Educar o Estado

Por Dr. phil. Sônia T. Felipe

É preciso discernir atos individuais socorristas e de legítima defesa da própria vida, da vida de um familiar, ou de algum animal em situação vulnerável, que acaba de receber uma ameaça agressiva, dos atos de defesa abrangente de seres que não estão ao nosso lado, mas estão ameaçados por práticas tradicionais de tortura, exploração ou matança, como é o caso da vida de todos os animais silvestres e de todos os fabricados para acabarem no abatedouro. Não trato aqui dos últimos (vacas, galinhas, bois, porcos, perus, cabras, ovelhas etc.), porque cada pessoa tem o poder e liberdade para abolir essas práticas, as do abate e extração de leite, ao mudar sua dieta. Então, nesse caso, não há o que educar “os outros”, há que reeducar-se primeiro.

Vou tratar da questão dos animais ameaçados pelos caçadores, e, embora tendo os elefantes e rinocerontes em mente, o que escrevo vale para todos os animais do mundo que vivem em ambientes afastados de nós: baleia, panda, onça pintada, girafa, orangotango, chimpanzé, mico-leão-dourado, foca, urso e outros. Sua tragédia passa despercebida aos nossos olhos, seja pelo silêncio da mídia, seja pela abrangência e distância do território no qual se deslocam, seja porque não há política pública realmente defensora de suas vidas em ambiente silvestre.

No texto da coluna Matar não educa não há confusão de conceitos, mas há comentários fazendo confusão entre a “legítima defesa de si, dos seus e de vulneráveis em sua proximidade”, com a “a tomada em mãos de armas” para a defesa de milhares de animais que habitam territórios em outros continentes. Não que a distância seja um entrave à defesa ética do direito à vida desses animais. Temos o dever moral de cuidar de ambos os casos: dos pessoais e dos longínquos. E aqui encontramos dificuldades, porque mal sabemos como cuidar de nós mesmos, e estamos absolutamente próximos de nossos corpos e dos corpos dos membros de nossa família, e temos que cuidar da vida dos animais silvestres, dos quais sequer sabemos muita coisa.

Tal tarefa é um desafio novo, no sentido de que não faz 50 anos que começamos a falar desses assuntos na sociedade civil brasileira. Leis de proteção à fauna silvestre e contrárias à crueldade contra os animais existem desde Getúlio Vargas. Mas um debate ético de defesa da vida e do bem próprio dos animais não tem ainda 10 anos em nosso meio, e, diga-se de passagem, foi inaugurado por esta colunista, em conferências promovidas pela Sociedade Vegetariana Brasileira, pelo Instituto Nina Rosa e pela Sociedade Vegana, por todo o país, iniciadas há exatos nove anos.

Então, toda a geração que antecedeu a nossa, nossa própria geração e as que nos sucedem, todas precisam aprender como se faz isto: defender a vida de seres que não vivem na proximidade do ambiente no qual nós próprios vivemos, não são domesticados por nós, mas têm direito à vida, igual ao que declaramos ter. Esse desafio é tão grande quanto o de defender a vida de todos os animais mortos para virar comida, vestimenta, cosméticos, produtos químicos, diversão, lazer e arte.

A questão aqui não é apenas a da defesa da vida dos elefantes, um a um, o que caracterizaria “legítima defesa”, em seu ambiente natural, é, principalmente, a da formação de grupos armados para levar a cabo um trabalho que, por sua grandeza, abrangência e poder de devastação da vida, o Estado é responsável por fazer, mas não faz, porque nele ocupam as funções relacionadas a essas providências pessoas que não foram educadas para lidar com o tema, não têm a menor noção de qualquer coisa que diga respeito à vida dos animais ameaçados, ou, em casos mais arrepiantes, são elas as detentoras dos lucros da atividade de extermínio dos animais. Estamos neste estágio moral principiante. Temos que fazer as coisas sem orientação de uma autoridade moral habilidosa, porque as autoridades morais que nos formataram jamais se ocuparam do assunto, ou, quando o fizeram, foi para transmitir a falácia genesiana de que “Deus criou os animais para serem usados e mortos pelos humanos”, ou algo que o valha.

Em um Estado omisso em relação à responsabilidade de manter vivos, em seus respectivos ambientes, os animais de todas as espécies que habitam aquele território, quando os animais são exterminados por conta dos lucros que os caçadores obtêm com a matança deles, os cidadãos conscientes do dever de assegurar a vida de todos os animais, sem especismo eletivo ou elitista, revoltam-se e sentem o impulso de tomar as rédeas na condução de ações armadas que visem barrar a execução dos animais. O problema é que, quando os indivíduos tomam nas próprias mãos um empreendimento dessa ordem, o das armas, o Estado torna-se espectador do estrago que continua a deteriorar a sociedade civil, porque as ações desses indivíduos indignados não fogem do padrão moral tradicional, no qual matar é a ordem para atender a interesses urgentes. Não fugindo à lógica da matança, nenhuma ação empreendida será transformadora, abolicionista.

Ao falar em educação, refiro-me também à responsabilidade que temos de educar o Estado. Não o educamos, pegando em armas, individual ou grupalmente, para a defesa da vida animal. Por acaso, as milícias educam o povo onde elas se instalam “para resolver” o problema da bandidagem? Não! Elas são exatamente o que dizem querer combater: a bandidagem transvestida muitas vezes pela farda oficial, garantida com o soldo pago pelo erário público, porque muitos membros dessas milícias são pagos pelo Estado para exercerem a função de proteção dos cidadãos, e, ao mesmo tempo, extorquem os cidadãos ameaçando-os da perda de seus negócios. Quando o Estado exerce seu papel, educa-se, não pelos atos das milícias, mas pela pressão da sociedade para que ele desempenhe, finalmente, as funções para as quais existe. Educado, usa da inteligência para o exercício de suas funções, e, em sua atuação, as armas são coadjuvantes, não, protagonistas.

