Porque eu não sou ecologista

Porque eu não sou ecologista
Foto ilustrativa

Propusemos este texto em outono de 1988 para a revista ecológica Silence… que o recusou alegando-nos que este exprimiria apenas “uma determinada visão do mundo». Na França, éramos um pequeno grupo de militantes da causa que ainda não se chamava libertação animal, e nós pensávamos que o movimento ecologista — reputado pela sua “abertura de espírito» e do qual alguns de nós nos sentíamos próximos — fosse capaz de suportar tal debate. Face à censura e à violência das críticas, tivemos que desistir.

Na França, recentemente a ecologia foi atacada de forma bastante violenta e com sucesso, pois existe um certo público que alimenta o ressentimento antiecologista por desejar continuar poluindo sem limites. Espero que o leitor saiba fazer a diferença entre estes ataques e os meus. Eu atribuo uma grande importância à preservação da qualidade do meio ambiente na medida em que ela é necessária à vida, à felicidade dos seres sensíveis que o habitam. Mas não atribuo ao meio ambiente nenhum valor em si, não vejo nas “leis naturais” nenhum imperativo — elas são apenas enunciados de situações mais ou menos modificáveis. Até hoje, todas as ações de grande escala de intervenção no meio ambiente, foram motivadas pensando-se no bem dos seres humanos — quase jamais no bem dos demais “usuários”. Isso não implica em que a ideia de modificar a “Natureza” seja rejeitável, quando o objetivo for determinado levando-se em conta equitativamente os interesses de todos. Tais ações não são preocupações fundamentais atualmente, mas este debate me parece importante pelo menos no tocante ao plano dos princípios, pois a veneração pelas “leis naturais” é, em minha opinião, um obstáculo maior face às ideias da libertação animal.

Após ter circulado de mão em mão, este texto foi publicado na revista de Nantes Le Farfadet. Mesmo que, sob alguns aspectos, o texto tenha sido “datado”, o reproduziremos aqui com algumas pequenas modificações formais — pois se eu começasse a reescrevê-lo, não poderia dizer quando terminaria.

D.O.


Em geral, parece-me que os ecologistas divinizam a natureza e, ao mesmo tempo, fazem dela uma ideia medíocre e petrificada.

Surpreende-me ver como poucos participantes de movimentos alternativos na França deram o passo e pararam de consumir carne. Comer carne é ordenar o abate de um ser sensível que vive e que dá todo valor ao único bem que a que ele pode dar; ao único bem que ele possui: sua vida.

Eu me oponho aos ecologistas pois, para eles, a raposa que come a lebre é algo bom, enquanto isso preservar o “equilíbrio natural”, enquanto eu, vejo o sofrimento da lebre. Para achar isso “bom” é preciso ter o espírito fechado e ser cego para não notar o que na realidade isso representa. Os ecologistas somente enxergam na natureza as espécies; sem a intervenção do homem, estas espécies variam pouco, pelo menos visivelmente falando; a impressão de estabilidade que daí resulta proporciona um vago sentimento de repouso, de segurança; e eles falam então de harmonia da natureza.

A tortura é permanente na América Latina, e por causa disso seria ela harmoniosa? Os ecologistas acham bom que a raposa mate a lebre porque isso preserva uma ordem. A tortura também preserva uma ordem.

Jean Dorst, naturalista renomado:

Aqueles que desejam abolir a caça frequentemente não têm muita consciência do fio estreito que une a vida e a morte. É então necessário julgar sem nenhum sentimentalismo a caça e considerá-la como uma atividade “normal” e como a exploração legítima de um capital natural para o benefício e a satisfação esportiva do homem1.

Vários ecologistas pensam assim. Entretanto esta atitude mostra um imenso desprezo pelo citado sentimentalismo; quer dizer, contra a compaixão por seres que nos são próximos, pois acreditam que devemos fechar os olhos para os sofrimentos daqueles que denominamos “animais”; enquanto que a lógica científica, assim como o simples bom senso, insistem que nós também sejamos denominados como animais.

Frequentemente, os ecologistas não gostam da caça. Geralmente, e eu tenho certeza, por causa da antipatia que sentem pelo prazer de matar. Mas quando o confronto ocorre, apenas um ponto é questionado: os caçadores degradam ou não a natureza? A simpatia pelos animais é colocada em surdina, como se este sentimento causasse vergonha. Assim, certos ecologistas tornam-se aliados com os “bons” caçadores ou, com maior frequência, com os pescadores (essas pessoas pacíficas que, depois de terem furado uma minhoca qualquer, um bicho inferior, sufocam o peixe que ainda treme e rasgam a carne de suas goelas). Para os ecologistas, são “bons” caçadores ou pescadores, quando preservam o equilíbrio natural.
 

pou1-2Este cartaz, que apresenta uma raposa segurando um camundongo entre os dentes é obra dos “Amis des Renards et Autres Puants” (ARAP – Amigos das raposas e outros fedorentos), ou seja, ecologistas que se apresentam como “amigos” de (certos) animais. Com a finalidade de incitar os caçadores (humanos) a não mais matarem as raposas, a ARAP saúda cada um deles “que protege a natureza e respeita os outros caçadores”. A idéia de que a predação poderia ser uma realidade funesta nem lhes passa pela cabeça.

Antes pelo contrário, os ecologistas são, frequentemente, fascinados pela predação. Os animais com os quais mais se preocupam são os predadores (raposas, lobos, linces, aves de rapina…). É raro que um programa na TV, sobre a natureza, não mostre cenas sangrentas — mas tão belas — de leões caçando gazelas. Os manuais de ecologia privilegiam o estudo das “cadeias tróficas” — enquanto que os animais fazem outras coisas além de se alimentarem.

O “equilíbrio natural”

Preservar, equilíbrio, natural: o credo ecologista. Mas, imaginem, a “natureza” nunca foi equilibrada:

a) A natureza é o todo, a realidade. Homo sapiens faz parte da natureza. O cimento armado, o carro, as centrais nucleares, tudo é natural.

Se o homem tem, sem dúvida, e em um sentido mal definido, uma inteligência superior a todas as outras formas de vida, é uma particularidade natural. A lebre corre mais, o ser humano raciocina melhor, e, caso ele destrua o planeta, nada mais seria do que o resultado da evolução natural.

Isso não altera nada da nossa capacidade de escolha. Podemos ser contra os automóveis, as centrais nucleares e o consumo de carne não pelo fato de eles não serem “naturais” mas por causa do sofrimento e da morte que provocam. Faço parte da natureza e qualquer escolha que eu fizer será instantaneamente natural. A natureza não me dita as minhas escolhas.

Quando digo que somos animais, eu não evoco uma “parte animal” que existe em nós. Nós somos 100% animais. Também somos 100% humanos. E isso não faz 200%, assim como se eu disser que a água é 100% um líquido e a 100% um composto de hidrogênio.

b) A natureza, com o homem ou sem ele, não é equilibrada. Ela é o reino da harmonia e da dissonância, da continuidade e das transformações lentas ou catastróficas, da memória e da inovação. Ela é o reino da adaptação e da inadaptação.

Todo ser vivo pluricelular morre um dia. Um órgão minado pelo tempo para de funcionar, o organismo se envenena com suas próprias toxinas, os pulmões param, os órgãos sufocam; os músculos ficam sem oxigênio e produzem ácido lático. Para sobreviver. Que bela adaptação à situação. Tudo morre na ruptura do equilíbrio, o pânico. O sangue da lebre estraçalhada pela raposa tenta coagular para curar as chagas de uma pele que está sendo digerida. Onde está a harmonia?

A “Mãe Natureza”, que tudo prevê, não previu nada para a morte. Salvo a exceção de que, o que acontece a um animal quando ele morre, não tem nenhuma influência no futuro de sua espécie. Ao longo do tempo não ocorreu nenhuma adaptação fisiológica a esta situação. Como um animal morre, isso não interessa mais à “Mãe Natureza”, que, entretanto, previu a morte em sua ordem. Que ele se vire, em seu sofrimento ou na tranquilidade, o importante é que morra, pois não serve mais para nada!

A harmonia, para a lebre, se encontra talvez em suas longas patas traseiras que lhe permitem, com frequência, escapar da raposa. Mas a sobrevivência da espécie da raposa ao longo das eras atesta os limites desta harmonia.

