Argumento da posse da razão

Argumento da posse da razão

Por Luciano Carlos Cunha

Considere o seguinte argumento:

“Somente os humanos são dotados de razão. Logo, só humanos são dignos de consideração moral”.

Primeiramente, é falso que todos os humanos são racionais. Por exemplo, é falso que todo e qualquer humano possui um nível racional maior do que todo e qualquer não humano. Compare, por exemplo, o nível racional de um bebê humano de alguns dias com o nível racional de um cão adulto. Existem literalmente milhões de humanos que possuem um nível racional similar (e, às vezes abaixo) do nível racional da maioria dos animais não humanos: bebês, crianças pequenas, portadores de determinadas doenças mentais e vítimas de determinados acidentes. Acidentes e doenças podem fazer qualquer um de nós ficarmos com o mesmo nível racional, ou mesmo abaixo, do nível racional de qualquer animal não humano.

Contudo, saber se alguém é ou não racional não é relevante para saber se devemos ou não respeitá-lo. Para melhor esclarecer esse ponto, imaginemos, para efeito de argumentação, que fosse verdadeira a premissa de que todos os seres humanos são racionais, e que qualquer humano fosse mais racional do que qualquer não humano. Como vimos acima, essa premissa é falsa. Mas, Imaginemos que todos os humanos fossem dotados de razão e que nenhum animal não humano o fosse. O que isso deveria nos dizer sobre quem devemos e quem não devemos respeitar? Nada. Alguém precisa de respeito porque é passível de ser prejudicado ou beneficiado e não, porque é racional. Para que alguém seja passível de ser prejudicado ou beneficiado, basta que seja capaz de experimentar estados positivos e negativos (dor e prazer, por exemplo). Isto é, basta que seja senciente, e isso é independente do nível racional do ser em questão.

Quando a questão é saber se temos ou não a obrigação de respeitar seres humanos, a maioria de nós já reconhece que é totalmente irrelevante saber se o humano em questão é ou não dotado de razão. Ao contrário disso, reconhecemos um dever maior para com aqueles não dotados de razão ou com menores níveis racionais. Por exemplo, peguemos o caso de um bebê ou um portador de determinadas doenças mentais. Ao invés de torturá-los e assassiná-los com vistas a comer sua carne ou fazer com que sirvam de modelo de testes, damos atenção primordial ao seu bem. Isso é assim porque percebemos que tais seres, justamente por serem menos racionais, são mais vulneráveis. Então, pelo menos quando se trata de seres humanos, a maioria de nós já aceita o princípio de que, quanto mais vulnerável alguém é, maiores os deveres perante a esse alguém. E, como percebe-se que, quanto menos racional alguém é, geralmente também é mais vulnerável, mantemos que, quanto menos racional alguém é, maior o dever de protegê-lo.

Mas, já que a falta de racionalidade ou a menor racionalidade em determinados humanos não pode servir de justificativa para desrespeitá-los (ferir sua integridade física, matá-los, não ajudá-los, etc.), também não pode servir como justificativa para desrespeitar os animais não humanos (ferir sua integridade física, matá-los, não ajudá-los, etc.). A menor racionalidade dos animais não humanos deveria justamente contar como uma razão para lhes dar maior proteção (pelo menos, um respeito e cuidado tão grandes quanto se dá normalmente a humanos em níveis racionais similares, como as crianças pequenas, por exemplo). Isso é assim porque, para uma decisão ser justa, casos relevantemente similares devem ser tratados de modo similar.

Uma confusão que é possível estar na origem da idéia de que, para alguém ser digno de respeito, precisa ser dotado de razão é a confusão entre o que é relevante para saber quem tem o dever de respeitar e o que é relevante para ser respeitado. Percebe-se que, para saber se alguém deve ou não deve ser responsabilizado pelas suas práticas, é necessário que esse alguém seja racional. Por exemplo, não faz sentido responsabilizar um bebê pelos seus atos (ainda que faça sentido intervir em seus atos caso estes tenham possibilidade de causar dano a outros ou a ele mesmo). Assim, já que a posse da razão é relevante para saber quem tem o dever de respeitar os outros, conclui-se que a posse da razão é relevante para saber quem deve ser respeitado. Como vimos, isso é um grave erro (aliás, um erro que tem custado a vida de literalmente muitos trilhões de animais não humanos ao longo dos anos). O que é relevante para saber se alguém deve ser respeitado é saber se esse alguém é passível de ser prejudicado ou beneficiado (isso é assim porque alguém precisa de respeito justamente por ser passível de ser prejudicado ou beneficiado).

Fonte: blog Especismo não!


{article 211}{text}{/article}

Olhar Animal – www.olharanimal.org


 

Os comentários abaixo não expressam a opinião da ONG Olhar Animal e são de responsabilidade exclusiva dos respectivos autores.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *