Por que veganos devem se importar com o sofrimento dos animais selvagens

Por que veganos devem se importar com o sofrimento dos animais selvagens

De modo geral, pressupõe-se que direitos animais e ambientalismo andam de mãos dadas. No entanto, uma das maiores divergências entre essas duas filosofias deriva do problema do sofrimento animal na natureza. Enquanto ambientalistas tipicamente desejam deixar o mundo selvagem intocado, defensores dos animais deveriam apoiar pesquisas sobre a possibilidade de se reduzir os danos que os animais selvagens sofrem. Tendo-se em vista que, ao que tudo indica, o sofrimento supera a felicidade dentre os menores e mais numerosos animais selvagens, os seres humanos deveriam pensar duas vezes antes de ajudar a propagar a vida selvagem em novos territórios.

Quando eu era criança, adorava assistir documentários sobre a natureza. Eu achava as cenas que mostravam predadores perseguindo suas presas especialmente excitantes. Fiquei triste ao descobrir que os humanos estavam reduzindo os habitats da vida selvagem, uma vez que eu considerava a natureza bela e frágil. Já adolescente, escrevi cartas para o Congresso em defesa da preservação de várias regiões selvagens. Eu achava que cresceria e me tornaria um ativista ambientalista porque acreditava que a preservação ambiental era a o meio mais eficaz de ajudar as futuras gerações.

E então, em 2005, aprendi mais sobre direitos animais e tudo mudou.

De início, pensei que a preocupação com os animais estava de mãos dadas com o ambientalismo. Um dos primeiros livros que li sobre libertação animal foi Ética Prática[1] de Peter Singer, que não somente se opõe ao especismo, como também apoia a preservação ambiental. A maioria dos veganos são ambientalistas e, com frequência, utilizam argumentos ambientalistas para reduzir o consumo de carne. Parecia natural que humanos deveriam parar de causar danos aos animais com a destruição de seus habitats. E eu achei que, uma vez que a felicidade dos animais é importante por si mesma, destruir habitats seria uma grande perda para o desfrute dos animais selvagens que teriam existido naquelas áreas. Pensei que essa minha nova preocupação pelos animais reforçava a visão ambientalista que eu já possuía.

Ambientalismo versus direitos animais

Alguns meses após me dar conta de que os animais não humanos são dignos de consideração moral, eu comecei a ver contradições entre direitos animais e ambientalismo. Algumas das diferenças entre as duas ideologias[2] são bem conhecidas. Um exemplo clássico é a caça de superpopulações de cervos, que ambientalistas geralmente apoiam, mas que ativistas de direitos animais geralmente desaprovam.

Entretanto, o problema mais importante era o sofrimento generalizado dos animais selvagens. Ambientalistas apreciam os equilíbrios ecológicos entre presas, predadores, parasitas e organismos patogênicos. Mas, se nós possuímos uma forte empatia pelos animais enquanto indivíduos, percebemos o quão horrível é ser devorado vivo, morrer de subnutrição ou sucumbir a um vírus fatal. Nós corretamente nos opomos a doenças humanas como a AIDS ou mortes de seres humanos em desastres naturais, apesar de a superpopulação humana ser uma das maiores fontes de destruição ambiental. Por que então adotamos o duplo padrão moral quando consideramos as doenças e os desastres que afetam os animais selvagens?

Seres humanos, mesmo nos tempos remotos de caça e coleta, desfrutavam de vidas melhores em comparação com a da maioria dos outros animais. Uma parcela significativa dos bebês humanos atingia a vida adulta, riscos de ataques de predadores eram relativamente baixos e a expectativa de vida era medida em décadas, permitindo um período de vida longo antes que os indivíduos fossem confrontados com a dor da morte.

Infelizmente, a maioria dos animais não tem tanta sorte. Em muitas espécies, indivíduos adultos vivem não mais do que alguns poucos anos. Uma mãe tipicamente dá à luz a um grande número de descendentes, sendo que, em populações estáveis, em média praticamente todos morrem antes de se reproduzir com exceção de apenas dois que sobrevivem. Animais em posições mais baixas na cadeia alimentar podem permanecer o tempo todo vigilantes[3], atentos a possíveis situações de perigo. E encontros com predadores tem o potencial de produzir danos psicológicos[4] duradouros similares ao transtorno do estresse pós-traumático.

