Capacidade de ser parte dos animais: PL 145/2021 é avanço sem precedentes

Este artigo se refere ao Projeto de Lei (PL) nº 145/2021, de autoria do deputado federal Eduardo Costa (PTB/PA), protocolado na Câmara dos Deputados no último dia 3, o qual “disciplina a capacidade de ser parte dos animais não-humanos em processos judiciais e inclui o inciso XII ao art. 75 da Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015 — Código de Processo Civil, para determinar quem poderá representar animais em juízo”.

A redação do projeto é a seguinte:

“Artigo 1º — Os animais não-humanos têm capacidade de ser parte em processos judiciais para a tutela jurisdicional de seus direitos.
Parágrafo único. A tutela jurisdicional individual dos animais prevista no caput deste artigo não exclui a sua tutela jurisdicional coletiva.
Artigo 2º — O artigo 75 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil passa a vigorar acrescido do inciso XII, com a seguinte redação:
Artigo 75………………………………………………………..
XII – os animais não-humanos, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pelas associações de proteção dos animais ou por aqueles que detenham sua tutela ou guarda.
Artigo 3º — Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.
Artigo 4º — Revogam-se as disposições em contrário”.

O anteprojeto acolhido pelo deputado Eduardo Costa, que resultou no PL 145/2021 da Câmara, foi redigido no âmbito do Programa de Direito Animal da Universidade Federal do Paraná (UFPR), vinculado ao Departamento de Direito Civil e Processual Civil da Faculdade de Direito e ao Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do Programa de pós-graduação em Direito da mesma universidade, contando com a imprescindível colaboração de Maria José Vieira de Carvalho Cunha, do Ministério Público do Estado do Pará, e de Anderson Furlan Freire da Silva, juiz federal da 4ª Região, ambos com destacada atuação nas áreas do Direito Ambiental e do Direito Animal.

2) Capacidade de ser parte como pressuposto processual

A capacidade de ser parte, entendida como “a capacidade, ativa ou passiva, de ser sujeito da relação jurídica processual” [1], considerada pressuposto processual de existência, não ocupa grande parte das preocupações dos processualistas, que têm aceitado essa categoria sem maiores indagações críticas sobre o seu fundamento normativo, a sua função na teoria processual e a sua aplicação pragmática.

Talvez essa desimportância da categoria seja resultado da sua parca manifestação empírica, como um “falso problema”, existente apenas para resolver os casos de demandas formuladas por ou em face de pessoa já falecida [2].

Mas a capacidade de ser parte renasce em relevância a partir do fenômeno da judicialização terciária do Direito Animal [3], ou seja, da existência de animais demandando em juízo, em nome próprio, seus direitos subjetivos reconhecidos pelo ordenamento jurídico [4].

A questão que aparece, em primeiro lugar, nessas novas demandas é exatamente a capacidade de ser parte dos animais: pode um animal vítima de violência ou de maus tratos postular, em nome próprio (devidamente representado), uma indenização contra o agressor?

As primeiras respostas do Poder Judiciário têm sido negativas [5], ao argumentando central de que o CPC não contempla a capacidade de ser parte dos animais [6].

3) A capacidade de ser parte dos animais no Direito brasileiro

Se o ordenamento jurídico brasileiro reconhece direitos subjetivos para animais — sobretudo individuais, diga-se logo — não parece possível sonegar-lhes acesso à jurisdição pelo fundamento da incapacidade de ser parte.

A Constituição Federal garante a todos — independentemente de raça, sexo, espécie ou outra discriminação negativa — o exercício de ação em caso de lesão ou ameaça a direito (artigo 5º, XXXV, Constituição). Aliás, bem compreendida, “a capacidade de ser parte decorre da garantia da inafastabilidade do Poder Judiciário, prevista no inciso XXXV do art. 5º da CF/88” [7], não se podendo “dar à lei interpretação que impeça ou dificulte o exercício da garantia constitucional do direito de ação” [8], de modo que não apenas as pessoas, ou entes dotados de personalidade jurídica, têm direito de ação [9].

Quem tem direitos tem direito constitucional de ir a juízo reivindicá-los!