A adaptação dos animais a seu meio ambiente é bem relativa. No verão as andorinhas vêm para a França a fim de comerem insetos voadores, faz calor e o ar é seco. Mas, quando chove durante vinte dias sem parar? Elas não conseguem se alimentar e morrem aos milhares. Seus filhotes também, de qualquer maneira, mesmo em condições “normais”, poucos são os destinados a sobreviverem mais que alguns meses.

As mudanças climáticas são um fenômeno constante. As glaciações do quaternário destruíram grande parte das espécies de plantas e animais europeus.

Diferentes tipos de plantas crescem em solos e sob climas diferentes. A agricultura “orgânica” deseja “respeitar a natureza”, oferecendo a cada planta suas “condições naturais”. Com efeito, na natureza, raras são as plantas que crescem em suas “condições ideais”. Elas crescem lá onde podem, até o extremo limite das regiões onde podem sobreviver. As plantas raquíticas e defeituosas são um fato da natureza. Além disso, a noção de “condições ideais” não faz sentido. Fundamentalmente, um cactos tem tanta necessidade de água quanto qualquer outra planta. Ele não é “bem adaptado” ao deserto, ele é menos mal adaptado do que outras, e ele se instalou no deserto por causa da menor concorrência que aí encontra. Em segundo lugar, ele pode ter perdido suas defesas, contra, por exemplo, os mofos, pouco virulentos em meio seco; o resultado é uma planta que sofre permanentemente de sede e é incapaz de viver em meio úmido. Um inadaptado por natureza.

A natureza, é a inovação contínua. Na Inglaterra, as raposas, expulsas dos campos, se instalaram nas cidades. Nos campos, elas cavavam tocas. Na cidade, elas se viram. Você acha que o instinto que lhes levava a cavar tocas tenha desaparecido? Para sobreviver, elas vão contra seus instintos. A primeira causa de mortalidade é, massivamente, o atropelamento por carros. A espécie prolifera? Vá ver a harmonia, vá olhar os cadáveres esmagados (não é preciso ir longe, aqui na França temos os pombos e os gatos)!

O homem destrói a fauna e a flora; há, se não me engano, uma espécie a menos por dia. Fenômeno novo, escandaloso, contra a natureza? Quando a deriva dos continentes uniu a América do Norte à do Sul, uma boa parte da fauna sul americana foi exterminada pelos predadores vindos do norte, que ela não conhecia. Fenômeno talvez detestável, mas antinatural?

A natureza evolui indo contra o natural. As raposas e os ratos nas cidades, as vacas homossexuais, os pássaros ingleses que tiram as tampas das garrafas de leite deixadas pelo leiteiro, são antinaturais. A lebre que corre para escapar da morte também vai contra sua preguiça, contra a parte de sua natureza que é hostil ao esforço.

Tenho dores nas costas, porque os ancestrais do homem agiram “antinaturalmente” e ficaram em pé.

Eu não nego inteiramente a harmonia natural. Ela existe pela força das coisas. Os peixes possuem brânquias, e vivem debaixo da água. É bom, é adaptado, é harmonioso, mas essa harmonia não me conduz a nada. Nenhum animal “obedece” à natureza. Se ele tem instintos é porque ele é assim, ele não obedece a seus instintos. Não há um deus-peixe que comande o indivíduo peixe. A natureza não obedece à natureza, ela é a natureza.

As leis naturais

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Eu não nego as especificidades do Homo sapiens, pois é uma espécie. Elas são para mim coisa importante. Eu posso ir contra meus instintos, contra uma parte de mim mesmo. Eu posso escolher. Eu creio que todo ser vivo escolhe, em um sentido, pois nele há contradições. Mas o homem o faz de modo mais claro. Amarrar-me a um deus-natureza, seria também ir contra minha natureza.

Gosto muito da natureza, quer dizer, da realidade. Amo a vida, que faz parte desta realidade, amo o prazer e a felicidade e também amo a felicidade alheia. Para mim o porco é um animal totalmente simpático. É insuportável pensar o que fazem com esses seres enquanto são criados e nos abatedouros. Que desperdício! Que inconsciência reduzir um ser sensível a pedaços de carne! E isso pelo pequeno prazer de comer carne!