A situação é ainda pior para os animais que são mais numerosos. Pequenos peixes, insetos etc. Insetos adultos geralmente vivem no máximo alguns meses e cada fêmea dá à luz a dezenas ou centenas de descendentes. Em média, um inseto bebê pode viver apenas alguns dias ou semanas antes de morrer, possivelmente de modo excruciante, resultado de predação, canibalismo, ação de parasitas[5] ou alterações climáticas muito drásticas.

Ao me dar conta desses aspectos, eu me tornei menos otimista de que, no balanço final, animais selvagens desfrutem de mais felicidade do que sofram. De fato, eu conclui que o oposto era provavelmente verdadeiro. Como Yew-Kwang Ng explicou em um artigo: “a economia evolutiva da natureza resulta em excesso de sofrimento total em relação ao desfrute total.”[6] Isso lançou dúvidas sobre meus esforços prévios como ambientalista. Anos antes, quando eu estava defendendo a preservação de habitats, eu provavelmente na verdade estava aumentando o sofrimento.

Natural não significa bom

Muitos veganos se opõem a humanos matarem animais, mas aceitam que animais matem outros animais em ambientes selvagens. Por exemplo, Marc Bekoff é “contra a caça, especialmente por pessoas que não precisam da presa como alimento”[7], mas também defende a reintrodução de predadores: “nós precisamos criar espaço para que lobos e outros carnívoros nativos recolonizem áreas das quais eles haviam sido retirados.”[8]

Seguindo essa lógica, um ser humano que se alimente de um peixe é ruim, mas um pinguim que coma vários quilos de peixe por dia[9] é aceitável. Humanos caçarem cervos é errado, mas lobos caçarem cervos é aceitável. No entanto, para os peixes e cervos, serem mortos é uma sensação horrível, independentemente de quem é o caçador. (E ser destroçado por lobos possivelmente fere mais do que levar um tiro.)

Uma resposta comum[10] é que a predação na natureza é diferente da prática de caça por humanos porque predadores precisam de carne para sobreviver. Como Katelynn Chambers disse: “uma comparação entre leões comendo gazelas e humanos comendo animais é muito pobre. Esse debate inteiro na verdade é sobre a moralidade de se comer animais SEM necessidade. Leões PRECISAM comer gazelas. Se eles não as comessem, acabariam morrendo.”[11] Mas nós não aplicamos a mesma lógica em casos envolvendo seres humanos. Suponha que um leão faminto ataque um ser humano. Será que nós nos afastaríamos e não tentaríamos intervir no ataque simplesmente porque o leão precisa de comida?

O conflito entre o direito do predador de se alimentar o direito da presa de não se devorada não é equilibrado, de uma para um: um lobo mata em média cerca de 20[12] cervos por ano. Arthur Schopenhauer reconheceu a assimetria entre os interesses de presas e predadores quando escreveu:

“O prazer neste mundo, como se costuma dizer, supera a dor, ou, de qualquer forma, há um equilíbrio entre os dois. Se o leitor deseja verificar rapidamente a veracidade dessa afirmação, basta que compare os respectivos sentimentos de dois animais, sendo que um deles está devorando o outro.”[13]

(Essa frase não deve ser entendida literalmente, uma vez que não menciona que a presa desfrutou de alguns momentos de sua vida antes de morrer.)

Muitas pessoas, implícita ou explicitamente, acreditam que o que é natural é bom[14]. Veganos rejeitam[15] essa concepção moral quando é utilizada para defender o onivorismo baseado no fato de que humanos são onívoros naturais[16]. No entanto, alguns defensores de animais não rejeitam tão facilmente o apelo à natureza quando se referem ao sofrimento dos animais selvagens. Por exemplo, ao tentar explicar por que a PETA não faz protestos contra os leões predadores[17], uma pessoa disse: “A criação intensiva de animais não é natural. Leões comerem gazelas é natural.” Outra pessoa refletiu: “Leões predam para sobreviver e isso é natural.”

Mas a natureza não é otimizada para a compaixão, é otimizada pelas forças duras e frias do processo evolutivo. Como Richard Dawkins ressaltou: “O universo que observamos tem precisamente as propriedades que são de se esperar que ele tenha, partindo-se do pressuposto de que não existe nenhum projeto, nenhum propósito, nenhum mal, nenhum bem, nada além de impiedosa indiferença.”[18]. Ao invés de buscar meramente preservar as brutalidades da natureza, como defendem os ambientalistas, deveríamos estudar como diferentes políticas ecológicas afetam o bem-estar dos animais selvagens e dar apoio maior àquelas que, depois de uma pesquisa cuidadosa, reduzissem o sofrimento dos animais selvagens.

