideias Controversas, uma publicação digital gratuita que difunde ideias que seriam censuradas em outros locais. Dito isto, acredito que é importante termos uma cultura diversificada, que aceite diferentes orientações sexuais e backgrounds intelectuais, mas acho que existe um paradoxo em pessoas que defendem estas sociedades e querem fronteiras abertas, porque alguns imigrantes podem vir de culturas extremamente hostis a essas ideias progressistas – corremos o risco de trocar um tipo de diversidade por outro. Hoje há sentimentos nacionalistas e racistas em muitas sociedades, e se um governo abre a porta a um vasto número de imigrantes, expõe-se a ataques de políticos nacionalistas e pode perder as eleições para estes partidos. Já aconteceu na Austrália, nos Estados Unidos ou na Europa. Pode dizer-se que devemos defender a multiculturalidade incondicionalmente, mas se o lado progressista perde as eleições, temos um governo que pode não só parar a imigração, mas também limitar a ação contra as alterações climáticas – e esse é um problema maior, porque afeta o mundo inteiro e as gerações futuras. Talvez tenhamos de fazer cedências para evitar o mal maior.
Como vê o futuro ético da Humanidade?
Registámos progressos tremendos em várias áreas, mas é importante perceber que não estamos a fazer o suficiente quanto às alterações climáticas, por exemplo, ou às guerras. Sou menos otimista do que já fui em relação à paz e à cooperação global. Temos que tentar melhorar – se desistirmos, certamente não seremos bem-sucedidos – mas neste momento é difícil imaginar um futuro melhor para o mundo como um todo.
Por Pedro Henrique Miranda
Fonte: Sábado