Parecer: identificação de maus-tratos e crueldade contra animais na prática da prova de rodeio bulldogging

Parecer: identificação de maus-tratos e crueldade contra animais na prática da prova de rodeio bulldogging

PARECER TÉCNICO

ASSUNTO: Identificação de maus-tratos e crueldade contra animais na prática da prova “Bulldogging”.

1 – INTRODUÇÃO

O presente Parecer Técnico foi elaborado por solicitação da ORGANIZAÇÃO NÃO GOVERNAMENTAL OLHAR ANIMAL, associação civil sem fins lucrativos, requerente à habilitação à condição de Amicus Curiae, com vistas a subsidiar Tribunal de Justiça com fatos e fundamentos que apontam a situação dos animais usados na prova denominada “Bulldogging”.

Por não haver este técnico examinado o bezerro envolvido no evento de agosto de 2011 em Barretos, que deu causa à discussão referente à prova, devido à morte ocorrida em decorrência de severas lesões sofridas durante a prova1, o presente não se constitui em um Laudo, mas sim Parecer Técnico, que focará na discussão dos aspectos atinentes à prova propriamente dita, em especial à questão de se os maus tratos e a crueldade envolvidos na prova ocorrem por inabilidade de alguns competidores em conduzirem a prática de forma apropriada, ou se estas práticas são inerentemente agressivas e envolvem, invariavelmente, crueldade e maus-tratos.

2 –BULLDOGGING

2.1. Definição

Bulldogging2 é uma competição que acontece no contexto dos rodeios, que consiste em o competidor, montado a cavalo, perseguir um bezerro ou garrote em fuga, saltando sobre seu flanco esquerdo, agarrando-lhe pelos chifres e/ou cabeça e torcendo-lhe o pescoço, de modo a desequilibrá-lo, fazendo-o cair no chão.

Este competidor é auxiliado por um segundo vaqueiro, que corre paralelamente pelo lado direito do animal, fazendo a função denominada “esteira”, não permitindo que o bezerro ou garrote se aparte do competidor que irá saltar sobre seu flanco.

2.2. Manifestação cultural

A Constituição Federal de 1988 assegura que:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Por outro lado, este artigo da Constituição muitas vezes entra em conflito com outro artigo que assegura que:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Por não haver dispositivo legal que estabeleça regra hierárquica em relação a qual artigo constitucional deve prevalecer em caso de conflito, a aplicação dos mesmos está sujeita à interpretação.

Um caso bastante emblemático ocorreu em Outubro de 2016 envolvendo a ocasião em que Supremo Tribunal Federal – STF analisou a Lei 15.299/2013 do Estado do Ceará, que regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural no estado. Por 6 votos a 5, os ministros do STF condenaram a prática pela “crueldade intrínseca” aplicada aos animais

Tal decisão foi posteriormente contestada por meio do Projeto à Emenda Constitucional (PEC) 50, de 2016, proposta pelo senador Otto Alencar (PSD-BA), aprovada na Câmara e no Congresso. Esta PEC altera a Constituição Federal para estabelecer que não se consideram cruéis as manifestações culturais definidas na Constituição e registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, desde que regulamentadas em lei específica que assegure o “bem-estar” dos animais envolvidos.

A PEC 50/2016, em si, necessita ser tecnicamente contestada, uma vez que ela almeja regulamentar especificamente a vaquejada, prova que implica em dois homens, a cavalo, perseguirem um boi, até emparelhá-lo entre seus cavalos. Um dos vaqueiros deve estão puxar o animal pela cauda e assim derrubá-lo. Não há como assegurar que isto seja feito considerando o bem-estar dos animais envolvidos.

No entanto, para defesa de sua sustentação, a vaquejada ao menos satisfaz o requisito constitucional exposto no Artigo 215, já que se trata de festa cultural tradicional nordestina, que remonta a práticas de apartação de gado que ocorriam entre 1760 e 1790.

Esta mesma sustentação não poderia ser reivindicada pelo Bulldogging, uma vez que esta competição, especificamente, não corresponde a nenhuma atividade útil efetivamente realizada em fazendas no Brasil, ou mesmo em ranchos de gado na América do Norte3, onde a prova foi inventada. Esta prova não é parte de nenhuma tradição cultural, nem possui qualquer importância histórica.

Há um relativo consenso histórico de que a habilidade tenha sido desenvolvida, por volta de 1890, pelo vaqueiro afro-americano Bill Picket, que a explorava em shows do velho oeste4, 5. Mesmo nos Estados Unidos o Bulldogging não foi amplamente difundido até 1930, e possivelmente só veio a se popularizar em data muito posterior a isto.