Somos impotentes frente ao sofrimento dos animais selvagens?

Peter Singer expressou ceticismo[19] sobre interferirmos na natureza para ajudar os animais selvagens: “por razões práticas, eu estou bastante convencido de que, tendo-se em vista o registro de tentativas passadas de a humanidade moldar a natureza para atender a seus propósitos, nós provavelmente aumentaríamos, e não reduziríamos, o nível total de sofrimento animal se interferíssemos na vida selvagem.” Mas se, como parece provável, há mais sofrimento do que felicidade na vida selvagem, então essa declaração está errada, uma vez que a apropriação humana de habitats de animais selvagens muito provavelmente reduziu o sofrimento de animais selvagens, mesmo sem que os humanos tenham se esforçado para que isso acontecesse. De acordo com o Relatório do Planeta Vivo[20] de 2014, “as populações animais estão aproximadamente metade do tamanho […] em relação a 40 anos atrás.” E uma tendência similar parece ser verdadeira[21] também para os invertebrados.

Há razões para nos preocuparmos com os impactos ecológicos causados por seres humanos. Por exemplo, a mudança climática vai aumentar as chances de instabilidade global e guerras nas próximas décadas, que não apenas causarão danos aos humanos a curto prazo, mas poderão também produzir resultados piores de longa duração para a vida senciente em um futuro remoto. É importante comparar valores conflitantes quando fazemos escolhas referentes ao meio ambiente. Mas nós deveríamos ao menos levar em consideração o sofrimento dos animais selvagens em vez de nos focarmos exclusivamente em problemas humanos ou simplesmente assumir que animais selvagens desfrutam, de modo geral, de vidas boas.

Bilhões de vertebrados selvagens e quadrilhões de invertebrados selvagens[22] estão sofrendo neste instante em nosso planeta. Essa é uma tragédia iminente, mas infelizmente este não é o pior dos cenários que podem ocorrer. Alguns futuristas propuseram levar a vida selvagem para outros planetas[23], através de terraformação[24] ou panspermia direta[25]. Outros imaginam[26] administrar um número imenso de realidades simuladas[27] no futuro, as quais podem conter vastas populações de animais selvagens[28] ou outros seres sencientes[29]. Tipicamente, pouca consideração é dada às experiências subjetivas que esses animais experimentariam. A maneira mais fácil e importante que nós temos para reduzir o sofrimento dos animais selvagens é evitando que ele se espalhe.

Estudiosos religiosos refletiram ao longo da história: Por que Deus permite tanto sofrimento na natureza?[30] Se nós espalharmos vida selvagem por novos territórios, seremos nós que teremos que responder essa questão.

Este artigo foi originalmente publicado em reducing-suffering.org e é republicado aqui com a permissão do autor. O texto original em inglês pode ser lido aqui: http://rvgn.org/2015/04/12/why-vegans-should-care-about-wild-animal-suffering/

Brian Tomasik é autor do site Essays on Reducing Suffering, que discute o ativismo animal e muitos outros tópicos. Ele também é voluntário do Foundational Research Institute, uma organização que explora as implicações da inteligência artificial, raciocínio antrópico, e teorias da consciência para a redução do sofrimento no futuro distante. Brian trabalhou como engenheiro de desenvolvimento de softwares para a Microsoft.

Notas

[1] Ética Prática de Peter Singer está disponível no site da Amazon: http://www.amazon.com/Practical-Ethics-Peter-Singer/dp/0521707684

[2] Este ensaio apresenta uma introdução às diferenças entre direitos animais e ambientalismo. http://animalrights.about.com/od/animalrights101/a/Comparing-And-Contrasting-The-Animal-Rights-And-Environmental-Movements.htm

[3] Este artigo descreve como predadores “criam uma paisagem de medo” para suas presas: http://opinionator.blogs.nytimes.com/2009/09/29/where-tasty-morsels-fear-to-tread/?_r=0

[4] Este artigo publicado pela Scholar Commons University of South Florida examina o transtorno do estresse pós-traumático em ratos. http://scholarcommons.usf.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1583&context=etd

[5] Esta “tabela da vida” mostra quantos insetos morrem desde o amadurecimento dentro do ovos até a vida adulta. https://en.wikipedia.org/wiki/Pest_insect_population_dynamics#Life_tables

