Sheila Moura, uma voz ativista pelos animais: Fala Bicho!
Nascida no Rio de Janeiro e Fundadora da Sociedade Educacional “Fala Bicho”, Sheila Moura é ativista dos direitos animais há pelo menos seis décadas. No ano seguinte à criação da ONG, cuja proposta sempre foi a de educar para fazer pensar, ela lança a primeira literatura brasileira sobre proteção animal no Brasil, o Manual Fala Bicho (1994), voltado a colocar em prática a ideia de conscientizar as pessoas. Ao longo desse tempo realizou projetos dos mais diversos, ministrando palestras sobre a importância da fauna, exigindo do poder público o cumprimento das leis de proteção animal, concedendo entrevistas e escrevendo artigos nos principais jornais do país, participando de entrevistas em rádios e TV, criando o primeiro programa de castração gratuita que se tornou referência no país, editando um livro que se tornou clássico sobre a verdadeira face da experimentação animal e noticiando em seu blog O Grito do Bicho material informativo sobre temas gerais de direito animal, bem como realizando ações com apoio de seus leitores. Dentre as ações inéditas da “Fala Bicho” pode-se citar a realização do primeiro programa radiofônico sobre proteção animal, a assinatura de convênio com a Prefeitura do RJ para cooperação técnico-científica e criação de políticas publica para animais e a participação direta na discussão, criação e regulamentação da Lei de Crimes Ambientais, dentre outras iniciativas. Nesta entrevista Sheila Moura revisita sua trajetória de vida, desde a juventude até a maturidade, revelando aspectos do ativismo que a distingue como uma das mais combativas defensoras dos animais em nosso país, por dar voz a quem tanto necessita.
OLHAR ANIMAL – Sheila Moura, fale um pouco de sua trajetória de vida voltada à causa animal. Como isso tudo começou, o seu amor pelos animais e a decisão pessoal de protegê-los?
SHEILA MOURA – Em 1964, quando tinha 17 anos e cursava duas faculdades (direito e serviço social), passei a acompanhar um namorado em manifestações pelo meio ambiente, notando que na seara ecológica quase ninguém incluía os bichos nas discussões. Eu comecei a chamar atenção dos companheiros sobre esta lacuna, mas o fazia ainda de forma muito modesta pela falta de experiência, de conhecimento e de consciência. A partir daí passei a ler, falar e viver tudo que se relacionava ao assunto, como caça de baleias, farra do boi, tráfico, rodeios e tudo mais.
Com este mesmo grupo de ativistas, participei das campanhas pela criação do IBAMA (1989), do Ministério do Meio Ambiente MMA (1992) e da ECO 92, quando não havia quase ninguém falando de fauna. Quando em fevereiro de 1993 a Assembleia Permanente de Defesa do Meio Ambiente-APEDEMA foi criada, fiquei responsabilizada pelas discussões ligadas aos bichos, já tendo parceiros sensibilizados pela causa animal. Estes parceiros se tornaram conhecidos em todo país como Fernando Gabeira, Carlos Minc, Alfredo Sirkis, Vilmar Berna, Sérgio Ricardo, Dener Giovanini e outros tantos.
Neste mesmo ano de 1993, já muito envolvida com a causa animal e disposta e contribuir para os necessários avanços na área, decidi fundar no Rio de Janeiro uma ONG, a Sociedade Educacional “Fala Bicho”. Eis aqui o ponto de partida para minha atuação legal e organizada em prol de uma luta coletiva, não só no meio ambiente como também em todos os setores relacionados à defesa dos animais.
OLHAR ANIMAL – No campo da militância política, década de 90, época da transição entre a contravenção penal da crueldade (artigo 64 da LCP) e o crime de maus-tratos (artigo 32 da LCA), sabe-se que você se uniu ao grupo que buscava a criminalização da violência contra os animais, tornando-se uma voz muito importante no Rio de Janeiro. Como foi isso?
