Sustentabilidade para santuários de animais

Sustentabilidade para santuários de animais

Por ocasião do Encontro Nacional de Direitos Animais (ENDA) 2014, foi-me solicitado ministrar palestras de cunho mais prático, sobre temas que pudessem ser de meu domínio. Preparei três apresentações e aceitei, durante o evento, tratar de outros três temas que me foram solicitados pelos participantes.

Um dos temas, porém, considerei de máxima relevância para solucionar uma questão bastante relevante para todo o ativismo animal: a busca pela sustentabilidade para santuários de animais.

Mas o que são santuários de animais? São instituições e/ou pessoas que mantém animais sob sua custódia, nas melhores condições possíveis e pelo tempo de suas vidas, mas não permitem sua reprodução (exceção para o caso de santuários de animais silvestres, que podem reproduzir animais com propósitos de conservação da espécie) e não exploram esses animais de forma alguma (seja negociando animais ou suas partes, seja exibindo os animais ou entretendo pessoas às suas custas).

Há possibilidade de que alguns santuários permitam a visitação de público externo, com propósito de trabalhar a educação ambiental e a conscientização do público para que não compre animais silvestres ou exóticos, ou educação pelo veganismo, mas de forma geral o propósito não é o entretenimento do público às custas da exibição de animais.

Nesse ponto cabe distinguir entre os possíveis tipos de santuários de animais que podem existir:

Santuários para animais domésticos: São santuários voltados à manutenção de animais cujas espécies o ser humano manipulou geneticamente com o propósito de produzir características favoráveis à sua exploração. Nesse tipo de santuários a reprodução deve ser terminantemente proibida e a doação de animais deve obedecer a critérios bem específicos (pois os animais não podem ser doados se há possibilidade de que sejam explorados por seus adotantes). São exemplos os santuários de cavalos, vacas, cabras, ovelhas, porcos, galinhas, coelhos, ratos albinos, canários, pombos, coelhos, abrigos de cães e gatos, etc.

Santuários para animais exóticos: São santuários voltados à manutenção de espécies de animais exóticas não domésticas que se encontrem em território nacional. São considerados animais não domésticos aqueles cujo patrimônio genético corresponde ao patrimônio genético dos animais selvagens, não havendo o indivíduo, portanto, sofrido seleção artificial. Conforme o caso, esses santuários podem possuir políticas de repatriação dos indivíduos para seus locais de origem, desde que com o propósito de soltura dos mesmos em seus ambientes naturais. São exemplos dessa categoria de santuários aqueles voltados à manutenção ou reabilitação de felinos africanos, ursos, elefantes, iguanas, etc.

Santuários para animais silvestres: Deve possuir todas as licenças ambientais necessárias para manutenção e reprodução de animais pertencentes à fauna nativa regional ou migratória. Pode possuir propósito de reprodução dos animais, conforme a necessidade, mas deve ter suas atividades voltadas à reabilitação e soltura dos animais em seus ambientes naturais no menor prazo de tempo possível. São exemplos dessa categoria de santuários aqueles voltados à reabilitação de aves nativas, primatas nativos, jabutis e tartarugas tigre-d’água.

Pois bem, atualmente sabemos que a maioria dos santuários se depara com o mesmo problema: são sumidouros de recursos. Santuários dão abrigos a animais, os alimentam, os medicam, pagam seus funcionários e tudo isso com a boa intenção e os recursos próprios de seus mantenedores; são, portanto, instituições que prestam na maior parte das vezes um grande serviço, mas com alta dependência de voluntários e doadores. Alguns poucos santuários possuem um aporte financeiro constante de patrocinadores de calibre, mas em sua maioria são empreendimentos fadados a funcionarem de forma precária, frequentemente no limiar.

A maior parte dos santuários não se especializou em um tipo de fauna, nem pratica alguma forma de manejo integrado dos animais, e por mais que seus mantenedores tenham conhecimento sobre as técnicas mais adequadas de manejo, o fato de serem poucos santuários para uma grande quantidade de animais justifica tais ações. Santuários têm funcionado mais como abrigos de animais do que como santuários propriamente ditos.

O propósito de minha apresentação no ENDA era expor o problema e trazer uma solução: A necessidade de existência de maior número de santuários de animais que pudessem trabalhar de forma especializada e integrada, e que buscassem dentro do possível a autossustentabilidade.

Durante minha apresentação tentei demonstrar que uma das principais falhas dos santuários de animais no Brasil é a concentração maior de seus recursos na aquisição da terra e outros passivos. Tal investimento muitas vezes não se justifica, pois a maior parte dos recursos deveria ser destinada à construção de ativos.

