O sofrimento das vacas e vitelos

O sofrimento das vacas e vitelos

 Curso de Extensão

Implicações éticas, ambientais e nutricionais do consumo de leite bovino abordagem crítica

[Auditório do Centro de Educação UFSC – 10/5/13]

O sofrimento das vacas e vitelos

Dr. phil. Sônia T. Felipe

O princípio da igual consideração de interesses semelhantes – elaborado na ética prática animalista, iniciada na metade da década de 70 do século XX, em Oxford, pelo jovem estudante de Filosofia, Peter Singer, ao mesmo tempo em que a revolução verde colhia seus primeiros sucessos -, exige a incorporação da dor e do sofrimento dos animais não-humanos à reflexão ética. Segundo esse princípio, os interesses fundamentais dos animais não-humanos são tão relevantes para eles quanto o são os nossos, para nós. Não há distinções especistas entre direitos fundamentais quando se trata de seres sencientes, isto é, cientes de sua dor e capazes de sofrer.

Nestes quesitos, da sensibilidade à dor e da capacidade de sofrimento, todos os animais são iguais. Se sentem dor, é porque seu éthos ou natureza específica os dotou de capacidade de diferenciar o bom, do ruim, pelo menos para si. O que é ruim faz mal ao animal. Se lhe faz mal, a sensação será dolorosa. Nenhum animal está numa posição privilegiada quando se trata da vulnerabilidade à dor e ao sofrimento. O éthos ou natureza biopsicológica de todos os seres sencientes é forjado para a fruição do bem, representado pela vida livre e saudável.

Na comunidade científica inglesa, o mais destacado estudioso da mente das vacas é o médico pesquisador e professor da Faculdade de Veterinária da Universidade de Bristol, Dr. John Webster, autor do livro, Understanding the Dairy Cow [Entendendo a vaca de leite], publicado em 1993. Até a publicação desse livro, falava-se ainda com certa inocência, mesmo no meio acadêmico, da incapacidade das vacas de sentirem dor ou prazer. Desde então, definitivamente, esse discurso indiferente e ignorante perdeu qualquer chance de sustentação.

Entretanto, as fontes de sofrimento, no caso das fêmeas bovinas usadas pela indústria de extração do leite, são várias, a começar pelo tipo de alimentação oferecida a elas, constituída de grãos e cereais, inadequado ao seu sistema digestório, evoluído para a digestão eficiente de gramíneas, até as instalações nas quais as vacas são alojadas, no sistema de confinamento completo, e mesmo no de semiconfinamento, adotado pela maior parte dos países produtores de leite. A combinação desses dois manejos e seus desdobramentos alcança finalmente o ápice doloroso para as vacas, levando-as à morte por exaustão, ou ao seu descarte final para o abatedouro, quando esgotada a cota de hormônios que permite a gestação e a lactação, estimuladas por hormônios sintéticos e geneticamente modificados.

Quando alguém pega a caixinha de leite de sua geladeira e se serve do líquido que se acostumou a consumir por considerá-lo precioso, basta inclinar a caixinha, para que o leite escorra suavemente para o copo. Essa suavidade cria a falsa imagem de que é assim que ele escorre do teto da vaca para o contêiner no qual é coletado. Quase ninguém se dá conta de que não é com a mesma suavidade que o leite sai do úbere das vacas. A palavra inglesa milk deriva da latina, mulgeo, que significa “obtido por pressão suave das mãos”[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, 40]. Esse sentido original evoca algo que não existe no sistema industrial de produção de leite e laticínios: a extração do leite por pressão suave das mãos.

Para que o leite da vaca esteja fora do corpo dela, só há duas alternativas: ou foi sugado pelo bezerro, ou extraído à força. Nesse caso, o método pode ser manual, quando se trata de um número muito pequeno de vacas para ordenhar, ou a vácuo, quando teteiras de sucção movidas à eletricidade são acopladas aos tetos. O vácuo força os esfíncteres dos tetos a se dilatarem e o leite sai. As mulheres que já amamentaram podem muito bem imaginar a realidade das vacas, com seus úberes sofrendo o impacto do vácuo em tal grandeza que os músculos dos mamilos (tetos) se dilatam, abrindo a passagem para a saída do leite. Se o leite encontra-se retido no úbere é por uma boa razão: ele foi secretado para alimentar o bezerro. A vaca o dá ao filho, mas não aos humanos. Submeter o corpo de uma fêmea a esse manejo igual ao que opera máquinas numa cadeia produtiva implica violência brutal contra seu éthos feminino mamífero. Temos aqui uma brutalidade de gênero. Mas ninguém a vê, porque a crítica ao machismo ainda é especista. Ela não se dirige a humanos de ambos os sexos para tratar da violência que a dieta padrão representa contra todos os animais usados para alimentar homens e mulheres, sem distinção alguma de gênero.

O traço mais característico do éthosi> animal é a liberdade física. Sem ela, o animal é condenado a interações que o subjugam, algo para o qual sua mente não evoluiu. Isso vale para qualquer espécie animal, voadora, nadadora ou andadora, não apenas para a humana. A mente específica de cada animal forma-se nas experiências peculiares comuns aos indivíduos da mesma espécie e nas particulares a cada sujeito individual, de modo que é nele que está sediada a fonte de orientação, ou consciência, no ambiente natural e social de sua existência. No manejo industrial de animais, não é possível respeitar a individualidade, a personalidade, a consciência e a liberdade ou éthosespecífico de cada animal. A condição de vida dos animais confinados no espaço industrial de produção de alimentos acarreta atrofias físicas e mentais e prejuízo ao bem-estar e ao bem próprio do animal. O confinamento impede o animal de qualquer iniciativa para autoprover-se e estabelecer vínculos sociais dignos de sua espécie, a seu próprio modo.

Vacas não mentem

O boi, escreve Luis Fernando Veríssimo, “tem o ar de quem está só esperando que lhe peçam uma opinião. O boi tem teses sobre a vida, e que até hoje ninguém se interessou em saber.”[Veríssimo, apud Felipe, Galactolatria, p. 106].

Os animais, de modo geral, por influência de Descartes desde os meados do século XVII, foram considerados, tanto pela filosofia quanto pela religião e a ciência, destituídos de mente e de qualquer habilidade cognitiva e emocional. Tal hipótese, definitivamente descartada pela neurociência desde a Declaração de Cambridge sobre a Consciência Humana e Animal, de 7 de julho de 2012, deixou de ter valor científico, mas o senso comum ainda a propaga. As vacas, ao contrário dos cães e gatos usados para companhia, guarda e estima doméstica, são tidas pela quase totalidade dos humanos como animais destituídos de sensibilidade, consciência, capacidade de interação e de comunicação intraespecífica. As pessoas confundem a vaca real com as figurinhas de vacas estilizadas colocadas nas embalagens de produtos lácteos. Essas são as únicas vaquinhas destituídas de mente, consciência, sensibilidade, afetos e emoções, não as que estão nas engrenagens da ordenha todos os dias.

Em 6 de julho de 1953, relata John Robbins, em seu livro, Diet for a New America [Dieta para uma Nova América], editado em 1987, nos Estados Unidos, sem tradução no Brasil, um juiz da Califórnia teve que dar uma sentença no processo no qual o cidadão Mike Perkins foi acusado por seu vizinho de lhe ter roubado um bezerro e o ter marcado com sua inicial para fazer parecer que fosse seu. Não havia quaisquer evidências da veracidade da acusação, apenas a palavra do denunciante contra a do denunciado. O juiz pediu ao delegado que, sem que ninguém o soubesse, levasse a mãe do bezerro até a propriedade de Perkins, onde o bezerro já marcado com o “P” se encontrava. Mal a vaca chegou ao local, dirigiu-se mugindo em direção ao lote de bezerros soltos no pasto e foi direto lamber a ferida do ferro em brasa que marcara seu pequeno bezerro. Essa foi a única prova que o juiz obteve de que a denúncia procedia. O fazendeiro Perkins foi condenado pelo “testemunho da vaca”. [Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 108]

Se não houvesse consciência, memória, inteligência e afeto bovinos, a vaca não teria recursos cognitivos para identificar seu bezerro, não teria se afligido ao ver o ferimento, não teria tratado do ferimento no corpo do seu bezerro com sua saliva. Teria ficado ali, no meio da manada, sem noção do que fazer, sem qualquer habilidade cognitiva para levar a efeito seus atos. Teria, quando muito, lambido qualquer dos bezerros recém-marcados, não, exatamente, o seu.

