Sofrimento distante e a abordagem relacional à ética animal – Parte II

Sofrimento distante e a abordagem relacional à ética animal – Parte II

Na primeira parte deste artigo vimos em que consistia a abordagem relacional à ética animal e as implicações que se derivam desta posição para a consideração do sofrimento de seres distantes, humanos e não humanos. Vimos que aceitar esta posição tem consequências altamente implausíveis. Se é certo que não temos obrigações de ajudar os animais selvagens porque, ao contrário do que acontece com os animais domésticos, não estamos causalmente relacionados com o seu sofrimento, então, também não teremos a obrigação moral de ajudar, por exemplo, outros seres humanos distantes vítimas de desastres naturais.

A saída que alguns encontram para esta implicação indesejada é insistir na relevância moral das relações. O que gera deveres de assistência em nós face aos seres humanos ameaçados por causas naturais é um tipo particular de relação que mantemos, em virtude de pertencermos todos à comunidade humana. Alguns exemplos destas relações são a comunicação mútua, a reciprocidade, a cooperação, a organização conjunta de instituições políticas, familiares, etc. (Palmer, 2010, p.121). Assim, dizem, as obrigações positivas que temos face aos humanos distantes diferem daquelas que temos face aos animais distantes, dado estarmos envolvidos em relações moralmente relevantes com os seres humanos que não se aplicam no caso dos animais selvagens, pelo que devemos assistir os primeiros, mas não os segundos.

Contudo, como é bem sabido, estas relações também não se aplicam a todos os seres humanos. Alguns indivíduos, que apresentam diversidade funcional intelectual ou outras condições incapacitantes, não estão envolvidos em comunicação mútua nem reciprocam em qualquer relação política ou familiar. Mas se estas relações são o que gera obrigações de assistência entre seres humanos, então, aqueles humanos incapazes de manter tais relações estarão, por assim dizer, e num sentido moral, fora da comunidade humana. Portanto, não teríamos qualquer obrigação de ajudá-los. Contudo, esta conclusão parece inaceitável. A maioria das pessoas não estaria disposta a negar assistência a estes seres humanos. Contudo, assistir humanos em necessidade que não cumpram com os requisitos relacionais e rejeitar simultaneamente ajudar animais em circunstâncias similares, está injustificado, uma vez que se trataria de uma discriminação de determinados indivíduos pelo facto de não pertencerem à espécie humana (especismo).

Relevância dos atributos relacionais

Consideremos uma criança humana com diversidade intelectual, sofrendo de inanição, num país distante. Que razões temos para ajudá-la? Não é a nossa criança, não a trouxemos à existência. Não estamos causalmente relacionados com a situação particular de vulnerabilidade e dependência na qual se encontra. Para além disso, esta criança, dada a sua condição cognitiva, não reciproca com outros seres humanos nem nunca o fará. O dano que sofre é um acidente natural.

Se defendermos que as obrigações morais positivas são geradas por relações especiais que mantemos com certos indivíduos (humanos ou não humanos), claramente não temos razões para ajudá-la. Se, pelo contrário, defendermos assistir esta criança, estaremos a desviar-nos já de uma abordagem relacional, agindo com base noutros valores. As relações não parecem ser, portanto, o atributo relevante para decidir a obrigação moral de ajudar outros indivíduos.

O que parece ser, pois, relevante no momento de decidir se devemos ajudar esta criança é o seu bem-estar experiencial, isto é, o facto de ela poder ser afectada pelo que lhe acontece de forma positiva (sentir prazer) ou negativa (sofrer). Isto implica a possibilidade de ser prejudicada ou beneficiada pelo que lhe acontece. Então, se devemos ter em conta os interesses dos indivíduos, parece que ambas as formas de ter esses interesses em conta devem ser consideradas. Isto é, os interesses que justificam que nos abstenhamos de provocar um dano a esta criança são a razão pela qual devemos ajudá-la também.

Evidentemente, o bem-estar experiencial não está restringido às crianças humanas, mas está presente na maioria dos animais, incluindo aqueles que vivem na natureza. De fato, mesmo para autoras como Palmer (2010), o bem-estar experiencial é o que gera deveres negativos em nós. Dado que os animais possuem um bem-estar experiencial (exibem estados mentais de dor, medo e frustração), podem ser danados de formas moralmente relevantes. Portanto, os agentes morais têm a obrigação de abster-se de causar dor a todos os animais sencientes. Assim, se o bem-estar experiencial impõe restrições quanto ao que não devemos fazer aos animais, então o bem-estar experiencial também é relevante para saber como atuar positivamente com vista à satisfação dos seus interesses. Se o fato de os animais poderem sofrer é o que gera a obrigação de abster-se de causá-lo, então, esse sofrimento é relevante independentemente de quem ou do que possa provocá-lo.

Em suma, se temos obrigações positivas de ajudar outros indivíduos em necessidade, temos essas obrigações independentemente da espécie à qual esses indivíduos pertençam (humanos e não humanos). E se temos obrigações de ajudar outros indivíduos apesar da distância (como parece ser o caso), então, devemos ajudar aqueles animais em necessidade que estão perto de nós (domésticos), assim como aqueles que vivem em lugares distantes (selvagens).

Por Catia Faria

Mantida a grafia lusitana original.

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