Somatofobia: violência contra humanos e não-humanos; as vozes dissidentes na filosofia feminista contemporânea (parte III)

Sônia T. Felipe**

RESUMO: Neste artigo que completa a trilogia publicada na Pensata Animal sobre a somatofobia, trato da forma de violência dirigida contra o corpo, compreendida como expressão da dicotomia conceitual superior-inferior, forte-fraco, público-privado, proprietário-escravo, humano-animal. Esta concepção dicotomizada da natureza dos seres vivos alimenta a moral tradicional, incentivando a brutalidade humana contra animais e humanos confinados ao âmbito de vínculos afetivos, econômicos e políticos destrutivos. Mais uma vez, a exemplo do que sucedeu nos dois artigos anteriores, dou atenção às críticas das feministas Carol J. Adams, Carole Pateman, Susan Griffin e Elizabeth Spelmann à violência contra animais e contra mulheres e crianças em condições de confinamento físico e emocional. Levo em conta, ainda, a conclusão do cientista António Damasio sobre o fato da dessensibilização que leva à ruína moral de crianças expostas física, emocional e virtualmente à violência. Nessa perspectiva, a somatofobia pode ser considerada hoje uma questão de saúde pública, necessitando de intervenção pedagógica e terapêutica através de políticas públicas especiais. Através da linguagem somatofóbica o agressor conta sua própria história de desestruturação moral, hipótese confirmada no relato do neurocientista Oliver Sachs.

PALAVRAS-CHAVEsomatofobia, violência, confinamento, Carole Pateman, Susan Griffin, Carol J. Adams.

Introdução

Para superar a somatofobia enquanto doença moral há que se conhecer os fundamentos da estruturação cognitiva humana que sustentam a moralidade. Nos dois artigos anteriores, publicados nos números 2 e 3 da Pensata Animal, reconstituí as teses da filosofia moral tradicional desde os antigos até os modernos, e as críticas a esta tradição, relativamente ao estatuto de seres vivos em suas singulares formas de vida, e dos deveres devidos, ou não, a eles, por conta de sua singularidade. A hostilidade contra qualquer característica presente em seres com os quais o somatofóbico tem que interagir, mas aos quais não concede o direito à igualdade moral, manifesta-se em práticas de destruição do corpo rejeitado. Daí o termo somatofobia, do grego sõma [corpo] e ato, sõmato e phobía, medo. Ato de medo do outro corpo…

A somatofobia requer tratamento pedagógico e terapêutico em nível de políticas públicas, pois o descuido que se teve em relação aos sujeitos somatofóbicos nas últimas décadas nos torna reféns da cultura somatofóbica. O corpo, no Brasil, tem sido alvo contínuo de atos que metem medo. Para superar a somatofobia, a ética deve ser pensada com base na igual consideração de interesses semelhantes, a começar pela abolição de todas as práticas de confinamento de animais humanos e não-humanos, pois toda interação na qual um dos sujeitos se encontra na condição de refém resulta em somatofobia, na destruição do corpo confinado.

Âmbito político, âmbito doméstico: esferas distintas do domínio masculino?

A dicotomização das esferas relacionais humanas em esfera política (pública) e esfera pessoal (privada), a separação entre o homem público e o homem privado, a reclusão das crianças, mulheres e animais ao âmbito do espaço privado, o âmbito do confinamento, sustentam relações de terror na esfera doméstica: bater, estuprar, ameaçar de morte, privar da liberdade física e da liberdade de expressão são formas da violência sofridas por seres confinados. Na esfera política são praticados os ataques terroristas, as invasões, os bombardeios, a devastação ambiental, o extermínio das espécies vivas, a poluição e contaminação do ambiente físico natural. Alguns homens exercem domínio tirânico apenas na esfera doméstica; outros, alçados ao poder, o fazem em escala planetária, no âmbito político e econômico internacional.

Em seu livro The Sexual Contract, Carole Pateman afirma não haver distinção alguma entre a natureza do homem público e a desse mesmo homem na condição de chefe de família. A força empregue pelo homem de Estado para estabelecer domínio sobre homens e mulheres de outro Estado, no caso das guerras e invasões, e a força empregue pelo homem privado para limitar o movimento e impedir a ação da mulher, das crianças e dos animais no âmbito de seus negócios domésticos, configuram igualmente a ordem política do terror. A matriz cognitiva e moral na qual esses indivíduos foram formatados é a mesma.

A distinção hierárquica estabelecida entre masculino e feminino e entre as espécies humana, animal e vegetal, no que diz respeito à esfera do poder de mover-se para prover-se a seu modo específico, a chamada esfera da liberdade, naturaliza a diferença sobre a qual se instala a relação dominador-dominado. Isso contribui para manter invisível a conexão entre a violência sexual masculina contra mulheres e crianças, e a violência e crueldade contra os animais. Em ambos os casos as vítimas tornam-se objetos, vivos-vazios, prontos para serem preenchidos pelo terror que lhes é infligido pelo violentador.