Evidentemente, a inexorável capacidade de ser parte dos animais não se confunde com a sua capacidade de ir a juízo. Tomando-os por absolutamente incapazes, dado que não possuem meios para exercer diretamente qualquer ato da vida civil, os animais somente poderão ser admitidos em juízo mediante representação.

A representação dos animais em juízo, até o momento, tem se dado na forma do Decreto 24.645/1934, o qual, no seu artigo 2º, §3º, estabelece que “os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais”.

4) O Projeto de Lei 145/2021

Conforme o artigo 1º, caput, do projeto, “os animais não humanos têm capacidade de ser parte em processos judiciais para a tutela jurisdicional de seus direitos”.

Não obstante seja possível afirmar que, por derivação da garantia constitucional do acesso à Justiça, os animais, enquanto sujeitos de direitos, ostentam capacidade de ser parte, a resistência dos juízes em admitir que animais demandem em nome próprio justifica o novo preceito.

Mais do que isso, o novo preceito inclui, na ordem do dia dos processualistas, uma nova consideração sobre a tutela jurisdicional dos animais, não apenas no plano da tutela individual, como também no da coletiva.

Assim, ainda que os direitos animais sejam preponderantemente individuais (para a proteção da dignidade animal), não se pode descartar a possibilidade da tutela coletiva dos direitos animais, especialmente na qualidade de direitos individuais homogêneos, o que justifica a inclusão do parágrafo único no artigo de abertura do projeto, para deixar claro que “a tutela jurisdicional individual dos animais prevista no caput deste artigo não exclui a sua tutela jurisdicional coletiva”.

Rompido o obstáculo quanto à capacidade de ser parte dos animais (objeto do artigo 1º do projeto), é preciso dar conta da capacidade de estar em juízo, definindo, dentro do Código de Processo Civil, quais são os legitimados para representar judicialmente os animais.

É difícil continuar dependendo do Decreto 24.645/1934 para essa tarefa, dadas as polêmicas que ainda gravitam sobre essa lei [10], inclusive acerca da sua vigência atual [11].

O Código de Processo Civil é o locus adequado para a definição da capacidade processual, especialmente a capacidade de estar em juízo. Por isso, justifica-se o artigo 2º do projeto, propondo o acréscimo do inciso XII ao artigo 75 do CPC para estabelecer que serão representados em juízo, ativa e passivamente, “os animais não humanos, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pelas associações de proteção dos animais ou por aqueles que detenham sua tutela ou guarda”.

A inspiração para o novo inciso do CPC é o próprio artigo 2º, §3º, do decreto referido, há muito tempo evocado para a tutela jurídica dos animais, possibilitando que a representação processual dos animais se dê por obra do Ministério Público, dos responsáveis diretos pelo animal (tutor ou guardião) e das associações de proteção dos animais. Acrescentou-se a essa lista a Defensoria Pública, dada a sua vocação constitucional para a defesa dos mais vulneráveis (artigo 134, Constituição).

5) Considerações finais

Vale a pena transcrever a parte final da justificação do projeto apresentado, como conclusão deste pequeno artigo:

“Se até uma pessoa jurídica, que muitas vezes não passa de uma folha de papel arquivada nos registros de uma Junta Comercial, possui capacidade para estar em juízo, inclusive para ser indenizada por danos morais, parece fora de propósito negar essa possibilidade para que animais possam ser tutelados pelo Judiciário caso sejam vítimas de ações ilícitas praticadas por seres humanos ou pessoas jurídicas.
Com a aprovação deste projeto de lei, o Congresso Nacional pacificará essas questões processuais, possibilitando uma ampliação significativa da tutela jurisdicional dos animais, o que refletirá na proteção jurídica ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que é um direito fundamental de todos, conforme estabelecido no art. 225 da Constituição Federal”.

O Projeto de Lei 145/2021, do deputado Eduardo Costa, é pós-humanista [12].

A aprovação do projeto pelo Congresso Nacional será um avanço civilizatório sem precedentes, permitindo que o próprio Direito Processual Civil se abra para a realização de uma tutela jurisdicional mais abrangente, mais inclusiva e não especista.

Por Vicente de Paula Ataide Junior

Fonte: Conjur

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