SHEILA MOURA – Com o advento da Constituição de 1988, que vedava crueldade aos animais, não havia como os maus-tratos permanecerem como simples contravenções penais. Tinha que passar a ser crime. Daí a mobilização dos setores de proteção animal para essa mudança, que se viabilizou por meio de inserções no capítulo da fauna da Lei de Crimes Ambientais. Minha ideia era incluir na lei um Anexo definindo o que seriam “maus-tratos” aos animais, já que julgadores/autoridades policiais ignoravam, efetivamente, o alcance desse termo. Eu e o consultor jurídico do Ministério do Meio Ambiente, Dr. Vicente Gomes da Silva, percorremos várias estâncias federais e estaduais na tentativa de contribuir para a aprovação rápida desse texto, que apenas não vingou em razão de ter sido alertada a bancada ruralista.
Em contrapartida, a “Fala Bicho” contribuiu para a redação do dispositivo que criminalizou a introdução ilegal de espécie animal no país (artigo 31 da LCA). Inspirei-me num caso da Austrália, a matança das raposas trazidas para conter a proliferação de coelhos, que também não eram nativos. Tal avanço na legislação nacional veio em prol dos animais exóticos.
Dentre as pessoas que participarem ativamente dos debates prévios que redundaram no texto da Lei nº 9.605/98 podem ser mencionadas Edna Cardozo Dias, Lia Cavalcante, Geuza Leitão, Circe Amado, Claudie Dunim e Sonia Fonseca, as quais mobilizaram o segmento do qual me tornei parte integrante.
Não poderia deixar de dizer que muito dos avanços obtidos para a defesa animal, na Lei de Crimes Ambientais, se deve à forte presença de espírito para obter uma lei específica pelos animais, que estava sendo tentada pela UIPA e coincidiu com o momento oportuno de criação da lei de crimes ambientais.
Vanice Teixeira Orlandi (na época voluntária da UIPA e ainda estudante do direito), ao saber do projeto de lei em elaboração, entrou em contato com a comissão de juristas para tentar contribuir na redação do artigo 32, ao passo que a mobilização junto às ONGS que atuavam na época foi feita por Sonia Fonseca, Edna Cardozo Dias, Lia Cavalcanti e Circe Amado. O fato é que este dispositivo, devidamente aprovado, criminalizou abusos e maus-tratos contra quaisquer animais.
Nessa trajetória de lutas pelos animais muita gente merece ser lembrada. Afora as protetoras acima citadas, merecem menção, do passado para o presente, outros nomes que me inspiraram muito, como Ana Maria Pinheiro, Elizabeth Mac Gregor, Ângela Caruso, Marco Ciampi, Nina Rosa, Carla Sassi, Luisa Mell e tantas outras. E sobretudo a advogada Vanice Teixeira Orlandi, que se tornou expert na defesa animal através das leis.
OLHAR ANIMAL – O trabalho da SUIPA, uma das entidades de proteção animal mais tradicionais do Rio de Janeiro, influenciou em seus caminhos? Porventura chegou a conhecer Nise da Silveira e as protetoras dos anos 60/70, quando o Brasil ainda vivia o tempo da carrocinha e não possuía quase nenhum mecanismo eficaz de tutela animal? O que pode dizer do trabalho dessas mulheres pioneiras na defesa dos animais?
SHEILA MOURA – Minha conscientização das necessidades dos animais domésticos começou quando fui a SUIPA pela primeira vez, isso ainda nos anos 60. Fiquei amiga da filha de um dos diretores, Marília Pinheiro, moça enlouquecida pelos animais e muito inteligente. Ela chegava até a armar situações para chamar a atenção, como por exemplo, subia numa árvore com um gatinho escondido na roupa. Quando o fotógrafo do jornal chegava ela liberava o gatinho como se ele não estivesse conseguindo descer e que precisou subir para salvá-lo…. Eu e mais duas pessoas ajudávamos na execução das suas invenções….
Rogério Marinho, diretor do Jornal O Globo, se encantou por ela e fez as ações de resgate e os casos de maus-tratos ganharem as primeiras páginas do jornal. Na busca de novos associados para a entidade, Marília empenhava-se em levar a triste realidade dos animais para divulgação na imprensa carioca.
A mídia da época deu muito espaço para a SUIPA graças as artimanhas dela. Eu acompanhava Marília em todas suas loucuras pelos animais, desde as manifestações pela proibição da caça às baleias (que ainda ocorria no Brasil), incluindo tomarmos banho peladas em plena Cinelândia, chamando atenção para libertação de um golfinho que vivia preso num aquário em São Paulo.