Porcos, vacas e galinhas são excluídos até mesmo das leis bem-estaristas, quanto mais das leis que garantem direitos aos animais, porque são vistos não como seres sencientes, mas simplesmente como matéria alimentar humana. São citados nos tratados de bem-estar animal apenas porque os maus-tratos podem baixar a qualidade dos produtos nos quais serão processados. Segundo Robbins, há uma convicção generalizada de que “se pode ser tão cruel quanto se queira com esses animais, visto que serão comidos mais tarde”,[Robbins, 1987, apud Felipe, Galactolatria, p. 108], desde que a crueldade não acarrete prejuízos aos produtores e consumidores.

Por outro lado, a concepção jurídica especista eletiva (que escolhe algumas espécies animais para proteger, enquanto extermina bilhões de outros para comer, vestir-se, divertir-se e fazer testes), está presente na moralidade desde os primeiros projetos de lei aprovados na Inglaterra, no primeiro quartel do século XIX, em defesa dos animais. Neles, apenas os animais usados para tração, sequer os cães ou gatos, foram considerados dignos de respeito. Nas palavras de Tom Regan, os animais são sujeitos-de-suas-vidas.[The Case for Animal Rights, apud Felipe, Galactolatria, p. 109]. Mas o especista eletivo discrimina os animais que não elege para estima. Para o especista elitista e antropocêntrico, a dor humana merece respeito, a bovina, não. As vacas são um exemplo de animais que sofrem a discriminação especista eletiva. Apesar de serem animais domesticados, tanto quanto o foram os cães, cavalos e gatos, elas não são consideradas dignas do respeito à vida, à integridade física e emocional, à liberdade, ao desenvolvimento de acordo com as peculiaridades de seu éthos bovino.

Há quem interprete a calma das vacas como indício de insensibilidade ao que ocorre a elas, ou uma espécie de ausência mental em relação aos efeitos de tais estímulos, o que caracterizaria ausência de consciência. Entrevistando um empresário de leilões de bovinos, John Robbins ouviu o que pode ser um resumo das convicções que movem o setor galactocrata do agronegócio. Mais ou menos nestes termos, o promotor do leilão, ao ser questionado por Robbins sobre sua posição pessoal em relação ao fato de os animais serem tratados nos leilões como se fossem mercadorias, respondeu-lhe que isso “não o aborrecia”, pois leiloar animais não se “distinguia de outros tipos de negócio”. Quanto à acusação dos defensores dos animais, de que eles maltratam o gado, o leiloeiro afirmou que se “pode ser mais eficiente quando não se é emocional”. Para resumir, declarou: “Estamos num negócio, não na Sociedade Humana (Human Society), e nosso trabalho é vender mercadorias com lucro. Isso não difere de vender clipes de papel ou refrigeradores.”[Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 110].

Coerente em sua lógica de que animais não diferem de clipes de papel, a indústria do leite também vê a vaca como uma bomba galactífera, instalada sobre quatro patas, uma “máquina cuja finalidade é produzir leite para dar lucro”. Robbins escreve: “Ela é criada, alimentada, medicada, inseminada e manipulada com um só propósito – a máxima produção de leite a um custo mínimo.”[Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 110].

Há evidências de que as vacas possuem vida mental com traços específicos de consciência, emoção, memória e sensibilidade. O manejo que embota seu éthos bovino as leva ao estresse. Na esteira da produção industrializada do leite, boa parte do rebanho sofre tanto com as alterações ambientais e sociais exigidas pela eficiência laticínica que é necessário dar-lhes calmantes.[Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 111].A agitação que a vaca hoje demonstra contraria seu éthos primordial. Segundo o éthos bovino não interferido pelo ser humano, a serenidade da vaca não indica indiferença ou insensibilidade ao que a afeta.

Cientistas de diferentes áreas, da biologia, passando pela veterinária e chegando até à psicanálise, arrebanharam, com suas pesquisas, material suficiente para derrubar as hipóteses tradicionais sobre o vazio emocional das vacas. Tristeza, aborrecimento, infelicidade, termos antes aplicáveis apenas a humanos, são hoje usados pelos etólogos para designar estados mentais bovinos, sem risco de antropomorfização, isto é, de usar modelos que seriam apropriados exclusivamente à descrição da mente humana, para descrever mentes não-humanas. A cientista Temple Grandin, incapaz ela mesma, por sofrer de autismo, de sentir ou expressar emoções, diagnostica sem dificuldade o estado de tristeza numa vaca, quando separada do vitelo que acabou de parir. As pessoas, afirma Grandin, não podem se permitir sequer pensar que vacas sofrem emoções similares às que as mulheres sofrem quando separadas de seus bebês. A vaca muge de saudade, angústia, luto. Mas, sobre esses estados emocionais, ainda não há grande coisa escrita, declara.[Masson, apud Felipe, Galactolatria, p. 112].

As vacas são capazes de estranhar algo que sai da rotina. Seus sentidos de olfato e visão são muito aguçados. O da visão, por exemplo, tem o dobro do alcance da humana. Seus olhos estão posicionados de modo a poderem ver amplamente o que se passa no campo à sua volta, percebendo a aproximação de qualquer predador aos bezerros. A vaca, de fato, reconhece sua cria pelo tom da pele até certa distância. A partir desse ponto é seu sentido olfativo que amplia sua capacidade de registrar a presença de qualquer ameaça aos pequenos. Esse sentido é tão aguçado, nos bovinos, que eles podem detectar o cheiro de sódio no ar a uma distância de quatro quilômetros. O olfato da vaca funciona como um radar. Ela identifica nas proximidades dos bezerros qualquer odor emitido por um predador, ainda que o bezerro não esteja ao alcance de suas vistas.[Masson, apud Felipe, Galactolatria, p. 113]. Isso explica por que, às vezes, elas se assustam com algo que não vemos. Elas o detectam pelo olfato. Estranham a cor do pelo do novo vitelo quando destoa da cor dos anteriores.

Podemos imaginar o impacto emocional e adrenal delas ao serem empurradas para o caminhão e depois para a esteira da morte. O sentido olfativo bovino explica a ansiedade e o pavor que as vacas (bovinos em geral) sofrem com o cheiro do sangue dos animais abatidos no mesmo espaço, mas sem que sua vista os possa alcançar na câmara de sangria, pois estão isolados delas pelas paredes do corredor da morte. O impacto olfativo os deixa em estado de choque. Rosamund Young, entrevistada por Masson, responde afirmativamente à pergunta dele, sobre se as vacas têm, ou não, consciência da morte. Sim, o cheiro de sangue as deixa agitadas.[Masson, apud Felipe, Galactolatria, p. 114].

No vídeo A carne é fraca, produzido no Brasil em 2004 pelo Instituto Nina Rosa, a médica da faculdade de veterinária da Universidade de São Paulo, Doutora e Professora Irvênia Prada,[Apud Felipe, Galactolatria, p. 114]. especialista em neuroanatomia animal, confirma que os animais, nesse momento, apresentam midríase, a dilatação das pupilas que ocorre no estado de choque, quando, diante do risco de morte, mas, sem poder lutar ou fugir, o animal tem seu metabolismo completamente inundado pela adrenalina, com os efeitos adversos que isso representa para a fisiologia natural dos seus músculos, incluindo os cardíacos, nervos e sistema nervoso central.

A inexistência de qualquer expressão de dor, quer dizer, o estado de choque no qual a vaca fica ao ser ferida não traduz insensibilidade à dor, muito menos ausência de consciência dos estímulos dolorosos que a afetam. É possível usar o que vemos nos humanos e com isso julgar o que ocorre aos animais, sem antropomorfizar. Por isso, é bom lembrar que há humanos capazes de suportar estoicamente estados dolorosos. Deveríamos desprezar sua dor, por não ser expressa de modo ruidoso, convencional? O que, afinal, merece ser respeitado, o estado de dor do animal, ou sua capacidade de expressar e representar essa dor para si e para os outros?

O Professor Donald Broom, responsável pela cadeira de Bem-estar Animal, da Universidade de Cambridge, esclarece que “somente os animais acostumados a receber ajuda, gritam ao sentirem dor ou serem feridos. Esse é o caso dos cães, porcos e humanos. Todavia, para citar duas espécies mamíferas, vacas e ovelhas não têm a expectativa de receber socorro. Nesse caso, gritar só atrairia a atenção do predador”.[Broom, apud Felipe, Galactolatria, p. 116]. Seguindo esse argumento, Masson conclui: “não há dúvida de que a respeito de animais que não gritam não se pode dizer que não sintam dor, ou que a sintam menos […]. Os humanos simplesmente não buscam compreender as emoções dos animais. Isso não quer dizer que elas não estejam lá.”[Masson, apud Felipe, Galactolatria, p. 116].

O experiente estudioso do éthos bovino feminino, Professor John Webster, explica:

“A maioria das muitas espécies que gritam nascem em ninhadas e não individualmente. Se uma coelha grita ao ser capturada, seus filhotes podem fugir… o veadinho das planícies africanas não tem a quem apelar. Se ele gritar, mancar ou expressar outros sinais de aflição, ele se torna o indivíduo marcado pelo leão como presa fácil. É assim que a vaca domesticada e a ovelha se portam, de modo estóico, isto é, elas procuram não revelar o quanto algo lhes está doendo.” [Masson, apud Felipe, Galactolatria, p. 116].

De acordo com a médica Marthe Kiley-Worthington, especialista em gado bovino, “poucas devem ter sido as mudanças na organização social, no sistema de comunicação e no comportamento, do ancestral selvagem à vaca domesticada”.[Masson, apud Felipe, Galactolatria, p. 115]. Sua declaração corrobora a suspeita de que as condições mentais ou o éthos bovino se mantiveram praticamente os mesmos ao longo dos milênios de sua existência. A privação social e emocional que o confinamento e o sistema de produção em massa, tanto do leite quanto da carne, representa para esses animais, deve corresponder proporcionalmente a uma variedade de estímulos dolorosos e estressantes dos quais esse animal, olfativa e visualmente sensível, não pode esquivar-se. Segundo a doutora Kiley-Worthington,

[…] a evolução preparou a mãe vaca para se portar de certo modo em relação a seus pequenos. Tudo está projetado para proteger o vitelo vulnerável. O gado esconde sua cria e, nessas espécies, os vitelos praticamente não exalam cheiro nos primeiros dias de vida, reduzindo o risco de atrair predadores. Se a mãe vaca não pode lamber seu vitelo (para garantir que não exale cheiro algum), não pode alimentá-lo e não pode estar com ele dia e noite, isso produz um estresse mental e fisiológico talvez só compreensível para as mulheres que perderam seus recém-nascidos.[ Apud Felipe, Galactolatria, p.115 ].

Carne de vitelo

A utilidade do vitelo, para a produção galactífera, finda com o parto. Sua gestação foi tolerada por uma só razão: disparar o gatilho hormonal que forma a secreção mamária. Segundo Peter Singer e Jim Mason, quase todos os bezerros paridos pelas vacas usadas para extração do leite destinam-se ao mercado de carne de vitelo. Os que nascem com deformidades ou muito debilitados são “imediatamente abatidos e transformados em ração para animais de estimação”.Quem mantém animais sob sua guarda e os alimenta com rações industrializadas consome carne de vitelos, descartados pela indústria laticínia. Ingerir leite e laticínios implica em cumplicidade com o assassinato de todos os bezerros (recém-nascidos machos bovinos), “inúteis” para a indústria do leite, da vitela e da carne, e, em sua maioria, também para outros processamentos. Os poucos que nascem fortes “são criados para o corte”[Masson, apud Felipe, Galactolatria, p. 41].]. ou usados em cirurgias cardíacas experimentais de transplantes, substituindo cães.[Fox, apud Felipe, Galactolatria, p. 41]. A sequência de torturas sofridas pelos vitelos é de tal ordem que Singer e Mason chegam a escrever que o abate imediato após o nascimento é, do ponto de vista do vitelo, um gesto menos cruel do que seu confinamento por quatro meses,[Singer; Mason, apud Felipe, Galactolatria, p. 41], nas condições descritas a seguir.

Os vitelos são colocados num cubículo, privados do contato físico com sua progenitora, de alimentos com nutrientes essenciais para seu desenvolvimento e saúde, de água (assim ingerem maior quantidade da mistura sem ferro que os manterá anêmicos até o abate), de espaço para mover o corpo e de luz solar. Para evitar contato com a luz, que os estimula, as paredes são pintadas de preto. As luzes são acesas somente na hora da comida.[Singer; Mason, apud Felipe, Galactolatria, p. 42]. A cegueira, uma das muitas sequelas dessa condenação, anuncia a morte por exaustão.[Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 42]. Ao final de quatro meses, os sobreviventes dessa dieta são enviados para a morte.

As acusações contra esse método italiano (Provimi) de manejo de vitelos foram dirigidas à indústria da carne de vitelo pela Farm Animals Concern Trust – FACT, dos Estados Unidos. Ao ler as acusações e não tendo como contestá-las, um desses empresários as enviou ao editor do The Vealer USA, porta-voz da indústria de vitelo, que lhe respondeu: “Obrigado pela informação sobre a FACT. Lamentamos ser incapazes de desmentir quaisquer das afirmações.”[Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 43].

Os vitelos são acometidos de doenças respiratórias e intestinais e recebem drogas para combater a pneumonia que os ataca em função da anemia. Mesmo recebendo doses maciças de drogas, tanto via oral, quanto injetáveis, entre as mais comumente usadas, nitrofurazona e cloranfenicol, muitos morrem antes de completar os quatro meses.[Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 44]. Para coroar a lista de privações às quais são submetidos, os vitelos são impedidos de se deitar confortavelmente, além de serem privados de cama de palha, folhas ou serragem. Sua desnutrição é de tal ordem que, se lhes fosse fornecida uma cama de palha, folhas ou serragem, eles a comeriam,[Singer, apud Felipe, Galactolatria, p. 44].buscando, por essa via, o ferro e outros minerais não fornecidos por seus nutricionistas. Os bezerros confinados nesses caixotes são impedidos de andar, saltitar e correr.[Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 44].

O peso de um vitelo, na hora do abate, no sistema tradicional, geralmente não passava de 70 kg. O ordenamento capitalista desafiou e seduziu os produtores e consumidores: e se alguém conseguisse agregar mais 100 kg ao peso original de 70 kg de cada vitelo, sem que sua carne seja enrijecida? A indústria da carne de vitelo realizou a mágica ao inventar o método Provimi para acumular mais matéria sem músculo no vitelo aprisionado. Indubitavelmente, tal mágica é realizada à custa de imenso sofrimento para os pequenos, que são mantidos vivos por 120 dias, nos quais sofrem diarreias, contraem pneumonia, não podem usar o corpo para deslocar-se no ambiente, não podem interagir com seus pares ou com sua progenitora. Foram forçados ao nascimento para sofrer todo tipo de violação ao seu éthos.

Não importa, para os empresários e comedores, o quanto sofra um vitelo confinado num caixote no qual nem pode se mover, passando fome, sentindo tonturas, enjoos, fraqueza, perdendo o sono e vivendo ao mesmo tempo atormentado com o desconforto de uma sonolência que não tem fim, sintomas bem conhecidos dos humanos que sofrem anemia. O que importa, para os comedores, é satisfazer um prazer absolutamente trivial, esse de degustar uma matéria carnosa sem resistência ao corte, tão macia que pode ser cortada usando-se apenas um garfo. Quem consome leite e laticínios autoriza esse tormento animal. Se não houvesse extração de leite para consumo humano, não haveria gestação de bezerros descartáveis.

Os vitelos são instalados em caixotes de 56 cm de largura por 1,38 m de comprimento, um espaço tão pequeno que os animais mal podem se mover para os lados e jamais podem girar seu corpo, completando um círculo. Amarrados pelo pescoço, não podem mudar de posição, nem olhar para qualquer outro ponto, a não ser o que fica imediatamente à frente de suas cabeças. Lembrando o que já foi exposto, a visão bovina é duas vezes mais ampla do que a humana. Privar esses animais de estímulos visuais e limitar ou abolir seu campo de visão são formas da crueldade sofrida por vitelos condenados à escuridão. Mas, se eles não foram feitos para a vida e sim para o corte, o que importa se têm suas mentes atrofiadas?

Um bezerro criado solto com sua mãe mama, em média, umas 16 vezes por dia. Mamar, segundo John Robbins, é um dos movimentos mais compulsivos do bezerro, pois é o que lhe garante o suprimento de nutrientes.[Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 46].Compelido à sucção, o vitelo encaixotado tenta suprir sua carência fisiológica, psicológica e nutricional sugando as barras do caixote no qual está preso.

Se pudesse girar o corpo o vitelo faria o que bovinos saudáveis não fazem: comer seus excrementos (copromania). [Singer, apud Felipe, Galactolatria, p. 47]. Ainda que mínima, há certa quantidade de ferro em seus dejetos,[Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 47], expelida da reserva presente em seu sangue ao nascer, uma reserva que não se mantém no fígado, no baço ou nos ossos na mesma quantidade, à medida em que o tempo passa e a perda não é compensada através da alimentação.

Se fosse possível, afirmam Singer e Mason, os produtores manteriam os vitelos mais tempo para aumentar seu peso. Mas por volta dos 120 dias dessa dieta seu “estado anêmico é grave e quanto mais tempo forem mantidos, mais adoecerão e morrerão nas baias.”[Mason; Singer, apud Felipe, Galactolatria, p. 47]. Por isso, são abatidos aos quatro meses de vida.[Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 47]. Segundo a Dairy Cattle Science [A ciência do gado leiteiro], escrito por E. Ensminger, ‘“10% dos vitelos são afligidos por diarreia infecciosa e 18% deles morrem disso.”’[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 47]. Se aplicamos tais índices aos Estados Unidos, teremos um número de 100 a 120 mil vitelos afligidos por diarreias infecciosas, dos quais 18 a 20 mil sucumbem a elas, anualmente.

Com o olho que só quer ver a imagem da carne rosada refletida em sua retina, o comedor despreza a existência anêmica à qual o bezerro foi condenado nos 120 dias de prisão e maus-tratos. Esse campo cego moral mantém o consumidor numa zona de conforto físico e emocional prazerosa, a mesma zona que ele privou o pequeno animal de experimentar, ainda que fosse por apenas um dos 172.800 minutos nos quais foi submetido a tal existência. Uma carne macia é levada à boca pelo comedor urbano, que mal a mastiga e já a engole, permanecendo, portanto, na zona gustativa e palativa prazerosa desse comedor por menos de 15 segundos, à custa de 10.368.000 segundos de dor e agonia alheias. Essa contabilidade estava registrada na mente do animal. Onde está a moralidade desse comer?

Escravização sexual

Conforme visto, o propósito da gestação e lactação bovinas manejadas não é atender aos interesses fundamentais do éthos bovino dos pequenos e de suas mães. É desviar a produção láctea para fins comerciais. Segundo Jeffrey Moussaieff Masson, as vacas preferidas para extração de leite geralmente são as Guernsey, as Holstein e as Jersey, diferentes das usadas para corte.[Masson, apud Felipe, Galactolatria, p. 49].

A novilha deixa sua condição infantil e entra na adolescência ao completar seu primeiro ano de vida, quando é transformada em uma vaca de leite pelo manejo do produtor. Segundo Joseph Keon, as duas primeiras inseminações ocorrem aos 15 e aos 17 meses de vida, respectivamente. [Keon, apud Felipe, Galactolatria, p. 49]. Embora cheguem a levar a termo de quatro a seis gestações, elas não atendem à sua necessidade sexual natural. Usando um objeto desenhado para esse fim, o técnico introduz na vagina da vaca o sêmen extraído do touro selecionado como bom reprodutor. Não menos ardiloso foi o modo pelo qual se obteve esse sêmen. Em um dos métodos, o touro é aproximado de uma vaca no cio. Os operadores deixam que ele suba nela, mas interrompem o coito e subtraem o material que seria ejaculado nela. Após conferida sua qualidade, o sêmen é introduzido nas vacas preparadas para a inseminação.

Para identificar o exato momento do cio e obterem sucesso na inseminação forçada, os humanos enganam um macho, colocado em meio às vacas para sondar o momento de inseminá-las. Quando elas liberam o odor característico da descarga hormonal que anuncia o pico da fertilidade, os machos se dispõem a realizar o ato sexual, mas, obviamente, não têm autorização para isso. Segundo Mason e Singer,

Esses machos devem detectar, não, copular ou fertilizar fêmeas no cio. Para assegurar que seu esperma inferior não se antecipe ao dos tubos e provetas do inseminador artificial, seus pênis têm que ser neutralizados. Em certas instalações, os fazendeiros imobilizam o pênis com tubos de plástico e pino de aço colocado através da ‘bainha do touro’ para que o pênis fique dentro do animal.[Mason; Singer, apud Felipe, Galactolatria, p. 50].

Por causar “dores e infecções” e fazer o touro perder a vontade de copular, os fazendeiros resolvem a questão de forma segura para seus interesses: eles simplesmente cortam fora o pênis dos touros farejadores. Outros, menos drásticos, fazem uma cirurgia para desviar a posição do pênis.[Mason; Singer, apud Felipe, Galactolatria, p. 50]. Quando se toma leite ou ingere laticínios, toma-se parte nessas ações, embora à distância.

O parto, no sistema de confinamento completo, é realizado no piso de cimento. Não há liberdade nem privacidade para a vaca preparar o ninho ou buscar um recanto natural para parir, seguindo seu éthos, um lugar onde o recém-nascido não seja abocanhado por algum predador à espreita. Ela tem que parir na maternidade, no espaço artificial ao qual é confinada para finalizar o trabalho de parto. Ninguém se importa que ela entre em trabalho de parto em pânico, temerosa de ver seu rebento abocanhado por um predador assim que sair do seu ventre. Ninguém se importa, porque é exatamente isso que se vai fazer a ela!

Nascido, o vitelo fica com a mãe no máximo por dois dias. Quando o levam, ela muge desconsolada por até duas semanas, na expectativa de que ele a reencontre, já que ela está presa à baia de extração do leite. Imediatamente após esse “desmame” abrupto, de um bezerro que mal pôde ser amamentado, a vaca é levada à esteira de extração de leite. Pelos próximos três meses suas glândulas mamárias, estimuladas pela dieta ou por hormônios injetados diretamente nelas, secretam leite. No entanto, na ausência do bezerro, mesmo injetado com hormônios sintéticos, há um momento no qual o organismo entra em recesso na produção de leite. É hora de outra descarga hormonal. Ela volta a ser inseminada.

Desse modo, o gatilho hormonal que leva o organismo feminino mamífero a produzir leite é mantido acionado quase ininterruptamente. Se fosse respeitado o curso normal da reprodução, ele seria desacionado assim que o bezerro crescesse e se alimentasse inteiramente de capim. Mas, neste sistema, no qual literalmente o leite é fabricado usando-se o corpo da vaca como uma máquina de processamento de grãos, cereais, forragens e água, o momento em que cessa a lactação resultante de uma gestação coincide praticamente com o de outro parto, disparando outra vez o gatilho hormonal.

Esse ciclo de abuso e exploração das fêmeas bovinas por conta de suas características sexuais, de sua capacidade para produzir secreção glandular rica em nutrientes que asseguram a continuação da vida na nova geração, é repetido por quatro a seis anos, em média, quando então a vaca está gasta e é vendida para o mercado de carnes moídas. A vida bovina, longe dessas condições, pode prolongar-se de 17 a 25 anos. Na indústria da carne, ela não passa de dois anos e, na do leite, em sistema de confinamento, excepcionalmente, chega aos oito. O ciclo da exploração sexual se repete para cada fêmea da espécie bovina, do mesmo modo que se repete para cada fêmea suína. O rebanho mundial bovino feminino é de 528 milhões de vacas. Todas passam por esses tormentos, ainda que em graus diversos.

Comparada à vida de uma jovem humana, seria como mandá-la para o abate após ter sido levada a parir de oito a dez bebês, ininterruptamente, digamos, dos 14 aos 25 anos de idade. Os 50 anos que a mulher ainda poderia ter vivido, depois de tantas gestações e lactações forçadas, não seriam levados em conta, porque ela já não seria considerada útil para os interesses comerciais em questão. Aos 25 anos, ela seria eliminada da vida, descartada, com a mesma naturalidade com que o são as caixinhas e saquinhos, depois de esvaziado seu conteúdo, o leite.

Os gases ferem

Ao detalhar os ingredientes que compõem a ração dada às vacas nos Estados Unidos, John Robbins parece estar fazendo piada. Mas não está. Alimentar 100.000 vacas confinadas em uma única instalação é tarefa que requer quantidades imensas de matéria, algo em torno de 5.000 toneladas diárias, uma média de 50 kg diários por vaca. O estômago de ruminantes é feito para trabalhar sem pausa, digerindo capim. Manter milhares de vacas confinadas implica oferecer-lhes alimento, não apenas para que seu sistema digestório se mantenha ocupado, mas, principalmente, para que a comida ingerida seja excessiva, desnecessária para o organismo, podendo então ser transformada em massa corpórea igualmente desnecessária para a boa saúde animal, mas imprescindível para a formação de gordura que se transformará em leite.

Nos Estados Unidos, escreve John Robbins, a ração dada às vacas pode conter “serragem coberta de amônia e penas, jornal picado, ‘feno plástico’, lavagem processada, sebo inaproveitável, excremento de galinha, pó de cimento, raspas de papelão, sem falar dos inseticidas, antibióticos e hormônios. Aromas artificiais são adicionados para levar os pobres animais a comerem essa matéria.”[Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 52]. De acordo com Eric Schlosser, autor de Fast Food Nation, “um estudo publicado há alguns anos em Preventive Medicine (Medicina Preventiva) revela que somente em Arkansas algo em torno de 1½ toneladas de excremento de galinha foram usadas como alimento para o gado”, em 1994. No Brasil, o emprego de excrementos de galinha na composição da ração das vacas vigorou até que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento baixou uma Instrução Normativa proibindo o uso de quaisquer alimentos animalizados na ração de ruminantes e suínos.

Segundo o médico Neal Barnard, fundador do Comitê dos Médicos por uma Medicina Responsável, o excremento de galinha contém “bactérias perigosas, como a Salmonella spp. e a Campylobacter spp.”, além de parasitas intestinais, “resíduos de antibióticos, arsênico e metais pesados.” [Barnard, apud Felipe, Galactolatria, p. 53].Esses componentes da “dieta” das vacas são ingredientes inseparáveis do leite.

A espécie bovina evoluiu naturalmente para digerir capim e algumas outras ervas. Uma quantidade significativa de fibra precisa estar presente em sua alimentação. Caso isso não ocorra, explicam Singer e Mason, há uma produção exagerada de ácido lático no rúmen. O efeito doloroso para a vaca é a distensão do abdômen, que pode levar à morte por sufocação, caso os gases não sejam expelidos. Com frequência, elas sofrem também de tumores no fígado.[Singer; Mason, apud Felipe, Galactolatria, p. 53].

Segundo Lélio Batista Silva, as “vacas leiteiras de alta produção geralmente se alimentam com grandes quantidades de grãos e há um acordo geral de que este tipo de alimentação, incluindo o milho e a silagem de milho, seja um fator etiológico importante na ocorrência de distúrbios abomasais no rebanho leiteiro.” [Silva, apud Felipe, Galactolatria, p. 53]. O abomaso, uma das quatro partes do estômago da vaca, pode perder o movimento quando recebe um fluxo muito grande do rúmen, em decorrência da dieta de grãos à qual ela é submetida, que forma ácidos graxos voláteis. Sufocado pelos gases, o abomaso para de mandar o alimento para o duodeno. Parado, ele produz maior volume de gás metano, “causando distensão e deslocamento do abomaso.” [Silva, apud Felipe, Galactolatria, p. 53]. As vacas sentem dores abdominais fortes, agitam-se, deitam-se e levantam-se sem parar, param de comer, rangem os dentes e, no desespero, dão coices no próprio abdômen. [Silva, apud Felipe, Galactolatria, p. 54].

O silêncio da dor

Entre os males mais frequentes sofridos pelas vacas, além dos que resultam da falta de liberdade para viver a vida de acordo com o éthossenciente bovino, os distúrbios digestórios, a mastite e a laminite são os mais devastadores. Essas são inflamações causadas tanto pela dieta quanto pelo manejo industrial ao qual as vacas são submetidas.

A mastite resulta basicamente da agressão causada ao organismo bovino feminino por intervenções genéticas e químicas realizadas com o propósito de aumentar a produção e a secreção do leite pelo úbere. Além da mastite, as vacas sofrem as sequelas decorrentes do sistema alimentar e da arquitetura das instalações do manejo, entre elas, a laminite. O piso de concreto ou de metal não tem qualquer semelhança com a textura e relevo do solo ou do campo nos quais as vacas pastaram ao longo de sua evolução.

A exigência de maior produtividade com custo financeiro menor para o extrator de leite acaba por transferir para o organismo das vacas o ônus do aumento da oferta de leite. A grande oferta de leite no mundo não se deve apenas ao aumento dos rebanhos, mas, principalmente, às técnicas de aceleração da produção da descarga hormonal das fêmeas bovinas. Segundo John Robbins, os empresários do leite se orgulham do “fato de que a vaca média comercial dá três vezes, ou mais, leite por ano, do que o faziam suas bucólicas ancestrais.”[Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 81].

A quantidade de leite extraído hoje das vacas, de três a vinte vezes mais do que era possível há meio século, requer intensa atividade glandular secretora e espaço para essa quantidade de leite ficar armazenada nos tecidos das glândulas mamárias também de três a vinte vezes maior. Com essa informação, podemos imaginar três litros de leite produzidos pela glândula mamária da vaca sendo liberados gradativamente ao longo de, digamos, 14 horas diurnas, período no qual o bezerro mama. Isso rende uns 200 ml de leite por hora. Liberando tal quantidade, os tecidos do úbere responsáveis pela retenção do leite secretado não se dilatam a ponto de arrebentar, não deformam.

Hoje, a glândula mamária das vacas pode ser forçada a produzir 10, 20, 40, 60, 80 e 95, em vez de 3 litros de leite diários. Não há tecido biológico que resista à pressão de tal impacto sem sofrer lesões. Ele simplesmente distende, inflama, rompendo os vasos sanguíneos. Como a agressão é contínua, as lesões também tendem a ser contínuas, forçando o sistema imunológico a disparar para tentar recompor o estrago. Por isso, na contagem de células somáticos do leite, algo em torno de 50% são células brancas do sangue, disparadas somente quando há lesões presentes naquela área. Em decorrência do peso e do esforço extenuante de sustentação, portanto, do estresse anátomo-fisiológico, os tecidos sofrem distensão. A reação inflamatória também triplica ou vintuplica. A vaca sente dor. Isso a leva a permanecer estática.

Há casos em que o úbere, de tão deformado pelo volume e peso, chega bem próximo ao solo. Se fosse permitido aos bezerros mamarem dos tetos desses úberes, provavelmente eles nem conseguiriam realizar a façanha, pois o úbere com essas proporções imensas, carregado de leite, representa para o pequeno vitelo um obstáculo praticamente intransponível na sucção natural. O úbere pende de tal forma que o bezerro teria que mamar deitado debaixo da vaca, para conseguir firmar o teto na boca. Mas não é fácil para bovinos ingerirem alimentos em decúbito dorsal.

Conforme lembra Robbins, quando os zootecnistas e empresários do leite se gabam de extrair três ou quatro vezes mais leite das vacas, hoje, do que o faziam seus avós na década de 60 do século XX, eles jamais revelam os desdobramentos maléficos, para a vaca e os bezerros, de tal eficiência em seus métodos de manejo. Também não fazem referência ao fato de que as vacas de nossas avós viviam de 20 a 25 anos, enquanto no sistema atual, devido ao manejo industrial, elas “podem dar-se por felizes se puderem contemplar seu quarto aniversário.” [Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 83 ].

Quanto mais leite é extraído diariamente da vaca, analogamente ao que ocorre com qualquer outra fêmea lactante, menor seu teor de nutrientes. O organismo animal está evoluído para fornecer ao bebê, através do leite materno, uma quantidade determinada de nutrientes por dia. Essa quantidade é limitada. Não adianta tirar da vaca 50 ou 60 litros de leite por dia, na suposição simplista de que esses litros de leite contêm os mesmos teores de nutrientes que os três litros de leite destinados ao bezerro conteriam.

Schmid cita um artigo publicado pela Journal of Dairy Research [Revista de Pesquisa Laticínia], no qual o autor afirma: “a vaca transfere uma quantidade fixa de vitaminas para seu leite e quanto maior o volume desse leite tanto mais diluído seu conteúdo de vitaminas, especialmente a vitamina E e betacaroteno.”[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 83].

No sistema de manejo em confinamento completo, a vaca vive no interior de uma instalação que inclui máquinas de tirar leite, às quais ela é atrelada duas ou três vezes ao dia. Quando inteiramente confinada nesses espaços artificiais, a vaca é detida na baia, da qual não pode sair por estar contida por uma canga metálica que não lhe permite sequer girar a cabeça e o corpo.

Na hora da extração do leite, o funcionário aperta um botão. A esteira, com dezenas de baias, gira, carregando as vacas para os pontos nos quais se encontram as teteiras metálicas que serão acopladas a seus tetos para extração eletromecânica do leite diretamente nos coletores, impedindo o contato manual do operador humano com o leite. Enquanto a maquinaria é preparada, as vacas são alimentadas, recebem água e têm sua baia de metal higienizada. Assim que o leite de um lote de vacas é extraído, a esteira rolante volta a conduzi-las para a área de estacionamento na qual esperam até a próxima ordenha. O ritual se repete todos os dias com outras dezenas, centenas ou mesmo milhares de vacas confinadas na mesma instalação,por quatro ou mais anos, dependendo da resistência delas a esse manejo e da eficiência de suas glândulas em secretar o leite. Esse sistema foi inventado pela companhia agrícola sueca Alfa-Laval [Robbins, apud Felipe, Galactolatria, p. 83].