Passivos são todos aqueles bens que consomem recursos, enquanto que ativos são os bens que geram recursos. Para exemplificar de forma breve, a posse de um terreno pode ser um ativo ou um passivo. Se a entidade se instala nesse terreno e ele não lhe gera nenhum recurso, pelo contrário os consome, o terreno será um passivo. Se a entidade possui o terreno e o aluga, ou com ele gera alguma renda, o terreno funciona como um ativo.

Eis um exemplo para se atingir relativa sustentabilidade de uma entidade: muitas vezes vale a pena colocar para alugar um bom terreno pertencente à entidade por um preço mais elevado e ao mesmo tempo pagar o aluguel de outro terreno menos valorizado, e com a diferença de preços manter o santuário. Mas não necessariamente ativos se constroem aplicando em imóveis, há várias outras formas de se gerar renda constante que pode resolver os problemas de um santuário de animais.

Para esses casos, um consultor financeiro deve ser bem mais útil do que um biólogo, mas o ponto a que quero chegar é que santuários de animais podem ser constituídos em terras alugadas ou arrendadas por sistema de contrato de vários anos, não havendo a necessidade de aquisição da terra. Cada caso deve ser analisado cuidadosamente.

Particularmente creio que o valor investido na aquisição de terras seria muito melhor aplicado na aquisição ou construção de uma indústria, cujo lucro pudesse ser empregado no santuário e, de preferência, cujos coprodutos pudessem ser utilizados como parte da alimentação dos animais. Até porque o governo subsidia indústrias e não santuários de animais.

Outro fator que desfavorece os atuais abrigos e santuários de animais no Brasil é que os mesmos,muitas vezes,não se especializam em determinados grupos de animais. A especialização facilita o manejo e contribui bastante para potencializar a manutenção dos animais.

Além disso, os recursos para manutenção dos animais invariavelmente necessitam ser adquiridos de terceiros e quase nunca são produzidos na própria propriedade, dificultando bastante a busca pela sustentabilidade.

Embora eu seja vegetariano (vegano) desde 1998 e tenha sido protovegetariano desde 1980, sempre me interessei bastante em estudar zootecnia e técnicas de produção integrada de animais. Creio que esse conhecimento pode ser aplicado também na manutenção de animais que não serão vítimas de exploração.

Santuários de animais podem aprender bastante com exploradores de animais, ainda que seus objetivos sejam totalmente opostos. Especialmente tem a ensinar aqueles exploradores que fogem ao modelo convencional de produção, baseado na monocultura, e que buscam integrar suas criações com outros processos. Devemos conhecer como funcionam os consórcios de criações, os consórcios de culturas, os sistemas de interação lavoura-indústria-pecuária, a rizipiscicultura, o sistema agrossilvipastoril, o sistema faxinal, a agroecologia e a permacultura, pois essas são soluções para que transformemos a posse da terra de um passivo em um ativo, e a manutenção dos animais de um sumidouro de recursos em um empreendimento minimamente sustentável.

Vejamos como cada um desses sistemas funciona e como eles se aplicariam a santuários de animais.

Consórcios de criações

Consiste na criação de várias espécies animais em uma mesma área, de forma pouco ou nada competitiva, e com potencialização de aproveitamento dos recursos e da sinergia entre espécies. Tomando como exemplo os animais de uma fazenda, vacas e búfalos pastam com a língua e se aproveitam do capim mais alto; cavalos, cabras e ovelhas, animais que pastam com os dentes, aproveitam como alimento o capim mais baixo. Os porcos posteriormente se alimentam das raízes e revolvem a terra, deixando o solo pronto para um novo plantio, preferencialmente como um consórcio de culturas.

Além do que, em um sistema como esse, o esterco que um animal gera acaba alimentando outros. Vacas adoram o esterco de porcos e galinhas, e as galinhas se beneficiam do esterco de porcos. Em fazendas que exploram vacas leiteiras o soro do leite serve para a alimentação de porcos. Os sistemas podem interagir de modo a evitar desperdícios e, embora santuários de animais não os explorem, há boas lições para se aprender de tais sistemas.

O consórcio de criações é prática bastante comum, por exemplo, na piscicultura. Peixes de diferentes espécies possuem hábitos alimentares distintos, então, colocar várias espécies que não se predem, ao mesmo tempo, em um mesmo tanque, possibilita um melhor aproveitamento dos alimentos naturais disponíveis nos diversos estratos, o que propicia uma maior produtividade.