Quanto à famosa médica Nise da Silveira, conheci quando criança porque minha mãe trabalhava como enfermeira no hospital por ela dirigido, o Pedro II, e às vezes me levava junto. Certo dia a própria Nise, ao saber que eu trazia cães abandonados para casa, sugeriu que eu ganhasse um cachorrinho de estimação. E assim veio o pequinês Maru, embora isso não tenha impedido meu hábito constante de fazer resgates na rua. Quem diria que Nise da Silveira, apaixonada por gatos, seria um dos grandes nomes da causa animal no Rio de Janeiro. Cheguei a tirar foto com ela no evento em que o Prefeito proibiu a carrocinha.
Uma memória que guardo com carinho é a de Nise, com sua saia preta justa e blusa branca, passando a mão na minha cabeça enquanto eu carregava quantos gatos ou cachorros conseguisse levar. Ela fazia maior festa quando me via…
Ainda sobre a SUIPA, que sou ligada até hoje, quero fazer aqui uma menção especial à sua presidente falecida Izabel Cristina do Nascimento, companheira em diversas ações durante anos e que deixou muita saudade.
OLHAR ANIMAL – Frase sua: “Defender animais não deve ser apenas ato de caridade”. Ao pronunciá-la, muitos anos atrás, acaso estava querendo dizer que animais precisavam ser considerados, acima de tudo, em função de seus direitos e, também, merecedores da justiça?
SHEILA MOURA – Sim. Isso porque, na verdade, eu nunca aceitei a ideia de que animais merecem nossa caridade. Se bem que era assim que se pensava no início. Para mim, eles merecem respeito, reconhecimento por suas existências e importância na sobrevivência do planeta e, consequentemente, da nossa própria espécie. Sempre falei em palestras que se todos os humanos deixassem de existir, nenhum animal pereceria (exceto os dependentes domésticos, claro). Ao contrário, se as diversas espécies de animais deixassem de existir, nós estaríamos todos mortos. É por isso que sempre usei a educação (“Educar é Fazer Pensar!”) como caminho necessário para a conscientização de que os animais sejam reconhecidos por sua importância no planeta em que vivemos.
Por exemplo, o Pantanal passou a arder em chamas depois dos desmatamentos que começaram na década de 90 para fazer pasto. Ele secou e acabou de vez com o governo anterior (Bolsonaro), que liberou todas as licenças para desmatamento. A recuperação está impossível pois toda queima atual acontece em propriedades privadas que receberam documentos de posse de áreas protegidas no governo maldito. Toda biodiversidade ali destruída e as pessoas só conseguem ver a queima da vegetação e ter pena dos animais que aparecem queimados numa imagem ou noutra, sem lembrarem dos invertebrados, fungos, parasitas etc. Quando os governantes entenderão que é importante, também, a sobrevivência das vidas que lá estão compondo todos os ecossistemas? Animal é vida em movimento vivo! Por que não há uma convergência de ações do país para apagar incêndios florestais, incluindo a punição de todo e qualquer criminoso ambiental?
OLHAR ANIMAL – Outra frase sua: “O grande erro da proteção animal foi se envolver com a política antes de ter pessoas preparadas para defender profissionalmente os animais”. Explique-a.
SHEILA MOURA – Sem dúvida nenhuma ainda mantenho até hoje tal convicção. A comprovação pode ser vista no segmento de protetores que atualmente continua pecando pela falta de criatividade, de conhecimento ou de bom senso.
Muitas protetoras da linha de frente (aquelas que recolhem animais das ruas e tentam adoções) se iludem com promessas irregulares de políticos em época eleitoral, coisa comum, sem atentar que muitas vezes o que é prometido não pertence à sua alçada de poder ou que sequer saibam dos trâmites legais para a obtenção/destinação de verbas para a causa dos animais.
Sempre defendi que o segmento voltado à defesa animal não deve ter lado político, porque o objetivo comum é promover os animais dentro da sociedade. Isto não acontece por causa de leis e sim por ações do Poder Executivo, cuja gestão costuma mudar periodicamente.