A prova chegou ao Brasil somente em 19886,7 contando atualmente com cerca de 30 competidores no país. Estes fatos afastam qualquer possibilidade de lhe atribuir importância histórica, ou conotação de patrimônio cultural ou tradição cultural-brasileira.

2.3. Descrição da prova

Conforme reportado no item 2.1. o Bulldogging envolve basicamente um bezerro ou garrote e dois vaqueiros montados a cavalo, não obstante outros adjuvantes estejam envolvidos.

A prova se inicia com o novilho contido em um brete estreito, com porta de mola, ladeado pelos dois vaqueiros, que se encontram nas laterais, pelo lado de fora. O competidor acena com a cabeça anuindo para que um terceiro abra a porta do brete, de onde o bezerro dispara, sendo quase que imediatamente perseguido pelos dois cavaleiros, um de cada lado.

A função do cavaleiro que corre ao lado direito do bezerro é não permitir que este se aparte do cavaleiro que corre pelo seu lado esquerdo. O cavaleiro que corre à direita do bezerro é denominado “esteira” em português (em inglês ele é denominado hazer8).

O cavaleiro que corre ao lado esquerdo do bezerro, o competidor de fato, tem por função saltar sobre o flanco do animal em movimento, agarrando-o pelo chifre ou pela cabeça, e com um ou dois movimentos de torção do pescoço, atira-lo ao chão.

Para que o bezerro seja considerado derrubado, ele precisa estar com as costas completamente no chão e com as quatro patas para cima. Feito isto, um juiz acena uma bandeira, confirmando que o competidor finalizou a prova. A prova deve durar no máximo 1 minuto. Vence a competição quem não apenas consegue derrubar o bezerro, mas quem o faz no menor tempo possível.

2.4. Observação dos movimentos específicos

O presente item consistiu em acompanhar e descrever, passo a passo, os movimentos posteriores ao agarre do bezerro, realizados na prova por competidores considerados habilitados.

Da observação dos movimentos pode-se constatar que, competidores habilidosos, ao saltar pelo flanco esquerdo do garrote, passam seu braço direito pelo lado direito da região dorsal cervical do animal, realizando movimento de modo que seu antebraço passa por baixo do chifre.

Ao flexionar a junção do cotovelo, o competidor prende o bezerro pelo chifre, simultaneamente jogando seu peso sobre o pescoço do animal, realizando movimento de rotação medial, ou seja, interna, torcendo a cabeça do animal bruscamente para a esquerda.

Este movimento é realizado ao mesmo tempo em que o competidor fixa seus calcanhares no chão, impedindo seu avanço e o do próprio animal, que tem seu corpo projetado para a frente, devido à conservação do movimento. Este primeiro movimento causa desequilíbrio do bezerro, mas não suficiente para fazê-lo cair.

No momento seguinte o competidor realiza um segundo movimento, onde seu antebraço esquerdo é levado rapidamente para baixo do focinho do animal, na região popularmente denominada “barbela”, torcendo a cabeça do animal para trás e para o lado direito, causando desequilíbrio completo do novilho.

Isto leva a que o garrote caia com a nuca e o dorso na terra e as pernas para cima, O competidor então estrangula o animal para que ele permaneça nesta posição até que sua dominação seja inconteste (o que pode levar menos de 1 segundo). O competidor então o libera.

Há casos em que o competidor, ao agarrar o animal pelo chifre e torcer sua cabeça para o lado esquerdo, joga seu peso de tal forma sobre a cabeça do animal, que acaba rolando sobre o mesmo, estrangulando-o. Isto leva à queda do animal, porém em decúbito ventral ou lateral direito, insuficiente para finalizar a prova.

O competidor, então, permite ao animal se levantar enquanto segura sua barbela com o braço esquerdo, e novamente o estrangula, jogando seu peso sobre o animal, de modo a derrubá-lo em decúbito dorsal, finalizando a prova.

3 – BEM ESTAR, MAUS TRATOS E CRUELDADE CONTRA ANIMAIS

3.1. Discussão dos termos

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo nº 225, dota o Poder Público de competência para proteger a fauna e a flora, vedando práticas que submetam os animais à crueldade.

O Artigo 32 da Lei nº 9.605 de 12 de fevereiros de 1998 estabelece
sanções penais e administrativas a quem praticar ato de abuso e maus-tratos contra animais.