Mastite

As vacas usadas para extração do leite são mortas ainda lactantes, no caso de infecção recorrente do úbere (mastite), quando o uso intenso de antibióticos representa custo maior na produção e baixa qualidade do produto. O uso de antibióticos aumenta a quantidade de soro do leite e diminui sua matéria sólida, usada de modo rentável na produção de queijos [Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 84].

Por conta da mastite, problema comum na cadeia extratora de leite, boa parte do rebanho é abatida antes de chegar ao limite da exaustão hormonal, mesmo nas fazendas ditas “orgânicas”. Segundo relatório do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), citado por Joseph Keon no livro Whitewash, a mastite é a causa principal que leva os produtores a ordenarem o abate prematuro ou descarte e a “segunda causa mais comum” de morte das vacas.

A mastite é a inflamação da glândula mamária causada pela exposição a bactérias Staphylococcus aureus ou E. coli”, entre outras.[Keon, apud Felipe, Galactolatria, p. 84]. Geralmente recorrente, a mastite requer tratamento com antibióticos,adotado por 85% das empresas, segundo relatório do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.[Keon, apud Felipe, Galactolatria, p. 84 ]. Até “522 kg de leite” deixam de ser extraídos de uma vaca com mastite ao longo de uma lactação. Entre os antibióticos usados estão a cefalosporina e a lincosamida, que deixam resíduos nos laticínios. Essas mesmas bactérias (que também podem infectar o organismo dos consumidores humanos de leite) tornam-se resistentes a eles.

Mesmo reconhecendo que boa parte da resistência humana aos antibióticos deve-se à expansão de seu uso “pela medicina humana”, a Associação Médica Americana- AMA enfatiza que esse tipo de resistência deve-se, também, ao uso massivo de antibióticos “na agricultura animal, com evidência crescente de que a resistência desenvolvida nos animais alastra-se para os patógenos humanos.”[Keon, apud Felipe, Galactolatria, p. 85].

Quando o tratamento com antibióticos não impede a reincidência da mastite em uma vaca, o produtor a despacha para o abate, substituindo-a por outra, ainda não sequelada. A carne daquela vaca será moída para compor hambúrgueres, consumidos aos bilhões a cada dia ao redor do mundo. Segundo Singer e Mason, a indústria do leite é a fornecedora de cerca da metade da carne de hambúrguer servida em restaurantes fast food,e de tabletes de caldos temperados. O mesmo destino aguarda a vaca “gasta” por sucessivas gestações e lactações. Assim que o “gatilho hormonal” perde força, apesar do emprego do hormônio de crescimento recombinante bovino (rBST), ou produz episódios frequentes de mastite, a vaca “gasta” finaliza sua existência na câmara de sangria do abatedouro, eufemisticamente referido como frigorífico.

Na Inglaterra, a mastite em estado doloroso afeta 35% do rebanho de dois milhões de vacas, isso quer dizer que 700 mil vacas submetidas à ordenha sofrem a dor da mastite. A dor da mastite não se constituiu necessariamente em elemento de evolução do organismo bovino feminino. É possível, então, que a mastite assole a maior parte do rebanho usado para extração do leite, pois a glândula mamária aumentada desproporcionalmente não encontra espaço confortável para acomodar-se, nem os tecidos dispõem de resistência para suportar o peso descomunal do úbere sobrecarregado.

Quando uma área do corpo “incha”, o sistema circulatório e linfático ao redor sofre pressão. As sensações desconfortáveis se multiplicam, sem que a vaca as possa expressar clinicamente. O aumento do úbere por si só representa um quadro inflamatório, portanto, doloroso, ainda que os sinais infecciosos da mastite não se façam presentes no início do processo inflamatório.

Se as vacas podem estar com o úbere inflamado sem apresentar sinais clínicos da dor, é plausível que metade, ou mais, do leite consumido seja proveniente de vacas sofrendo de mastite. Se o controle sanitário não passa de 60% do leite extraído e processado, dá para imaginar que, em muitos casos, os laticínios consumidos sejam produzidos com leite de vacas doentes.

Não há transparência do modelo de vigilância sanitária ao qual o parque leiteiro brasileiro está submetido. Se nas instalações que concentram milhares de vacas a fiscalização oficial é feita por amostragem, como se faz o trabalho nos plantéis pequenos, onde sequer há um veterinário de plantão? Se, por outro lado, a fiscalização do leite é feita na entrada das instalações de processamento, quem nos garante que os níveis detectados de pus, sangue e outros contaminantes acima dos níveis legais são motivo suficiente para o descarte desse leite sujo? Quem fiscaliza as empresas que fiscalizam o leite que acabaram de adquirir do produtor?

Laminite

Os médicos José Santos e Michael Overton, da faculdade de veterinária da Universidade da California, em Davis, em seu artigo, “Diet, Feeding, Practices and Housing Can Reduce Lameness in Dairy Cattle”, publicado em março de 2001 em Progressive Dairyman and Hay Grower, escrevem:

[A] acidose prevalece após o regurgitamento de grande quantidade de amido e outros carboidratos rapidamente fermentáveis, tais quais a pectina e os açúcares. Esses são exatamente os nutrientes encontrados em grande concentração na dieta rica em grãos que vacas confinadas recebem para ‘maximizar’ a eficiência e produção de leite. Com tal dieta ocorre uma concentração anormal de glicose no rúmen. ‘Na presença da glicose, micróbios oportunistas, tais quais os coliformes (bactérias normalmente encontradas apenas nos intestinos) podem se multiplicar’.[Cohen, apud Felipe, Galactolatria, p. 86 ].

Uma das doenças recorrentes em vacas usadas para extração do leite é a laminite, extremamente dolorosa. Sua causa mais comum é justamente a “dieta balanceada”, inventada pelos cientistas para maximizar a ingestão de calorias que resulta em maior secreção de leite. Além de enfrentar o desafio de digerir grãos e outros elementos que não lembram, nem de longe, a natureza do capim e das forragens para os quais o sistema digestório dos bovinos evoluiu, e além de sofrer com a quantidade de acidez produzida pela digestão de amiláceos e outros tipos de açúcar, a vaca também sofre com a ingestão de comida baseada em grãos carregados de aflatoxina. Mais da metade das vacas usadas para extração do leite nos Estados Unidos está confinada em estábulos e recebe uma dieta baseada em grãos.

No Brasil, são mantidas confinadas 41% das vacas usadas para extração do leite (quase dez milhões), representando bem mais de 41% do leite consumido em nosso país, pois dessas vacas geralmente se extrai mais leite do que das semiconfinadas e muito mais do que das vacas criadas soltas em pastos.

A literatura veterinária costuma encobrir os altos índices de laminite nas vacas em lactação. Todavia, pesquisas recentes dos graduandos em zootecnia e veterinária têm constatado que praticamente a metade dos animais padece das deformações dolorosas dos cascos. Segundo Lélio Batista Silva, essa enfermidade “caracteriza-se por lesões degenerativas das lâminas epidérmicas dos cascos, associadas às alterações circulatórias e inflamação das lâminas sensitivas, lâminas dérmicas e cório laminar, com consequente necrose e perda do estojo córneo ou crescimento anormal e deformação do casco”.[Silva, apud Felipe, Galactolatria, p. 87].

A causa da degeneração do tecido das patas das vacas pode ser remetida à dieta baseada em grãos e cereais, rica em carboidratos, que produz distúrbios digestivos, com “excessiva fermentação ruminal” e “grande produção de ácidos graxos voláteis, ocorrendo queda do pH ruminal (abaixo de 5,5), levando ao surgimento de lesões podais.”[Silva, apud Felipe, Galactolatria, p. 87].

Dependendo do tempo em que os grãos ficam armazenados até o momento de serem servidos[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 87], uma maior ou menor carga de fungos (entre eles a aflatoxina) os acompanha para o interior do estômago das vacas, cujo sistema digestório não está evoluído para digerir ou eliminar esses fungos, do mesmo modo que não evoluiu para digerir ou destruir as bactérias que se multiplicam com a alta acidez produzida pela fermentação dos grãos no rúmen. O sistema digestório bovino evoluiu para ser herbívoro; não, onívoro, e, menos ainda, para ser carnívoro.