De que adianta ter uma lei se o Executivo não fiscaliza, nem aplica multas ou tampouco autua os infratores? Nossas reivindicações devem ser dirigidas a Prefeitos, Governadores e Presidente da República, e não aos representantes do Poder Legislativo. De minha parte, em relação a benefícios para os animais, sempre consegui tudo com o Executivo, de forma rápida e objetiva.
OLHAR ANIMAL – A Sociedade Educacional “Fala Bicho”, como o próprio nome diz, tem uma proposta pedagógica que se iniciou em 1993, a de conscientizar as pessoas para que respeitem os animais em seus direitos e dignidade. Sob essa linha de raciocínio, por que o Manual do Fala Bicho é considerado a primeira literatura a tratar de proteção animal no Brasil?
SHEILA MOURA – A ideia de elaborar o Manual teve como objetivo levar conhecimento e informação a todos os segmentos públicos ou particulares nos quais os animais pudessem estar, de alguma forma, envolvidos. Juízes, órgãos públicos, escolas, faculdades, associação de moradores, cursos de formação de policiais, corpo de bombeiros etc., foram meus alvos.
Quando iniciei o trabalho de pesquisa para escrevê-lo, nada havia em bibliotecas. Não havia fontes em 1993, época em que a comunicação ainda se dava por meio de cartas, fax e telefone, sob um custo não muito baixo. Costumo brincar dizendo que fazíamos a defesa dos animais batendo tambor e soltando fumaça…
A alternativa para a busca de fontes para o Manual foi a pesquisa de matérias jornalísticas, trabalhos acadêmicos sobre espécies animais, legislação, e as informações que nos chegavam sobre rodeios, circos, farra do boi, caça etc. Reuni o conteúdo do Manual a partir de material diversificado (parte do qual vinha do exterior e eu traduzia) fornecido por Edna Cardozo Dias, Lia Cavalcante, Claudie Dunin e outras. E assim se viabilizou a publicação.
OLHAR ANIMAL – A revista eletrônica “O Grito do Bicho” é o braço jornalístico da “Fala Bicho”, noticiando fatos e denunciando crimes contra animais. Interessante observar que cada postagem noticiosa vem acompanhada de uma opinião/comentário da redação. Pode falar um pouco da proposta do blog?
SHEILA MOURA – Quando em 2008 criei esse blog, que se tornou pioneiro no setor de plataformas no Brasil pela causa animal, não era apenas para contar sobre o que acontecia no campo dos direitos animais, fosse a matéria positiva ou negativa, mas para opinar no que aquela notícia ou ação tinha de informação para mudar paradigmas. Ou seja, o comentário crítico ia muito além de uma simples nota da redação, porque seu objetivo era conscientizar.
O intuito foi o de projetar um novo olhar, por exemplo, acerca da exploração dos animais em eventos, zoológicos, esportes etc. Quem lia, digamos, matéria sobre corrida de cavalos ou de cães, ficaria sabendo do sofrimento a que passavam os animais até chegarem à pista de provas. Muita gente, aliás, acha glamoroso o hipismo, mas sem ter a mínima ideia do que acontece com os equinos antes e depois dessas corridas (que visam somente o lucro dos empresários/apostadores do setor).
No blog O Grito do Bicho também é possível verificar algumas ações inéditas da “Fala Bicho”, como a criação, produção e realização do primeiro programa sobre proteção animal em rádios no Brasil, para um público que nunca ouvira falar sobre direito animal (de 1995 a 2009), além de mais de vinte matérias publicadas em jornais brasileiros de grande circulação, dentre os quais O Globo, Diário de Minas, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, O Dia, Jornal do Comércio etc., isso de 1993 em diante.
Também há referência ao convênio de políticas públicas para animais, com a Prefeitura do Rio de Janeiro, incluindo os seguintes programas: “Zooterapia” utilizando animais para promoção da saúde humana; Atendimento aqueles que sofrem pela perda dos seus pets – APPET, “Mudança de Hábitos” com palestras em todos os setores da sociedade como escolas, praças, condomínios, escolas preparatórias da Policia Civil, Militar e Bombeiros; “Atendimento médico-veterinário na residência e abrigos de protetores – AMVP”; “Centro de Referência pelo Bem Animal – CRBEA”, colocando à disposição toda literatura e vídeos sobre proteção animal aos alunos de escolas, faculdades e entidades jurídicas; assim como a continuidade do “Programa de Castração Gratuita” que já tínhamos iniciado em 1995.