As principais espécies cultivadas por essa prática e seus hábitos alimentares são a carpa comum (alimenta-se de pequenos vermes, minhocas e moluscos que vivem no fundo dos tanques, entre outros alimentos), o pacu (onívoro), a carpa capim (herbívora), a carpa prateada (alimenta-se de fitoplâncton), a carpa cabeça-grande (alimenta-se de zooplâncton), o curimbatá (alimenta-se de lodo) e a tilápia (alimenta-se de plâncton e detritos). Consumindo alimentos diferentes, e sendo espécies que não se atacam mutuamente, o piscicultor tende a criá-las juntas.

Além dessas interações entre espécies de peixes, muitos criadores consorciam criações de animais de fazenda (principalmente porcos) e aves de granja com a piscicultura. Nesse tipo de consórcio, os suínos ou as aves são criados em galpões sobre ou próximos dos viveiros de peixes e todo o material, fezes e urina, além dos restos de ração, escoa pela pocilga ou pelo galinheiro diretamente para dentro dos viveiros, para aproveitamento dos peixes.

O esterco das aves é especialmente ótimo para produzir plâncton nesses viveiros. No caso das aves aquáticas, seus comedouros podem ser colocados bem próximos às margens ou sobre uma ilha artificial de madeira ou tela dentro do viveiro. Estas providências evitam o desperdício de ração, pois os restos que caem na água também serão aproveitados pelos peixes. Além de adubar os viveiros, as aves intensificam a oxigenação por meio do movimento de ondulação das águas.

Consórcios de culturas

Consiste em uma técnica de cultivo de diferentes espécies vegetais em uma mesma área ao mesmo tempo, potencializando o aproveitamento dos recursos do solo, mantendo e melhorando suas propriedades. O plantio e a colheita dos diferentes cultivos podem ser no mesmo dia ou escalonado.

Várias são as formas de se consorciar lavouras, com diferentes vantagens para a produção, principalmente a médio e longo prazo. Nesse caso, a escolha das espécies deve obedecer a certos critérios, mas já há sistemas bem conhecidos comprovando vantagens para todas as espécies envolvidas.

O milho é um alimento importante para a manutenção de várias criações animais, além do próprio ser humano. Além do próprio grão, a planta e a palha podem ser aproveitadas como forragem. Convém, portanto, que esta cultura seja praticada na propriedade de qualquer santuário. Mas em um sistema de monocultura, a produção do milho tende a demandar muitos recursos, especialmente no que se refere à adubação e ao uso de pesticidas. Pode-se, porém, cultivar o milho consorciado a outros vegetais, especialmente aqueles da família das leguminosas (consórcio milho-leguminosas), que tem a capacidade de fixar o nitrogênio. Daí serem comuns as roças que consorciam o milho aos diferentes tipos de feijões, à soja, ao amendoim, à crotalária, etc.

Nos casos de santuários de animais que pastam, há possibilidade de que o milho e a leguminosa sejam consorciados com capim braquiária (consórcio milho-braquiária). Como o capim se desenvolve de forma mais lenta que o milho e a leguminosa, ele só começará a se desenvolver plenamente após a colheita dos grãos. Portanto, a mesma área de onde foram colhidos os grãos ainda servirá de pasto para os animais.

Em outras situações, o consórcio milho-leguminosa pode ainda integrar uma plantação de mandiocas ou de bananas, formando consórcios mais complexos, sendo que os animais se beneficiam nas sobras de todas essas culturas.

Outros grãos podem ser ainda integrados em arranjos de consórcios de culturas que gerem ao mesmo tempo renda para a propriedade e alimento para os animais (consórcios de algodão, amendoim, gergelim, milho, arroz, feijão e muitas outras culturas).

Além de gerar renda para a propriedade e alimento para os animais, esses sistemas potencializam a produção dos solos, mantendo e melhorando suas propriedades físicas, químicas e biológicas e diminuem a incidência de doenças, pragas e ervas daninhas.

Sistemas de interação lavoura-indústria-pecuária

Nesse sistema, além da interação entre os animais e a lavoura (onde os animais se beneficiam das sobras de cultura e forrageiras e a lavoura se beneficia com sua adubação), há a interação com uma indústria que beneficia os produtos da lavoura (como frutas, mandioca, milho, feijão, arroz, algodão, amendoim e gergelim), sendo que os animais se aproveitam das sobras dos processos e a indústria pode, por exemplo, se aproveitar do metano gerado pelos animais.

Esse sistema, além de trazer os benefícios do consórcio de culturas para a alimentação dos animais, agrega maior valor aos produtos que serão vendidos, fortalecendo o santuário economicamente.

Rizipiscicultura

A rizipiscicultura é uma prática ancestral asiática de criação de peixes em tanques de cultivo de arroz irrigado. Nesse sistema o peixe limpa o solo entre um ciclo de cultivo e outro, recicla a matéria orgânica e consome sementes de plantas invasoras e larvas de insetos, caramujo, bicheira da raiz do arroz, e restos de lavouras anteriores que podem ser focos de fungos. Os peixes não consomem as plantas de arroz plantadas, não prejudicando a cultura em si. Pelo contrário, nessa forma de cultivo os peixes diminuem a necessidade de investimentos com insumos agrícolas.