Segundo o microbiologista Elliot T. Ryser, formado pela Universidade de Michigan, com doutorado em leite e laticínios, pesquisas recentes constatam que a aflatoxina não é eliminada por qualquer dos métodos tradicionais e modernos de processamento do leite e derivados: pasteurização, esterilização, fermentação, armazenagem a frio, congelamento, condensação ou desidratação. Tais evidências levaram 34 países a proporem uma legislação para impor limites aos níveis de aflatoxina presentes na ração bovina.

Seguindo a mesma lógica do mercado aplicada na regulamentação do pus no leite, também a aflatoxina foi liberada no leite e derivados, desde que não ultrapasse determinados níveis.[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 88].

Devido ao fato de não poderem se alimentar livremente de capim e, por outro lado, de receberem uma dieta centrada em grãos, com alguma quantidade de feno, as doenças nas vacas se multiplicam, indo da mastite à laminite, passando por outros distúrbios do sistema digestório, respiratório e circulatório. Uma grande quantidade de antibióticos precisa ser ministrada para que as vacas sobrevivam a essas dolorosas doenças.[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 88].

Mesmo a produção orgânica de leite, no sistema de confinamento completo, não livra as vacas das doenças comuns ao sistema não-orgânico. Do mesmo modo, o sistema orgânico força as vacas a ingerirem grãos, com a diferença de que esses não são cultivados com pesticidas.[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 88]. A razão pela qual a dieta das vacas continua a ser baseada em grãos é que eles aumentam a secreção láctea. Sem eles, a manutenção do sistema lucrativo de exploração das vacas seria inviável. Por essa razão, segundo Schmid, “fazendas orgânicas de produção de leite não prosperam, pois os custos são muito elevados e o retorno, nulo.” [Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 88]. Portanto, não existe “extração ética” de leite, mesmo no sistema de produção orgânico, caso sejam usados cereais na dieta das vacas, ainda que tenham sido cultivados sem agrotóxicos.

De qualquer modo, o uso dos animais como máquinas produtivas para satisfação de demandas humanas jamais pode ser ético, em qualquer sentido. Os consumidores querem ter tudo: leite limpo, vacas saudáveis, consciência livre de culpa e preços baixos nos produtos. O mercado e a propaganda laticínica os iludem com a promessa de que tal mágica é possível.

De uma vaca genuinamente herbívora seriam extraídos, quando muito, dois a três litros de leite por dia. Seria necessário armazenar todo esse leite por duas semanas para conseguir produzir 1 kg de manteiga e uns 4 kg de ricota. Com a venda desse produto final, o extrator do leite não pagaria o custo da manutenção da vaca. Por essa razão, não existe “leite de vaca feliz” à venda. Se tal leite existe, sua produção é doméstica, não destinada ao mercado, mesmo porque, se alguém trata super bem de uma vaca e extrai dela um leite não contaminado, não o venderá por 0,69 ou mesmo 0,80 centavos o litro, venderá?

Para completar a lista dos males causados às vacas, mesmo pela indústria orgânica de laticínios, resta falar do bagaço da cana dado a elas. Não resulta absolutamente sem sequelas essa prática, do ponto de vista da saúde dos animais. Ron Schmid cita um artigo publicado pelo Stockman Grass Farmer, no qual os pesquisadores apontam três perigos de se dar bagaço de cana ou similares da indústria da cerveja para as vacas. O primeiro é uma espécie de polio, que “cria lesões no cérebro”, devido ao alto teor de enxofre contido nesse alimento, e sintomas similares “aos da doença da vaca louca”. O segundo perigo está relacionado ao fato de que,

[…] os subprodutos do etanol são altamente suscetíveis à multiplicação do fungo potencialmente mortal chamado micotoxina. [… A] aflatoxina pode de fato sobreviver ao processo de produção do etanol, pode passar no leite da vaca e não é destruída pela pasteurização. Ela é altamente venenosa para o fígado e um poderoso cancerígeno. [… O] gado alimentado com grãos usados na fermentação da cerveja está seis vezes mais sujeito a produzir a forma virulenta da E. coli, do que o gado alimentado com milho, e esse mais sujeito do que o alimentado com capim.[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 89].

A interferência do manejo humano na vida e digestão bovinas é de tal ordem que, para defender as vacas de um tipo de dieta que destrói sua saúde e a qualidade do leite que deveriam secretar para nutrir seu bezerro, os cientistas acabam por propor alternativas que nem de longe representam benefício para elas. Se, conforme visto acima, a digestão de grãos, carboidratos, amido e açúcares, mesmo orgânicos, é altamente maléfica para a saúde e bem-estar das vacas, como é que se pode defender a ingestão do milho? Obviamente, o bagaço de cana é uma das piores alternativas na dieta das vacas. O milho aparece como menos pior do que o bagaço, mas isso não o torna um alimento ideal para elas.

O alimento ideal para a saúde bovina são as gramíneas. Para Schmid, “o capim depende tanto dos ruminantes quanto esses, dele. Sem os ruminantes para fertilizar o solo e quebrar a celulose, nos climas secos, os campos logo se tornam desertos e, com o manejo de ruminantes que pastam, os desertos podem ser restaurados em terras produtivas.” [Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 90].

O médico veterinário britânico, Michael W. Fox, no livro Eating with Conscience [Alimentando-se com consciência], critica a dieta “científica” elaborada para alimentar as vacas. Conforme o autor, as vacas são “ruminantes, evoluíram para sobreviver do capim e forragens, não dos grãos altamente energéticos que lhes são dados para aumentar a produção do leite.” [Fox, apud Felipe, Galactolatria, p. 90]. Uma dieta dessas, absolutamente inapropriada para o trato digestório e o metabolismo bovinos, deixa rastros em sua passagem, que as caixinhas e saquinhos de leite adquiridos pelo consumidor não deixam revelam.

O trato digestório das vacas alimentadas com grãos é assoberbado do início ao fim do processo digestivo pela formação de gases, borbulhas e diarreias frequentes. A vaca, sofrendo de diarreias, tem a cauda inundada pelos próprios dejetos. A cauda é a única defesa dos bovinos para afastarem moscas que buscam alimentos nas partículas depositadas na área da excreção. Com a cauda lambuzada de resíduos diarreicos e usando-a para afastar as moscas, a vaca acaba por espalhar as bactérias e patógenos por toda parte do corpo onde alcança batê-la. Muitos fazendeiros encontram a “solução” para o problema: eles, simplesmente, cortam a cauda da vaca, deixando apenas um toco. Essa prática, segundo Fox, é adotada igualmente por pequenos e grandes produtores de leite.[Fox, apud Felipe, Galactolatria, p. 90].

Com o úbere inflamado pela sobrecarga, o abdômen inchado pela produção de gás metano no rúmen,devido à dieta forçada de grãos e cereais, e as patas pressionadas contra os pisos de concreto ou de aço dos estábulos modernos, ou imersas na lama excremental ácida, a laminite ou lesão dos tecidos das lâminas do casco resulta em acúmulo de dor, suportada estoicamente pela vaca, no mais completo silêncio. Os responsáveis pelo manejo também silenciam.

Na ilusão de que o silêncio da vaca e o silêncio dos extratores de leite significam igualmente não-dor, consumidores de laticínios, instalados no conforto de sua indiferença pelo sofrimento animal, ignoram o que se passa nas leiterias modernas. Eles fixam o olhar apenas na marca do leite, o ponto cego que vela o conteúdo real da caixa ou do saquinho. Os galactômanos jamais dirigem um olhar para a vaca, para o que dão de comer a ela, para a dor causada pelas infecções contínuas às quais está sujeitada pelo manejo humano, para sua agonia física e psíquica. Consumidores inconscientes pensam que são as vacas que não têm consciência.

Enquanto a mastite diagnosticada afeta 35 de cada 100 vacas, segundo reconhecem os britânicos, a laminite atinge 60 em cada 100 vacas. Seu rebanho de quase dois milhões de vacas tem, então, um milhão e duzentos mil delas sofrendo de laminite. Isso significa que 60% do leite consumido pelos ingleses provém de vacas dorentes e sofrentes. Quanto temos disso, no Brasil? Não há dados nacionais. Mas a mastite obviamente é tão comum que os níveis de células somáticas tolerados no Brasil passam do dobro dos tolerados na Europa e mesmo nos Estados Unidos: 1.000.000 por ml de leite. Segundo especialistas, das células somáticas 50% são células brancas do sangue, indicando processo inflamatório ou infeccioso. O Dr. Webster oferece uma analogia para que possamos entender a dor dessa inflamação:

Imagine as unhas de ambas as suas mãos prensadas na dobradura da porta. Agora, imagine-se tendo que andar com elas apoiadas ao chão. Consegue imaginar a dor que sentiria? Então, se vê a vaca hesitando em pôr uma pata à frente da outra, esteja certo de que ela está sentindo essas dores atrozes.[Apud Felipe, Galactolatria, p. 91].

