Sacrifício ou sacrilégio?

Sacrifício ou sacrilégio?

Quando um humano mata outro, chamamos de homicídio. Se a morte foi intencional preferimos chamar de assassinato. Quando matamos um cão não damos nenhum nome ao nosso ato. O mesmo vale para matar um porco, uma galinha, uma ovelha, uma vaca, um cavalo, um rato.

Todos os atos que não queremos ver espelhados ou refletidos na palavra, deixamos sem nome. Assim, não existem para nossa consciência, ainda que pesem nela para sempre. Mas, se não queremos ver ou saber o que fizemos, boa coisa não é.

Para ter noção de quem somos para os outros animais, sugiro que passemos a usar os termos canicídio (canicida), gaticídio (gaticida), avicídio (avicida), ovicídio (ovicida), equicídio (equicida), bovicídio (bovicida), raticídio (raticida, esse já existe mas nunca designa o humano, só o veneno), além de homicídio (homicida). Isso desnaturaliza a matança. Se praticamos um ato, o denominamos, para que apareça à consciência, devidamente distinguido de outros.

Se temos nomes para a morte de um humano, causada pela mão humana, a mesma mão que causa a morte de um animal deve assinar o que faz, nomeando tal gesto, desnaturalizando-o, tirando-o do escuro da insignificância.

Quando um humano mata outro para se aproveitar seja lá do que for chamamos de latrocínio. Quando um humano mata uma ave, um gato, um cabrito, ou seja lá qual outro animal for, nos referimos a isso como matar animais. Mas matamos um certo animal, de uma certa espécie, porque aquela espécie de animal tem algo que queremos tirar dele, sua vida. Mas tem que ser a vida de um certo tipo, não de outro. Assim vivemos, julgando que está tudo bem matar certos animais para extrair deles o sangue, as carnes, a pele, o couro, a lã (latrocínio, porque todos os animais são pessoas sencientes, apenas com formatos outros que não o nosso), ou depois de extrair delas o máximo possível de leite e de ovos.

Quando um humano mata um certo número de humanos de um mesmo grupo ou bagagem genética, seja qual for o método empregado, chamamos genocídio. Se mata vários de diferentes bagagens genéticas, derramando seu sangue, chamamos chacina. Mas matar 70 bilhões de animais todos os anos de modo institucionalizado não tem nome a não ser este: abate.

Quando humanos matam plantas ou insetos, usando venenos, chamamos de biocídio, pois dos insetos e das plantas a vida foi tirada.

Quando humanos matam animais, não casualmente, mas por compaixão ou para descarte de seus corpos exauridos por experimentos, seguindo métodos elaborados por médicos, cientistas e pessoas com autoridade, chamamos, erroneamente, de eutanásia.

Quando humanos seguem métodos institucionais de matança ritualizados, seja por religiões ou pela ciência médica, dizemos que os animais “foram sacrificados”. Essa expressão é usada tantas vezes que vira mantra da ciência vivisseccionista e de espaços de abate, sejam eles a céu aberto ou bem escondidos dos olhos de toda gente.

Entretanto, o termo sacrifício jamais deveria ser empregado quando um animal senciente sofre a morte pela mão alheia sem ter se oferecido para tal. Sacrifício, se quiséssemos usar o termo de modo apropriado, é o ato, o gesto ou a ação de oferecer-se para ocupar o lugar de outrem no abate, poupando-lhe a vida. Os Ungidos (significado original aramaico que mais tarde os romanos traduziram como Cristãos) sabem muito bem do que estou escrevendo, pois seu Messias se sacrificou por eles.

Os heróis se sacrificam para salvar da morte os outros. Nenhum ser senciente, a bem da verdade, pode ser “sacrificado”, pois tal passividade é própria de objetos ou oferendas, não de alguém dotado de vontade própria, cuja vontade é violada pelo ato violento. No máximo, pela vontade de matar alheia, o que um humano pode sofrer é genocídio, chacina ou assassinato. A vontade alheia jamais consegue “sacrificar” um animal, porque ninguém tem relato algum de um animal que tenha comparecido voluntariamente ao abate, portanto, se sacrificado, para ocupar o lugar de outro e poupá-lo do horror.

Então, se precisamos fazer algum “sacrifício” para atender ao nosso imenso amor por outros seres ou angariar benefício pessoal, o certo seria oferecermos algo nosso, bem precioso, por exemplo, nosso sangue, às divindades que clamam por sangue como clamam todos os que se alimentam de carnes e leites animais. Carnes são produtos do sangue. Leite, idem.

Mas quem jamais se alimenta de carnes e leites à custa da vida dos outros animais que não podem se defender da chacina institucionalizada, entende muito claramente que abater a vida alheia jamais deve ser confundido com “sacrifício”, termo reservado ao gesto nobre de quem se entrega à morte para poupar outros, não o contrário.

Todas as religiões, em seus tempos primordiais, usaram de um modo ou outro matar humanos ou outros animais para agradar aos deuses. Mas parece que os deuses evoluíram e avisaram que não são vampiros, que não gostam mais de carnes sangrando, de vidas agonizando, de dar presentes em troca dessas cenas de dor, agonia e morte de inocentes.

Não se deve esperar o golpe da espada (a proibição da lei) para entender que atos sacripantas são indignos de nossa natureza, tanto do ponto de vista ético quanto espiritual ou estético. Na condição de animais somos todos iguais. Só temos vida enquanto o sangue circula por todos os tecidos do nosso corpo.

Ferir um corpo, para forçar o vazamento do que é fonte do calor irradiado a todas as células, não pode ser chamado de “sacrifício”, é assassinato, pois quando fazemos tal coisa a vítima não está em condições de se defender. E se alguém está numa condição tão vulnerável que não pode se defender do golpe que força seu sangue a esvair-se, esse ser não está “se sacrificando”, porque sacrifício é gesto do forte protegendo o fraco e não o gesto do forte abatendo e destruindo o mais fraco. Esse é puro sacrilégio.

Por Sônia T. Felipe

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