Onça-pintada da Amazônia vira alvo da medicina tradicional chinesa

Onça-pintada da Amazônia vira alvo da medicina tradicional chinesa
Maior felino do continente americano se tornou alternativa para medicina chinesa (Leonardo Prest Mercon Ro/iStockphoto/Getty Images)

Em setembro deste ano, a ONG Proteção Animal Mundial divulgou um relatório amedrontador: onças-pintadas na Floresta Amazônica do Suriname foram caçadas ilegalmente para abastecer o mercado da medicina tradicional asiática. Ao longo de dez meses, a organização de defesa dos animais investigou a prática ilícita a revelou a consolidação do novo mercado que ameaça a sobrevivência do maior felino das américas. O documento confirmou o que já havia sido identificado pela ONG ambientalista WWF em 2010. Quase uma década atrás, a instituição denunciou traços do crime dentro do Brasil e agora o receio é que a prática se espalhe por toda a Amazônia antes que seja possível colocar em prática políticas conservacionistas para preservar a espécie ameaçada de extinção.

No estudo da Proteção Animal Mundial, foram identificados três produtos feitos com as partes do felino: uma substância parecida com uma pasta (produzida com pedaços que não são aproveitados em outros produtos, ao contrário da pele, das unhas e dos dentes), artefatos com dentes e unhas (encontrados principalmente em lojas de joias em Paramaribo, capital do Suriname), e a carne (comunidades chinesas e filipinas residentes no Suriname comem a carne da onça, às vezes em sopas, e usam os ossos para produzir vinho). De acordo com a diretora executiva da Proteção Animal, Helena Pavese, a investigação começou após a ONG receber uma denúncia sobre o crime contra a fauna. “O trabalho foi feito com visitas de campo, entrevistas com agentes de governo, ambientalistas e moradores das comunidades. É um problema que acontece de fato, apesar de não ser tão explícito, porque a caça e a comercialização são proibidas no país”, explicou Pavese.

Segundo as ONGs, as onças se tornaram o novo alvo da medicina asiática para atender a demanda que não é suprida com artefatos feitos com partes de tigres, pois estes foram caçados intensamente. A pasta de onça foi o único produto diretamente relacionado com a exportação para a China, despachada em navios dentro de tubos. A relação com a América do Sul não surgiu simplesmente pela necessidade de encontrar um novo felino místico. Entre 2000 e 2015, em 13 países (Bangladesh, Butão, Camboja, China, Índia, Indonésia, Laos, Malásia, Mianmar, Nepal, Rússia, Tailândia e Vietnã), a ONG de proteção animal Traffic mostrou no relatório Reduzido a pele e ossos, divulgado em 2016, que a população de tigres foi reduzida a 3 800 animais soltos na natureza. No começo do século 20, existiam cerca de 100 000 exemplares da espécie na vida selvagem. As relações comerciais entre a China e os países do continente sul-americano se estreitaram nos últimos anos, o que aumentou o número de imigrantes para a região e, consequentemente, a demanda pelos produtos ilegais. De acordo com o estudo Matado por uma cura, relatório produzido também pela Traffic, em 1994, todas as partes de um tigre são usadas em tratamentos, até mesmo os bigodes, a gordura, a vesícula e a pele. Os motivos também são diversos, como a busca para o tratamento contra vômito, mordida de cachorro, dor de dente, vista cansada e doenças mentais. Os ossos dos tigres são os mais valiosos e o úmero é o mais valorizado. Os países com maior número de apreensões foram China, Indonésia e Tailândia, onde o tigre é considerado o animal mais poderoso e teria a função de curar dores corporais, reumatismo, fraqueza e paralisia muscular.

Com relação à caça ilegal no Brasil, o especialista em Amazônia do GreenPeace, Rômulo Batista, afirmou que a motivação pela demanda asiática ainda não é tão comum nos relatos, mas o felino é extremamente ameaçado por fatores internos. “A medicina tradicional é mais uma ameaça a esse animal guarda-chuva. Ele é um predador de topo de cadeia que garante uma série serviços de conservação”, afirmou. Batista explicou que há várias ações em andamento que pressionam a população desses animais no Brasil e os colocam em risco. A onça sobrevive por se alimentar de outros animais, normalmente os indivíduos mais velhos ou doentes de outras espécies, e funciona como parte do equilíbrio do ecossistema, por ser um predador que mantém as populações saudáveis. Contudo, há no Congresso um projeto de lei para liberar a caça esportiva no país, que colocaria em risco a oferta de comida para o felino. A espécie precisa de grandes áreas de habitat para viver, o que exige a criação, manutenção e conservação de Unidades de Conservação e Terras Indígenas, mas a política de novas áreas protegidas ficou estagnada e o desmatamento ilegal dentro delas quase dobrou nos últimos dez anos. Há medidas para facilitar a mineração, a instalação de hidrelétricas e o agronegócio em áreas protegidas, atividades que abrem caminho para o tráfico de animais. “É um pacote de ações que mostra um futuro cruel para esses animais”, declarou.

Com a presença de ações humanas em áreas de floresta intocadas, a onça tende a procurar por alimentos em fazendas, como gado, porcos e galinhas, o que a deixa mais exposta à caça. A partir disso, há o tráfico motivado pelo oportunismo, pois o fazendeiro que matar o animal para defender a sua propriedade pode tirar proveito da espécie que é valorizada no mercado, enquanto há o tráfico encomendado, quando criminosos saem em busca dos animais com o objetivo de vender suas partes clandestinamente. Em 2016, um fazendeiro foi preso, e liberado após pagar fiança, por caçar onças no Mato Grosso, sob alegação de que elas atacavam o gado de sua propriedade. Em maio deste ano, a Polícia Federal prendeu duas pessoas que caçavam e traficavam animais, incluindo a onça, no Pará. Eles lucravam 1 000 reais por cada onça abatida. No Mato Grosso, a bióloga da USP Francesca Belém Lopes Palmeira estudou o prejuízo econômico causado por ataques de onças-pintadas a animais de fazendeiros. Palmeira afirmou que a perda financeira é de menos de 1%, mas o impacto causado na população é muito forte, o que faz com que os prejudicados queiram caçar o animal. Ainda, a bióloga alerta para uma prática identificada no trabalho de campo. Tradicionalmente, a região tinha uma espécie de caçador especialista em onças, procurado pelos fazendeiros quando ocorria um ataque aos animais de criação. Contudo, sabendo que a onça tem o hábito de retornar à carcaça para se alimentar novamente, alguns fazendeiros começaram a deixar veneno nos restos dos animais mortos. “Por pior que fosse, antes havia apenas um caçador na região. Agora, qualquer dono de sítio consegue comprar veneno nas lojas de agropecuária. Além desse perigo, a onça e todos os outros animais que passarem por ali podem morrer por envenenamento”, afirmou.

Por Jennifer Ann Thomas

Fonte: Veja

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