A Instrução Normativa nº 56, de 6 de novembro de 2008, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, estabelece recomendações gerais de bem-estar para animais de produção e de interesse econômico.

Nenhuma destas legislações, porém, tipifica ou define legalmente os termos “crueldade”, “abusos”, “maus tratos” ou “bem-estar animal”, restando evidente que os mesmos termos não se aplicam, das mesmas formas, em relação aos animais de todas as espécies ou em relação aos seres humanos.

A evidente omissão positiva do legislador acaba por criar a necessidade da arbitragem do juiz ou mesmo do delegado, em interferir em determinado caso concreto, à luz de seu entendimento em relação à legislação vigente, estando tal julgamento subordinado ao empirismo, à empatia pessoal, elementos culturais, etc.

Em outras palavras, ao se legislar de forma tão ampla, em uma cultura onde os animais gozam status diferenciados, cria-se um esvaziamento do significado preciso dos termos. Há práticas que serão consideradas cruéis, abusivas e de maus tratos se praticadas com um cão ou um gato, mas que ainda podem ser consideradas aceitáveis de serem praticadas com bovinos.

Certamente, nenhuma sociedade contemporânea teria dificuldade em qualificar como cruel ou abusivo um esporte que consistisse em perseguir e tombar crianças ou filhotes de cachorros em uma arena, para deleite do público. A controvérsia envolvendo o Bulldogging apenas se sustenta porque, de fato, ainda nos encontramos em um estágio civilizatório anacrônico, onde se consegue fazer juízo de valor entre filhotes de animais pertencentes a espécies diferentes.

3.2. Bem estar dos bezerros no Bulldogging

Os conceitos de “bem estar” animal são controversos e eticamente discutíveis, porque se baseiam muito mais em pontos de vista pessoais, parciais e não-objetivos, do que em pontos de vista racionais, equilibrados e objetivos. O conceito de bem estar animal contraria o conceito de direitos animais.

No entanto, por ser um termo amplamente aceito na sociedade contemporânea, e inclusive encontrar guarida no direito positivo vigente, pode ser conveniente sua adoção pelo momento, com vistas a embasar a presente análise.

Para diagnóstico do bem estar animal utiliza-se a análise das “Cinco Liberdades”9:

1. Liberdade de sede, fome e má nutrição: o animal deve dispor de amplo acesso a fontes de água frescas e uma dieta adequada para manter sua saúde e seu vigor;

2. Liberdade de dor, ferimentos e doença: O animal deve dispor de métodos de prevenção ou diagnóstico rápido e tratamento adequado;

3.Liberdade de desconforto: o animal deve estar inserido em um ambiente abrigado e com uma área de descanso confortável;;

4. Liberdade para expressar comportamento natural: O animal deve dispor de espaço suficiente, instalações adequadas e companhia de animais de sua própria espécie quando for de natureza gregária;

5. Liberdade de medo e estresse: O animal deve estar assegurado gozar condições e tratamentos que impeçam seu sofrimento mental.

Para o caso específico do Bulldogging é de especial relevância considerar a 2º e a 5º liberdades. Em termos gerais:

– É o medo que faz com que o novilho fuja à perseguição dos dois cavaleiros, e certamente esta perseguição configura em situação estressante ao animal. A recorrência da ação leva certamente ao seu sofrimento mental;

– O agarre e tombamento do garrote, ainda que realizado por competidores habilitados, e mesmo que não resulte em traumas físicos evidentes ou morte do animal, certamente lhes causam dor e sofrimento.

Considerando que a própria natureza da atividade consiste em vencer o bezerro colocando-o em risco de lesões, causa mesmo estranhamento a ausência de maior número de registros de traumas e mortes.

A morte do bezerro em agosto de 2011, em Barretos, possivelmente não foi caso isolado. Conforme investigações realizadas desde 2001 pela Organização Não-Governamental Norte Americana SHARK10, o número de animais feridos ou mortos em rodeios é muito maior do que o notificado.

 

De acordo com a referida ONG, essencialmente, se o animal não cair morto defronte às arquibancadas, não haverá porque o público vir a saber que algo ocorreu de errado. Da mesma forma, contusões, fraturas, distensões, edemas e equimose podem não ser perceptíveis de imediato pelo público a uma certa distância da arena.

Em não havendo estatísticas seguras que revelem números em relação aos ferimentos causados aos animais nestas provas, resta tentar entender de que forma os movimentos específicos da prova refletem sobre o organismo do animal vivo.