Para mim isso é escandaloso, se eu achar ou não o animal simpático, se ele for ou não inteligente, bonito ou não; eu não reduzo a natureza a minhas simples afinidades pessoais.

Eu não acredito nos vegetarianos que dizem que comer carne não é algo natural. Parece-me provável que o homem, através da evolução, tornou-se adaptado para comê-la. Isso não muda nada, pois podemos viver muito bem sem comer carne.

Eu amo muito a natureza, amo o que ela traz: a vida, o prazer, e não gosto do que ela tira: o sofrimento, a morte. Eu amo os gatos e os ratos.

Eu não gosto da caça porque não gosto que matem as perdizes. “Sentimentalismo”, diz Jean Dorst? Não, mas a consciência do valor da alegria da vida da perdiz.

Tenho plena consciência da existência da morte. Quanto ao “fio estreito” entre a vida e a morte do qual fala Jean Dorst, com uma conotação um pouco mística, realmente eu não o vejo, eu apenas constato que todo ser vivo pluricelular morre um dia, eu lamento, mas até hoje eu não posso fazer nada contra isso. Assim como não posso fazer muito contra a fome no mundo. A fome é, talvez natural, mas não vou, por causa disso, pegar um fuzil para matar quatro ou cinco etiopianos para meu benefício e minha satisfação esportiva. Este benefício e esta satisfação esportiva são coisas bem sérias, aos olhos de Jean Dorst. Eu não as desprezo, todo prazer para mim é algo sério. Mas que desprezo ele e tantas pessoas mostram em relação a tudo que não corresponde a uma atividade humana produtiva, institucionalizável, econômica! Sentimentalismo! Jean Dorst é um homem sério. Um general também e o soldado que não quer matar o soldado “inimigo” demonstra sentimentalismo.

Jean Dorst tem razão ao dizer que a caça é uma atividade normal. A predação e o câncer também — mesmo se o fato desagrada aos místicos da natureza — existem há milhões de anos.

Eu não sou ecologista, porque não estou de acordo com a preservação do “equilíbrio natural”. Eu já disse que não acredito, como eles, neste equilíbrio. E acredito que o que existe é bom, mas desejo que seja ainda melhor. Aqueles que têm um câncer desejam viver, mesmo se vivendo podemos ter um câncer.

Um problema de ética

Se vivermos sem questionar muito as coisas, podemos criar uma ética simples, mesmo que ela não se fundamente em nada. A ética pode ser a de ir à missa e de voltar para casa para dormir tranquilamente. Pode ser a de seguir as leis, a de ser um bom comerciante e de vender as laranjas da África do Sul sem roubar os fregueses. Pode ser a de tentar seguir as “leis da natureza”, depois de tê-las inventado, assim como criamos Deus.

Eu não tenho uma ética simples. Minha ética é baseada na busca da felicidade, no fato de evitar a infelicidade. Eu creio que esta é a única base séria para uma ética. Mas não sei muito bem o que é a felicidade ou a infelicidade. Sei claramente que estas palavras têm um sentido para mim e os outros humanos, e não duvido que também tenham para as vacas e os peixes. Acho que têm também um sentido para as lagostas e os insetos, e não sei se têm para as plantas.

É fácil ter uma ética que, em vez de questionar as coisas difíceis a serem mudadas, decide classificá-las como sendo “boas”. A minha moral, eu quero considerá-la como construída sobre coisas reais; a alegria e o sofrimento são para mim coisas reais, como a água ou as pedras, mesmo que a física atual não as conheça. Eu não quero, então, por convenção, classificar qualquer coisinha de “boa”. E isso implica também o fato de viver na inconstância, na insegurança ética. É bom o fato de matar uma cobra, para salvar um grande número de rãs? Mas as rãs comem tantos insetos… Estes últimos se devoram entre si ou fazem mal para as plantas. Eu não sei se elas sofrem, se elas têm dores quando se sufocam reciprocamente, se envenenam, fazem sombras umas para as outras. Em muitos casos, eu não sei dizer o que é justo. Ou então, o que é justo é muito difícil de ser assumido: a cada passo que dou, arrisco de matar formigas. Talvez eu deveria suicidar-me para salvar as formigas? Não o farei.