Quem sofre de unha encravada pode ter uma ideia aproximada do que seja sofrer de laminite. Mas para saber o que a vaca sofre, imagine as unhas de todos os dedos de seus pés encravadas. Imagine-se tendo que ficar de pé, ou mover-se, com todas, não apenas com uma das unhas, encravadas. Chegou perto do suplício infernal? Pois é, boa parte do leite ingerido por humanos é extraída diariamente de vacas com dor nos cascos, quer dizer, vacas supliciadas pela laminite, além da mastite. A causa principal, em ambos os casos, é o fato de serem forçadas a comer grãos e cereais, quando evoluíram para digerir bem apenas o capim. Citando Keeping Livestock Healthy, a Veterinary Guide [Mantendo a saúde do rebanho, um guia veterinário], Ron Schmid esclarece: quando sofrem de laminite, as vacas não ganham peso nem produzem tanto leite quanto o esperado, simplesmente porque “seus pés doem”.[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 92].

Alguém pode retrucar que, com o tempo, a dor dessensibiliza, a ponto de o animal nada mais sentir. Engana-se. Webster afirma que as pesquisas neurológicas mais avançadas mostram que “a laminite crônica desencadeia nas vacas a hiperalgesia, o aumento da sensibilidade à dor.” Nas palavras do cientista, vacas e humanos têm o mesmo tipo de perspectiva em relação à dor crônica: “com o tempo, só piora.”[Masson, apud Felipe, Galactolatria, p. 92].

A laminite tem duas causas diretas, evidenciadas pela pesquisa: a alimentação baseada em grãos e o piso de concreto ou metal das instalações nas quais as vacas ficam imobilizadas no confinamento. Seu sofrimento poderia ser aliviado se, em primeiro lugar, deixassem de confiná-las nessas instalações com pisos para os quais as lâminas de seus cascos não evoluíram nem biológica nem fisiologicamente e, em segundo lugar, se parassem de lhes fornecer grãos na dieta e devolvessem a elas a dieta natural herbívora. As duas condições para pôr fim ao sofrimento delas implicam na abolição do sistema de extração do leite. Para que isso seja alcançado e as vacas possam simplesmente viver em paz, é preciso, entretanto, abolir a galactomania, a demanda por produtos derivados do leite. Nesse caso, o destino das vacas depende de cada um dos consumidores humanos. Não são os governos que impõem o consumo do leite. Os governos só arrecadam mais impostos com isso.

Os veterinários José Santos e Michael Overton, estudiosos da laminite bovina, identificam o fator mais importante no desenvolvimento desse mal: o tempo que as vacas são obrigadas a permanecer de pé sobre o piso de concreto, alterando “o ângulo dos pés”. Quando prolongado, leva à inflamação das lâminas pela compressão dos tecidos que não se formam para aguentar em posição estática o peso de meia tonelada por horas, dias e meses a fio.[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 92]. Os danos aos tecidos acabam resultando em úlceras na sola da pata, próxima ao bulbo.[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 92].

A laminite também pode ocorrer quando as vacas são mantidas sobre terrenos lamacentos e cobertos de excrementos, prática comum em sistemas de semiconfinamento, nos quais elas vivem em espaços cercados. Impedidas de saírem do cercado e alimentadas com grande volume de grãos, cereais e demais sólidos indigestos, recebendo de 40 a mais de 100 litros de água diários, elas defecam no mesmo espaço onde permanecem, atolando-se nos próprios excrementos, muitas vezes até a altura dos joelhos. A imersão permanente das patas na massa excremental ácida amolece as lâminas, contribuindo para sua deterioração.

A violência contra o corpo das vacas fica evidente, se considerarmos o que seria uma vida bovina saudável, atendendo ao éthos ou bem próprio da espécie. Uma vaca livre descansa, deitada, por mais da metade do dia. Segundo Santos e Overton, Apud Schmid, dessas doze ou quatorze horas nas quais elas passam deitadas, pelo menos umas quatro ou cinco são de sono.[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 93]. Nas instalações para extração do leite, contrariando o bem próprio do organismo bovino, as vacas em estado de lactação, evoluídas para estarem deitadas mais da metade do dia, ficam de pé por horas e horas, sem poderem deitar para aliviar a pressão do peso do corpo sobre as lâminas das patas.

É preciso lembrar que não apenas as lâminas se ressentem da postura em pé. Também os tecidos do úbere carregado de leite sofrem. Se as vacas pudessem deitar-se, o úbere pesado descansaria sobre o solo. Não o podendo, esse peso fica suspenso, restando aos tecidos internos e externos a tarefa de sustentar o volume que se acumula em grande quantidade até o momento da ordenha. O estiramento dos tecidos impede a circulação sanguínea. Quando a vaca se deita o úbere volta a ser irrigado, renovando os tecidos lesados pela secreção, retenção e fricção na extração do leite. De pé, o sangue não circula adequadamente por toda a região lesada. Essa é a razão pela qual, naturalmente, as vacas se deitam imediatamente após o bezerro concluir sua mamada.

Para aumentar o lucro dos extratores de leite, as baias são construídas com o mínimo espaço, tão estreitas que as vacas mal podem mover-se um pouco para o lado. Por isso, elas não têm como relaxar enquanto se deitam e descansam. Assim, as vacas não podem dar alívio aos tecidos das lâminas que as protegem como amortecedores do impacto do peso estático do corpo. Sem o devido descanso, a pressão as desgasta, fazendo com que os tecidos mais frágeis se rompam, sem que possam ser regenerados a tempo, antes do novo impacto. O desgaste desses tecidos é mais rápido do que sua reconstituição, pois, com uma dieta baseada em grãos, lixo orgânico e sintético, a acidez do organismo também não dá trégua a eles. Na acidose, o trabalho dos osteoblastos fica prejudicado, enquanto o dos osteoclastos é acelerado.

No século XVII, quando os primeiros emigrantes da Europa chegaram ao norte da América levando as primeiras vacas a bordo dos navios, elas não rendiam a eles mais do que um litro de leite ao dia. O que rendiam além disso era para nutrir o bezerro. Por volta da metade do século XIX, a extração não passava de dois litros ao dia.[Cohen, apud Felipe, Galactolatria, p. 95]. Segundo Ron Schmid, nos anos 50 do século passado, as vacas já eram forçadas a produzir quase “dez litros de leite por dia”. Na virada do terceiro milênio, a extração exibia em média mais de 30 litros por dia.[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 95]. Robert Cohen refere-se à extração de até 50 litros por dia, em casos premiados, ficando a média, alcançada por ardis da engenharia genética e das novas drogas, como o hormônio somatotropina e o hormônio de crescimento recombinante bovino rBST, em torno de 24 litros de leite por dia. [Cf. Cohen, apud Felipe, Galactolatria, p. 95].

Segundo Ron Schmid, o volume elevado atual de leite extraído de vacas deve-se às técnicas de manejo empregues nos últimos vinte anos: seleção genética, alimentação baseada em grãos, hormônios recombinantes e aditivos [Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 96], destinados ao mesmo fim: desviar comercialmente o leite que as vacas secretam para assegurar a vida de sua prole. Schmid fala de índices elevados, nos Estados Unidos, de vacas afetadas pela mastite. Webster refere-se a 35% das vacas na Inglaterra, enquanto na América do Norte chega a 40%[Schmid, apud Felipe, Galactolatria, p. 96].Se o rebanho bovino estadunidense em lactação é formado por 9 milhões e 200 mil vacas, 3 milhões e 600 mil são afetadas pela mastite. Os Estados Unidos extraem mais de 86 milhões de toneladas de leite por ano. Se 40% desse leite é tirado de vacas com mastite, mais de 30 milhões de toneladas foram extraídas de vacas com dor e em sofrimento. Não dá para esterilizar esses dados, pois seu registro está gravado na mente de cada uma delas, não na nossa. A pasteurização e a esterilização do leite não o tornam puro.

[Para citar passagens deste texto use a referência completa disponível no rodapé. Obrigada]

FELIPE, Sônia T. O sofrimento das vacas e vitelos. Palestra apresentada no Curso de Extensão: Implicações éticas, ambientais e nutricionais do consumo de leite bovino – uma abordagem crítica. Florianópolis: UFSC, Auditório do Centro de Educação, 10 de maio de 2013, das 18:45 às 21:30. 20 p.

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Por Sônia T. Felipe


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