No caso da proteção da fauna silvestre, é urgente educar os Estados do mundo todo para que assumam essa responsabilidade. Mas, quando os cidadãos “com o brilho do gozo de matar, nos olhos”, assumem o lugar do Estado, não resulta em coisa boa.

Legítima defesa é uma figura que cabe aplicar às reações fortes ou até mesmo extremas, em resposta a uma agressão ou tentativa de assassinato, causadas na mesma cena, na qual o Estado não pode se fazer presente para nos oferecer qualquer defesa, defender um membro da nossa família ou qualquer ser vulnerável que se tornou vítima de uma agressão não previsível. Não devemos confundir as cenas de violência não previsível com a questão ampla da defesa da vida silvestre, pois a matança desses animais é costume institucionalizado, não é um acontecimento acidental nem incidental, é uma prática milenar que precisa ser enfrentada com soluções capazes de abolir a teia na qual essa prática é previsível por ser considerada normal, necessária, útil, desejável ou mesmo louvável. Qualquer solução que não eduque para a abolição das noções de normalidade, necessidade, utilidade, desejabilidade ou louvabilidade da prática milenar de matança de animais, seja lá qual a finalidade, não estará contribuindo para a extinção dessa prática. Estará apenas transferindo de um sujeito para o outro a iniciativa dela, mascarando assim sua real natureza, seja política, seja financeira.

A legítima defesa e o empunhar armas para ocupar a função que é do Estado são expressões de violência completamente distintas. Não as devemos confundir, porque a clareza em relação à diferença dos casos é que permite continuar raciocinando com inteligência na busca de práticas consistentes que tenham valor e duração contínua, quer dizer, valor abolicionista, práticas que possam tornar-se institucionais, pois o Estado só tem autorização para adotar práticas desse teor.

Se a violência contra os animais é previsível, se ela é costumeira, se ela é fonte de ganhos para indivíduos, empresas ou mesmo para os que ocupam as funções de poder delegadas pelo Estado, então, os indivíduos se armarem para enfrentar sozinhos os matadores não é uma solução abolicionista, porque o poder dos matadores é maior do que o desses indivíduos que se tornarão logo as vítimas desses matadores, ou tão matadores quanto eles. Se o Estado se omite e permite ou até mesmo lucra com a atividade econômica da matança de animais, então esse Estado precisa ser educado por nós para fazer aquilo que é pago com nossos impostos para fazer: defender a vida deles.

Mas, para que o Estado, que é surdo, cego, mudo e tanso (por ser apenas uma máquina, não uma pessoa dotada de capacidade de pensar, raciocinar e sentir) possa fazer isso devidamente, somos nós, os cidadãos que buscam esclarecer-se sobre a tragédia desses animais, quem devemos fornecer a ele os olhos, os ouvidos, a inteligência e a ética que por natureza ele não traz em sua bagagem. Se pegamos em armas para fazer a tarefa que cabe ao Estado, nos tornamos tão cegos, surdos e estúpidos quanto ele tem se mostrado na defesa da vida de seres vulneráveis. Não vamos pregar por aí que a estupidez é o que temos de aprender dele. Ele não é pedagógico. Tal solução não é abolicionista, é letal.

No que diz respeito à matança dos animais silvestres, ou dos produzidos em massa nos centros industriais de confinamento, a responsabilidade maior está nos que consomem os produtos ou derivados de produtos que resultam da matança. Dar tiro parece solução, porque cala uma vida, a daquele que estava atirando nos animais. Mas o sistema logo o substitui por outro matador, e a tarefa do defensor-matador apenas duplicará. Agora, educar as pessoas ao redor do mundo, esclarecendo-as sobre a origem daquele teclado do piano de cauda, daquele pingente, do bibelô comprado em viagens ao oriente, mostrando aos consumidores (que ignoram a razão da matança de elefantes) as imagens da pilha de cadáveres produzida por conta desse consumo, isso é trabalho pedagógico, demora décadas até surtir efeito, porque precisa apagar na mente das pessoas o prazer de ter isso ou aquilo, feito com marfim. Precisa apagar o prazer do desejo de ter tais objetos. Matar a pessoa que sente tal prazer porque foi condicionado em seu cérebro não abole jamais a prática de matar elefantes para extrair suas presas. O que precisa ser abolido não é a vida das pessoas condicionadas a certos hábitos de consumo, mas o direito de continuar consumindo o que é produzido à custa da dor, do sofrimento e da morte dos animais. Enfrentar a revolta desses consumidores e mesmo assim não parar de argumentar em defesa dos animais, isso é trabalho para décadas, um trabalho que mostra resultados, como o da abolição do uso de peles e das fábricas de animais mortos para extração de peles, algo que alguns países finalmente começaram a fazer, pressionados pela sociedade civil, não pelas armas. Se você quer que alguém não fique do lado de suas ideias, aponte uma arma para ela. Ela pode calar. Mas não é verdade que quem cala consente. Essa foi mais uma falácia inventada pelos torturadores para gozarem duas vezes: com a tortura e com o silêncio da vítima em estado de choque.

Os apressados não querem fazer um trabalho abolicionista. Querem resultados no curto prazo, para uma tirania sustentada durante milênios, a mesma tirania que formatou em suas mentes a ideia de que matar é a solução. Respire fundo. O trabalho mal começou.

Fonte: ANDA 


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