Isso não impede que existam coisas simples que possamos fazer. Não comer carne é uma delas. Mas em minha incoerência infalível, aceito a crítica dos comedores de carne que frequentemente me perguntam “Mas você come as plantas, elas também são seres vivos” e isso sempre dito por pessoas que não se preocupam nem um pouco com o destino dos animais e das plantas. É verdade que é muito mais fácil, muito mais coerente ser 100% canalha do que um canalha pela metade.

Pergunto-me como é possível que com uma ética baseada na “ordem natural das coisas”, “a harmonia sendo resultante da competição e da seleção”, a maior parte dos ecologistas seja de esquerda, socialmente progressista. A ecologia à moda de Pétain, à moda de Hitler me parecem mais lógicas. Um(a) ecologista homossexual escutará frequentemente o comentário: “mas… a homossexualidade, é algo contra a natureza!” Alguns responderão que o homem, não é como a natureza; pois ela continua, em seu espírito, sendo o campo do imobilismo, das “leis naturais” às quais é necessário obedecer, um campo finalmente muito pobre, onde a liberdade não existe, apesar de sua diversidade impressionante.

Quando eu renuncio a criticar alguém é que, no fim das contas, o desprezo. A gente se pergunta se os ecologistas respeitam a natureza ou se estão sobre seu domínio. Não renunciei a criticar a natureza. Eu a estimo muito mais do que a maior parte dos ecologistas.

Em geral, os ecologistas são progressistas, mas sua adoração pela natureza deixa traços profundos. Sem falar da tendência deep ecology (“ecologia profunda”), pela qual (eu acho) a França foi pouco atingida (é a ecologia que acha que devemos deixar os etiopianos morrer em nome do equilíbrio natural), basta examinarmos o tratamento dado à imigração pelo programa do partido Verde francês “lamentando” (eles são contra a abertura das fronteiras, e isso por razões sociais, econômicas, etc.). Podemos logicamente deduzir que eles seriam a favor das expulsões das pessoas que entraram no território, a favor dos controles de passaporte e da “carte de séjour” (documento que controla e permite os estrangeiros viverem e trabalharem em solo francês), etc. Tudo isso, porque, são servis às “leis sociais”, às “leis da economia”, não enxergam que nada pode justificar a discriminação das pessoas por causa do lugar onde estas nasceram. Chegam a afirmar que desejam esta proibição visando o bem das pessoas, assim como um número da revista La Hulotte qualifica não sei mais qual médico predador pela sua vítima, sem parecer estar consciente do cinismo que isso representa.

…Os ecologistas estão cegos no nível humano por causa das “leis da sociedade” assim como estão cegos por causa das “leis da natureza”.

Possibilidades de ação

Na Inglaterra há mais de três milhões de vegetarianos. Pelo que eu saiba Silence nunca falou disso. Uma boa parte dessas pessoas têm como motivação principal recusar a violência cometida contra os animais. Os movimentos alternativos franceses acham natural falar de convivialidade, de outras relações humanas, imaginando friamente que, em uma sociedade ideal cada um mataria seu leitão, crescido de forma orgânica e descentralizada. Enquanto isso, eles comem bezerros criados em indústrias, ainda que continuem sensíveis ao problema dos hormônios, pois poderiam ameaçar a saúde, ou ainda compram seus coelhos orgânicos na cooperativa orgânica da esquina.

Na Inglaterra e na América do Norte há poderosos movimentos de anti-vivissecção, há a ALF (Animal Liberation Front), e grupo anti-vivissecção. A imprensa alternativa francesa se desinteressa completamente deste assunto. Entretanto parece que um pequeno movimento começa a se desenvolver na França: o FLA, e o grupo que recentemente liberou os cães da INSA de Lyon também existe.