Embora santuários de animais não devam explorar animais, inclusive peixes, a rizipiscicultura é uma forma vantajosa de se produzir arroz e forragens para um santuário de animais. Além disso, um santuário de aves aquáticas, ou de búfalos d’ água, tartarugas tigre-d’água, capivaras, ou de antas, se beneficiaria bastante com adaptações desse sistema. Todos esses são animais com afinidade por áreas banhadas.

No caso de marrecos, já há experiência milenar com sua integração ao sistema na Ásia. A prática vem sendo utilizada no Brasil, desde a década de 1980 na região sul, onde as aves são verdadeiros predadores de pragas que atacam as plantações de arroz, como insetos, caramujos, arroz-vermelho, bicheira-da-raiz e plantas invasoras, ao mesmo tempo que espalham seu adubo pelo arrozal.Um santuário de marrecos se beneficiaria bastante do sistema, pois 30 marrecos poderiam ser mantidos a cada um hectare de arroz plantado, sem necessidade de alimentação complementar e investimentos maiores na lavoura.

Além dessas, há várias outras formas de interação agricultura-aquicultura que diminuiriam significativamente os custos com a manutenção de um santuário de animais.

Sistema agrossilvipastoril

Os sistemas agrossilvipastoris, ou sistemas agroflorestais (SAFs), são sistemas de produção que combinam a criação de animais (bovinos, equinos, ovinos e caprinos), com a utilização de espécies agrícolas (lavouras e pastagens) e florestais (exóticas e nativas) numa mesma área, de maneira simultânea ou escalonada no tempo. Esse sistema traz a vantagem de promover o aumento ou a manutenção da produtividade, com conservação dos recursos naturais e a utilização mínima de insumos.

Nesse sistema as árvores agem como quebra-vento, mantendo a umidade do solo, aumentando a fixação e ciclagem de nutrientes, restaurando as propriedades químicas, físicas e microbiológicas do solo, melhorando a qualidade da cultura agrícola ou pasto e proporcionando sombra aos animais. Um santuário de animais teria muito que se beneficiar com a implantação de tal sistema.

Dependendo da escolha de árvores a serem cultivadas, essas poderiam ser fornecedoras de madeira ou outros produtos florestais não madeireiros (resinas, látex, gomas, fibras, cipós, óleos essenciais, sementes, frutas, bagas, castanhas, nozes, temperos, plantas ornamentais, plantas medicinais, tinturas, taninos, rattan, bambu etc), funcionando como importante fonte de renda para o santuário.

Agroflorestas, apesar da grande presença de árvores exóticas, são boas formas de manutenção da qualidade ambiental e da produtividade da terra. Visualizo uma agrofloresta diversificada, cujos vegetais em sua variedade produzam boa renda para a propriedade e, visualizo também, animais que costumam ser explorados em outros sistemas vivendo de forma plena nessa agrofloresta o mais próximo possível de sua condição natural e em perfeita harmonia com o sistema.

Um sistema agroflorestal tradicional existente no centro-sul do Paraná é o sistema faxinal, onde as terras são divididas em dois grandes e diferentes grupos:

No primeiro grupo estão as áreas de uso privado das famílias, destinadas às plantações de produtos agrícolas como feijão, mandioca, batata-doce, amendoim, milho e centeio entre outras, tanto para subsistência quanto para venda de excedentes.

No segundo grupo estão as terras comuns à comunidade, espaço contínuo e sem divisões por onde circulam os animais de todas as famílias, se misturando. Nessas áreas também são plantadas árvores que servem aos propósitos da comunidade, especialmente araucárias, que fornecem madeira e pinhão, e erva-mate.

Um santuário de animais que abrigasse várias famílias poderia fazer uso de sistema semelhante, onde cada família teria sua produção agrícola de subsistência, mas ao mesmo tempo uma área comum de florestas com animais (onde os produtos florestais fossem bem comum da comunidade e os animais não tivessem mais status de propriedade).

Muitos outros sistemas de exploração animal devem ser conhecidos por aqueles que pretendem manter santuários de animais, pois muitos desses sistemas se aproximam bastante da sustentabilidade ecológica e econômica e, embora um santuário de animais jamais deva ver animais como recursos, a área como um todo pode sim ser fonte de renda. Santuários de animais devem fugir à sina de sumidouros de recursos e devem buscar a sustentabilidade.

Por Sérgio Greif

Fonte: Veggi e Tal

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