[6] Intitulado Towards Welfare Biology (Rumo à biologia do bem-estar), e está disponível para compra aqui: http://link.springer.com/article/10.1007%2FBF00852469

[7] Como escreveu em seu artigo para Psychology Today: https://www.psychologytoday.com/blog/animal-emotions/201112/heartless-hunting-maiming-then-killing-deer-no-remorse

[8] Como escreveu neste artigo para a revista Animals http://www.mdpi.com/2076-2615/1/1/126

[9] Pinguins-imperadores consomem de 2kg a 5 kg de comida por dia! http://reducing-suffering.org/how-much-direct-suffering-is-caused-by-various-animal-foods/#Non-human_carnivores

[10] Alguns exemplos de respostas podem ser encontradas nesta terrivelmente fascinante página do Yahoo Answers: https://answers.yahoo.com/question/index?qid=20080208032722AAVE4Wd

[11] Neste debate, publicado em debate.org: http://www.debate.org/debates/Moral-Argument-Meat-Eating/1

[12] Número retirado da Grey Wolf Factsheet (ficha de dados sobre o lobo-cinzento). http://dnr.wi.gov/topic/wildlifehabitat/wolf/facts.html#Misconceptions

[13] Extraído dos Estudos em Pessimismo de Schopenhauer, ebook disponível online: https://ebooks.adelaide.edu.au/s/schopenhauer/arthur/pessimism/chapter1.html

[14] Este argumento falho é chamado “apelo à natureza”. https://en.wikipedia.org/wiki/Appeal_to_nature

[15] Uma desconstrução da falácia do apelo à natureza do ponto de vista vegano. http://yourcybercourt.info/fallacies/list.html#sec-17

[16] Humans are Omnivores (Humanos são onívoros), adaptado de uma palestra proferida por John McArdle. https://www.vrg.org/nutshell/omni.htm

[17] Por que a PETA não protesta contra leãos que comem gazelas? Pergunta postada no Yahoo Answers. https://answers.yahoo.com/question/index?qid=20080731131831AAdpISO

[18] Trecho do livro O rio que saía do Éden, citado em: https://en.wikiquote.org/wiki/Richard_Dawkins#River_out_of_Eden_.281995.29

[19] Nesta conversa com David Rosinger publicada pela New York Review of Books http://www.nybooks.com/articles/archives/1973/jun/14/food-for-thought/

[20] O Relatório do Planeta Vivo de 2014 do World Wildlife Fund (WWF) está disponível aqui: http://www.livingplanetindex.org/projects?main_page_project=LivingPlanetReport&home_flag=1

[21] O número de invertebrados cai quase pela metade enquanto a população humana dobra de tamanho: http://www.ucl.ac.uk/news/news-articles/0714/240714_invertebrate-numbers

[22] Quantos animais selvagens existem? http://reducing-suffering.org/how-many-wild-animals-are-there/

[23] Ética biótica define o propósito humano de assegurar e propagar a vida. https://en.wikipedia.org/wiki/Biotic_ethics

[24] Terraformação é o processo teórico de modificar um corpo planetário para criar um ambiente semelhante à Terra capaz de sustentar a vida. https://en.wikipedia.org/wiki/Terraforming

[25] Panspermia direcionada é um processo teórico de transportar microorganismos através do espaço para introduzir vida em planetas sem vida. https://en.wikipedia.org/wiki/Directed_panspermia

[26] Tais como Nick Bostrom. http://www.nickbostrom.com/astronomical/waste.html

[27] Realidades simuladas e “jogos de vida artificial” já existem e estão se tornando mais complexos. https://en.wikipedia.org/wiki/Life_simulation_game

[28] Como, por exemplo, o WolfQuest no qual você age como um lobo-cinzento. https://en.wikipedia.org/wiki/WolfQuest

[29] Vida artificial provavelmente se tornará cada vez mais sofisticada. https://en.wikipedia.org/wiki/Artificial_life

[30] Em seu livro Nature Red in Tooth and Claw, Michael J Murray discute especificamente o problema do mal sob o prisma da dor e do sofrimento animal. Disponível no site da Amazon: http://www.amazon.com/Nature-Red-Tooth-Claw-Suffering/dp/0199596328

Por Brian Tomasik / Tradução de Lara André / Revisão de Luciano Carlos Cunha

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