O sofrimento que o homem impõe aos animais é, também, com efeito, a vivissecção, esta tortura cotidiana que acontece nos laboratórios. Sou contra, mesmo quando ela traz um benefício real ao homem. Se me demonstrassem que através do sacrifício de um gato poderíamos salvar milhões de pessoas da AIDS, eu hesitaria, sem dúvida; mas não é nisso que o problema se baseia. Sem falarmos da experimentação militar (os testes feitos com os gases de combate), que é fácil de ser condenada, constato que todas as experimentações feitas com animais são feitas para a conveniência e o benefício dos humanos; se eles querem um tal medicamento anti-cancerígeno, porque seria anormal que assumam o risco de testá-lo em si próprios? Se os seres humanos estão suficientemente motivados em ter um adoçante artificial para suas bebidas gasosas, por que não arriscam um pouco sua própria saúde, sua própria pele para obtê-lo? Em vez de condenar à morte e ao sofrimento os camundongos que, a priori, não têm nenhuma vontade de se entupir de ciclamato. Eu não nego o caráter de várias experimentações humanas, freqüentemente realizadas sem o consentimento do outro, mas como podemos achar menos escandaloso o sacrifício cotidiano de milhões de animais por grandes ou pequenas causas que nada têm a ver com suas vidas, e que são feitos com experimentações covardes, encorajadas por um público covarde que não ousaria sofrer nem mesmo dez por cento do que impõe a outros seres.

As barreiras que tranquilizam

Talvez vocês tenham compreendido: coloco no mesmo nível a vida de um ser humano e a de um animal. A vida humana, para mim, não possui nada de particularmente sagrado… Nada mais, em todo caso, do que o prazer de beber uma bebida com gás. A vida é feita de pequenos e grandes prazeres e desgostos e, arriscamos nossa vida e também a dos outros porque consideramos mais cômodo andarmos de carro. Arriscamos nossa vida pelo prazer de fumar. Mas colocar no mesmo nível a vida de um animal e de um ser humano! Que escândalo!

Na verdade, temos medo. Este “caráter sagrado” da vida humana aparece como uma conquista, uma garantia contra o nazismo, contra a “eutanásia” imposta, contra as execuções, etc. Que garantia eficaz! O automóvel: 11000 mortos por ano na França, frequentemente vítimas completas de uma escolha que outros fizeram por puro utilitarismo. No tempo de guerra, este “caráter sagrado” parece, de repente, ser relativizado. Sem falar das fomes mais ou menos programadas e que até deixam as pessoas bem indiferentes.

A “nova direita” francesa teve problemas em parecer como a campeã da liberdade de pensamento, face à quantidade de bagatelas às quais as pessoas “da esquerda” se fixam com desconfiança. Ao revisionismo responde-se com uma tentativa de proibir examinar contraditoriamente à história; à tortura proíbe-se o exame dos direitos dos homens… À vivissecção alguns respondem acenando com os “direitos dos animais”, noção absurda, não apenas porque a ideia de direito me parece ela mesma absurda — eu não vou discutir isso aqui — mas, enquanto acharmos normal que a raposa coma a lebre, em que consiste o direito da lebre? Alguns esboços dos “direitos dos animais” lhes proporcionam o direito de serem abatidos humanamente!

Para explicar porque sou contra o nazismo ou o racismo, preciso de mais palavras do que se eu lançasse um slogan sobre o “caráter sagrado da vida humana”. Minha explicação parecerá talvez mais longa e mais complicada, talvez menos evidente. Azar. Mas qual foi a eficácia do tabu que lançamos sobre o racismo durante anos? Hoje em dia este tabu cai por terra. Se ele limitou ou atrasou os estragos, melhor ainda, mas parece-me sobretudo que tenha evitado às pessoas “da esquerda” de refletirem.

A distinção fundamental que fazemos entre os homens e os outros animais tranqüiliza. Cada um em seu devido lugar nesta sociedade, cada um é reconhecido, tem sua carta de identidade, é protegido pela lei. Presume-se que essas leis garantem que nem mesmo o pior mendigo seja tratado como um cão. A segurança trazida pelas normas sociais, tem, apesar das aparências, pouco a ver com a segurança física. Temos mais medo, em nossa sociedade, de nos tornarmos fora da lei, de perdermos a “segurança social”, ou a aposentadoria, do que morrer dentro das normas em um hospital. Se as pessoas têm mais medo de serem atacadas na rua do que morrerem em um acidente de carro, é porque têm medo de se encontrarem face a face com alguém que não respeita as normas, e de não saberem como devem se comportar nesse caso.