3.3. Princípio biomecânicos associados ao Bulldogging

Conforme descrito no Item 2.4 do presente Parecer Técnico, após o agarre, o competidor torce a cabeça do bezerro com um movimento de rotação medial brusco á esquerda, ao mesmo tempo em que se ancora no solo, impedindo a continuidade do movimento do animal, que tem seu corpo projetado para a frente. O competidor então realiza um segundo movimento, onde torce a cabeça do animal para trás e para o lado direito, levando o novilho a cair em decúbito dorsal.

Em outros casos, após torcer a cabeça do bezerro para o lado esquerdo, o competidor estrangula o animal, levando-o à queda em decúbito ventral ou lateral direito, em seguida torcendo seu pescoço novamente para derrubá-lo em decúbito dorsal.

Essa torções cervicais e estrangulamentos ocorrem fazendo uso da velocidade e força explosiva, o que permite que o competidor consiga derrubar bezerros mais pesado do que ele mesmo.

Na aplicação destas forças biomecânicas, porém, podem ocorrer sérios traumas ao animal. Um dos traumas que o animal pode vir a sofrer pode não ser perceptível nos primeiros dias após a competição. Como o competidor joga seu peso sobre o corpo do bezerro, é possível que ocorram lesões aos seus órgãos internos e vísceras. Nestes casos, lesões só serão percebidas se o animal manifestar sintomas externamente.

Outras lesões associadas a múltiplas estruturas musculares e articulares também podem ocorrer, como estiramentos, torções, subluxações e luxações articulares, sinovite, defeitos osteocondrais e fraturas diversas.

Ainda, o movimento de torção violenta e estrangulamento, para além da amplitude de movimento do pescoço do bezerro – o que resulta na queda do animal – pode ocasionar em subsequente diminuição da amplitude de movimento e dor, além de hipertonicidade dos músculos cervicais por algumas horas ou dias.

As lesões cervicais, em especial, podem ter consequências neurológicas para o bezerro, podendo mesmo conduzi-los à tetraplegia, quando não á morte.

Os estrangulamentos realizados durante as provas duram geralmente apenas uma fração de segundo, sendo que esta breve constrição não chega a asfixiar o bezerro, porém, dado à força, violência e velocidade do movimento, este pode levar a fraturas, luxações, equimoses, rupturas musculares, inibição do nervo vago e à própria morte do animal.

4 – CONCLUSÕES

O bulldogging é uma prova que ocorre no âmbito dos rodeios e que, ao contrário de outras, não corresponde a nenhuma atividade útil efetivamente realizada em fazendas no Brasil ou de qualquer país. Sua origem não remonta a nenhuma tradição cultural, nem possui qualquer importância histórica.

Analisando os movimentos da prova observa-se que ela inerentemente coloca, a todo o momento, o bezerro em risco de sofrer lesões, algumas delas mortais. Embora o número de registros de incidentes como este seja baixo, isso provavelmente se deve à subnotificação.

Não há como se argumentar que estas provas sejam compatíveis com o conceito de bem-estar animal, ainda que os competidores sejam habilidosos, porque os movimentos necessários ao sucesso da prova são necessariamente prejudiciais para o animal.

É o que tínhamos a informar

São Paulo, 10 de janeiro de 2019

Biólogo Sérgio Greif, MSc.

CRBio 26.797-01

Notas

1 http://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/festa-do-peao-de-barretos/2012/noticia/2012/08/prova-em-que-bezerro-foi-morto-e-suspensa-do-rodeio-de-barretos-sp.html

2 Bull, em inglês, significa touro. Doggie, em inglês, é diminutivo para cachorro. Desta forma, o próprio nome da prova traz a conotação de que o competidor deve subjugar um touro à condição de um “cachorrinho”. No entanto não se trata realmente de um touro, já que nesta modalidade são utilizados bezerros e garrotes. Outro nome pela qual a prova é conhecida é Steer Wrestling, literalmente “lutando com um bezerro”. Groves, M. Ropes, Reins, and Rawhide: All about Rodeo. University of New Mexico Press. 2006.

3 Groves, M. Ropes, Reins, and Rawhide: All about Rodeo. University of New Mexico Press. 2006.

4 http://www.texasescapes.com/ClayCoppedge/Bill-Pickett-and-Bulldogging.htm

5 Hanes, B.C. Bill Pickett, Bulldogger: The Biography of a Black Cowboy. Univ. of Oklahoma 1977/79 (1977)

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