Tudo isso é facilmente comprovado em vídeos e pesquisa no blog O Grito do Bicho 1, 2 e 3, cujo conteúdo pode ser acessado pela internet (https://ogritodobicho3.blogspot.com/).
OLHAR ANIMAL – Uma das iniciativas pedagógicas mais bem sucedidas da Sociedade Educacional “Fala Bicho” foi a publicação do livro “A Verdadeira Face da Experimentação Animal – a sua saúde em perigo”, de Sérgio Greif e Thales Tréz. Pergunta-se: de que maneira surgiu essa ideia e o contato com os jovens biólogos que se prontificaram a dispor de seu conhecimento e estudos técnicos para tratar de um tema considerado tabu? Como a Fala Bicho se sente em ter dado tamanha contribuição aos juristas e estudiosos desta que é uma das áreas mais tormentosas do Direito Animal?
SHEILA MOURA – A ideia seguiu na mesma linha da criação do Manual da “Fala Bicho”. Da mesma forma, sobre o tema da vivissecção não havia informação acessível em nenhum lugar. A sociedade civil ignorava absolutamente tudo que se passava nos porões das pesquisas científicas. Com o andamento das minhas iniciativas em começar a desvendar esse tormentoso campo, obtive informes importantes junto à recém-criada Frente Brasileira para a Abolição da Vivissecção-FBAV.
Por indicação de Edna Cardozo Dias, que me pôs em contato com a fundadora da FBAV (que declinou do convite para escrever o material, mas indicando dois jovens biólogos para fazê-lo), cheguei a Sérgio Greif e Thales Tréz. Ao trazê-los para o Rio de Janeiro, apresentei a ideia que, em princípio, seria uma publicação mais simples, como uma revista. Aconteceu que, com tanto material produzido pelos queridos e amados biólogos, resolvi editar um livro, “A verdadeira face da experimentação animal – a sua saúde em perigo”.
Orgulho-me muito desta obra, que se tornou a primeira publicação brasileira acerca do uso de animais em pesquisas científicas. A Fiocruz, na ocasião, me procurou para incluir o material que eu tinha para incorporar à sua biblioteca científica. Diga-se que a postura contrária à vivissecção era um tema, até então, desconhecida da maioria dos pesquisadores. Hoje em dia, temos muitos livros e publicações a respeito embora eu sinta falta de combatentes ferrenhos para o fim desta estupidez que é o uso de animais em todas as experimentações.
A antivivissecção não é contra a pesquisa, mas sim contra o uso de modelo errado devido a diferença de organismos embora semelhantes. Ou seja, doenças de humanos devem ser pesquisadas em humanos, doença de equinos pesquisar em cavalos, doenças de aves pesquisar em aves, e assim sucessivamente. Agora todas as pesquisas devem ser feitas com o cuidado necessário para evitar o sofrimento de qualquer modelo. Sinto muita falta de ativistas neste setor para esclarecer a sociedade que é a única que tem força para pressionar a pesquisa científica…. Isto sem contar que, hoje em dia, temos a tecnologia dando show em todos os setores. O paradigma é tão absurdo que os pesquisadores modificam geneticamente o modelo animal para ele se parecer com o humano e aí ver o efeito de um medicamento ou outro tipo de pesquisa qualquer. Vide os tais xenotransplantes que volta e meia ganham manchetes no mundo inteiro. Por isso me revolto tanto com a inércia de ativistas do nosso setor….
Acompanho a atuação do Centro Brasileiro para a Validação de Métodos Alternativos-BraCVAM porque sou incentivadora de pesquisadores que encontram e validam técnicas substitutivas na experimentação. Seria preciso continuar com ações espetaculares como uma que realizei em 1999, a ponto de suspender por um período a experimentação com animais na Fiocruz. Foi um impacto mundial. Desde a maravilhosa invasão do Instituto Royal (2013), onde ativistas resgataram cães beagles usados para pesquisas, não tive notícia de outra ação que tanto incomodasse os pesquisadores. A Resolução do CONCEA que, em 2023, proibiu o uso de animais em pesquisas no setor dos cosméticos, não me diz grande coisa. É preciso muito mais, porque a atividade da experimentação é ampla e submete animais a inimagináveis práticas cruéis.
OLHAR ANIMAL – Considerando que hoje em dia o Direito Animal se tornou disciplina autônoma do Direito Ambiental e já é levada mais a sério no meio forense, você acredita que esses avanços doutrinários que já repercutem no Poder Judiciário podem contribuir verdadeiramente para mudar a cruel realidade que ainda assola tantas espécies?
SHEILA MOURA – Sinceramente? Até hoje não vi o Direito Animal chegar à sua finalidade. Assisti a muitos seminários, reuniões, audiências públicas etc. Eventos com falas bonitas, idealistas, mas na prática pouco realizáveis. É preciso líderes ativos, carismáticos e inspiradores. O povo latino vive de heróis e não os temos aqui no Brasil, como Brigite Bardot é na França. Os que aparecem são massacrados por aqueles incompetentes que não conseguem ver a causa animal num estágio elevado e de forma prioritária.
Eu tive minha época de agitação, destaques e grandes realizações, como também fui ofendida e boicotada por gente frustrada dentro do nosso meio. Nunca aceitei esta baixeza. Sempre reconheci e promovi o trabalho que cada um fazia (e faz) pela causa dos animais, por menor que ele fosse. Em meu blog, com entrevistas e palestras, desde sempre, destaco ações de defensores que, verdadeiramente, faziam a diferença.
Atualmente, só lamento que dois AVCs e um câncer tenham me tirado do ativismo que sempre preconizei.
OLHAR ANIMAL – Sheila Moura, o seu idealismo e coragem voltados à aplicação prática da legislação animal, seja por iniciativas exclusivas da Sociedade Educacional Fala Bicho, seja por intermédio de parcerias público-privadas com o Poder Executivo, envolve sempre um perseverante trabalho de campo, o contato direto com os animais necessitados e a busca da efetividade de cada ação realizada. Não é nada fácil atuar em defesa daqueles que não tem como se defender e que tanto precisam de ajuda. Considerando seu exemplo de vida e a importância de os animais serem tratados como sujeitos de direito, qual a mensagem que gostaria de deixar à presente e às futuras gerações?
SHEILA MOURA – Embora não me sinta com toda essa importância, gostaria muito que os militantes dos direitos animais fossem mais preparados não só em conhecimento, mas sobretudo mais audaciosos no uso deste conhecimento. Mesmo em função de causas justas aparentemente impossíveis, deve-se perseverar na busca do caminho certo e viável. Lembro, a propósito, que minha decisão de iniciar o programa de castração gratuita no Rio de Janeiro, em 1995, serviu de pontapé inicial para que essa medida fosse replicada em todo o Brasil. Naquela ocasião consegui provar ao poder público que o custo de uma castração era menor do que a apreensão e abate de um cão abandonado na rua. Contra fatos não há argumentos. Foi assim que ganhei o respeito e credibilidade nesse tema referente à importância da castração de cães e gatos, reconhecido como o melhor programa de controle populacional de animais domésticos em todos os municípios do país. Confesso que o pior não foi convencer o poder público, mas mudar o estigma dentro da própria sociedade que relutava em aceitar a castração como ação preventiva e necessária, isto sim foi trabalhoso.
Em suma, é preciso persistir naquilo que acreditamos, sem esquecer que os militantes do nosso segmento devem ser corajosos e audaciosos porque os animais só têm a nós para defendê-los. E fazendo aqui uma avaliação geral, penso que os diversificados nichos da causa animal no Brasil evoluíram alguma coisa. Agora, para meu espírito insaciável, sinto que é preciso muito, muito, muito mais empenho dos ativistas na criatividade, sobretudo, porque hoje em dia a maravilhosa internet nos permite travar lutas conjuntas e intercorrentes, em tempo real, seja no Brasil, seja em qualquer parte do mundo.
Por Laerte Levai, jornalista ambiental
Fonte: Olhar Animal
*Reprodução permitida desde que citada a fonte e publicado o link para este artigo original.