Devemos aceitar viver na insegurança intelectual e ética. Não por prazer, mas porque o mundo é cruel e desconhecido e porque devemos ser honestos. Atualmente não tenho nenhum ideal imaginável a propor. O fim do capitalismo, uma sociedade igualitária, convivial, mesmo que habitada unicamente por vegetarianos, isso não significa muito para mim enquanto no reino animal existirem lebres mortas por raposas.

A boa consciência ecológica

Face à destruição do meio ambiente pelo homem, os ecologistas se agarram ao mito da preservação da Mãe Natureza. Eu fico revoltado com o extermínio das raposas; isso pode parecer contraditório com minha revolta contra o que as raposas fazem com as lebres. E aqui tenho um problema que não sei resolver. E tenho muitos outros, mais difíceis ainda. Porque eu deveria, pelo fato de chamar um problema um problema, ter a capacidade de propor uma solução, se possível imediatamente? Ninguém ainda conseguiu a cura para a Aids, isso não impede que sejamos conscientes que a aids é um problema e que procuremos soluções.

Mas isso amedronta. Se vamos contra a ordem da natureza, até onde chegaremos? Por medo, decidimos que a natureza é o bem. Por definição. Minha atitude é realmente perigosa, tenho a consciência disso. Não quero transformar o universo em um mundo planificado, regrado pelo homem. A alimentação sintética para as raposas, a contracepção para as lebres, esse tipo de idéia me agrada apenas pela metade. Tenho um problema que não sei resolver e tenho poucas chances de encontrar uma solução, ainda que teórica, enquanto eu for (quase) o único a procurá-la.

A divinização da natureza me parece não apenas estéril, mas algo também um pouco cínico. Poucos ecologistas “seguem” a natureza quando isso lhes atrapalha pessoalmente. Preservar a natureza é uma boa pedida, mas fazer-se predar por um leão, não, muito obrigado! Isso é bom para as gazelas. Pois a espécie delas sobrevive apesar de tudo. Mas, um ecologista a menos, será que isso colocaria em perigo a espécie humana?

A preservação das espécies, sob uma aparência de sabedoria-profunda-ligada-ao-cosmo, frequentemente esconde uma simples e dura atitude utilitária em relação à natureza. Nenhuma compaixão pela gazela que é um animal bonito a se observar, sendo apenas necessário se assegurar que sempre existam outras. Jean Dorst o diz claramente: a natureza é um capital de diversões para o homem. É necessário preservar os passarinhos: eles protegem nossas colheitas contra os insetos. Abaixo as centrais nucleares: seus lixos passam na cadeia alimentar e através dela até nós. Ninguém pensou em evacuar os coelhos que viviam ao redor de Chernobyl, condenados a uma morte terrível.

“O ser humano em primeiro lugar” dizem os ecologistas, os poderes públicos, quase todas as pessoas. Na Inglaterra, isso recebeu um nome: trata-se do “especismo” (speciesism), como “racismo” ou “sexismo”.

Uma outra compreensão da natureza

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Acredito, e isso é algo pessoal, que a natureza, quer dizer, a realidade, tem um sentido, ou mesmo vários sentidos. E o sentido que me parece importante, é o desejo tão amplamente difuso de aproveitar a vida. Este desejo deve representar um papel na evolução, mas não se confunde, nem de longe, com a preservação da espécie. Os cervos que se masturbam contra as árvores não estão buscando preservar a espécie.

O único respeito que tenho pela natureza, e este respeito é grande, é o respeito deste desejo de saborear a vida. Isso implica problemas. Mas eu creio que é dirigir-se, se não na direção da natureza, pelo menos em uma de suas direções. A única que me interessa.

Nota

1 Citado em Que choisir?, número especial “Week-ends, vacances : éclatez-vous”, été 1985, rubrique “Chasse”.

Por David Olivier / Desenhos de Doudou / Tradução de Anna Cristina Reis Xavier

Fonte: Cahiers antispécistes nº 7 (junho de 1993)


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