“O abuso [escreve Carol J. Adams] revela uma hierarquia de valores – através da conduta abusiva a pessoa estabelece controle, ficando “por cima” e não “por baixo”- e nessa hierarquização aqueles que se encontram “por baixo” no status público – mulheres, crianças, homens não-dominantes e animais – são recorrentemente vitimizados.”1

A classificação e distinção dos seres em função de seu aparelho reprodutor, um critério biológico que vem sendo sustentado desde Aristóteles, funda a discriminação moral. Com ela faz-se a divisão entre a esfera pública, na qual deve predominar a justiça, que diz respeito somente ao homem, e a esfera privada, a da propriedade e domínio particular desse homem sobre seu patrimônio: mulheres, escravos, crianças e animais. Os homens têm prerrogativas nas duas esferas.

Em Ética a Nicômaco Aristóteles afirma que na esfera privada não há qualquer dever político de justiça. Tratar bem a própria mulher, os escravos, filhos e animais é uma questão de virtude natural, não uma questão política. Esta regula apenas relações entre pares, isto é, entre os homens e seus iguais, outros proprietários de escravos e animais, na esfera política pública. O que os iguala é o fato de serem proprietários de seres vivos-vazios, postos a seu serviço na produção e na reprodução. A esfera privada, o âmbito doméstico, subordina-se à lei do proprietário: “com minha mulher, meus filhos, meus escravos e animais, faço o que entender por bem.” Essa mentalidade ainda não foi superada.

Carol J. Adams, seguindo o raciocínio de Carole Pateman, recusa-se a considerar a violência doméstica como um fenômeno privado, da ordem da intimidade. Para ambas, a violência política e a violência doméstica sustentam-se na mesma epistemologia que atribui valor moral diferenciado aos seres vivos, hierarquizando-os de acordo com seu valor instrumental.

Dessa dicotomia resulta a imobilização de uma parte do ser humano para que a outra parte possa exercer, com exclusividade, a vontade livre. À outra parte do ser humano resta a experiência oposta à liberdade: o terror, o medo de mover-se, de expressar-se, de manifestar-se, de prover-se a seu próprio modo. Esse terror é vivido igualmente por seres humanos e por animais em condições vulneráveis à crueldade, confinados para o abate, confinados para experimentos da indústria bélica, química e de cosméticos, confinados para servirem de espetáculo.

Susan Griffin, em seu livro Severed Heads, comentado por William Andrew Myers,2 diagnostica a trágica vontade de ser dicotomizada: a vontade de quem, por ser dotado de força material, é classificado de forte, e a de quem, por não ser dotado de força material, é classificado de fraco.

O fato de saber-se vulnerável à dicotomia forte-fraco produz angústia moral. A força material – física ou econômica – necessária à preservação do status do forteé gasta em grande parte para sustentar a hierarquização dicotomizadora.

O homem materialmente forte sabe a partir de seu corpo de sua vulnerabilidade à fraqueza e à doença, ao infortúnio econômico, à perda dos meios para manter-se com dignidade. O neurocientista e filósofo português, António Damasio esclarece:

“A concepção de organismo humano […] e a relação entre emoção e razão […] sugerem […] que o fortalecimento da racionalidade requer que seja dada uma maior atenção à vulnerabilidade do mundo interior. […] Em um nível prático, a função atribuída às emoções na criação da racionalidade tem implicações em algumas das questões com que nossa sociedade se defronta atualmente, entre elas a educação e a violência. […]devo dizer que os sistemas educativos poderiam ser melhorados se se insistisse na ligação inequívoca entre as emoções atuais e os cenários de resultados futuros, e que a exposição excessiva das crianças à violência na vida real, nos noticiários e na ficção audiovisual desvirtua o valor das emoções na aquisição e desenvolvimento de comportamentos sociais adaptativos. O fato de tanta violência gratuita ser apresentada sem um enquadramento moral só reforça sua ação dessensibilizadora.”3

Susan Griffin traduz o que há de trágico nas cenas violentas: “tentativas de sair do corpo, anseio de realizar a pretendida idéia de que o pensamento é algo dissociado do mundo. Na verdade (não sem ironia) podemos interpretar a história da tecnologia bélica atual como uma progressiva des-incorporação4 do fazer a guerra, […] uma incapacidade de reconhecer o mundo e nossos corpos como nossos.”5

Formas de expressão da somatofobia

A hostilidade contra o corpo tornado vivo-vazio (somatofobia) pode expressar-se de várias formas, conforme as lista Elizabeth Spelman:

  1. no tratamento cruel a animais não-humanos (especismo) e a humanos;
  2. na violência contra mulheres e crianças (sexismo, machismo, estupro, espancamento);
  3. nos maus-tratos e brutalidade praticados por membros de uma raça contra indivíduos de outra, a pretexto de diferenças físicas (racismo);
  4. na hostilidade e desprezo dos ricos contra os pobres6 (classismo, elitismo).

Em todas essas relações violentas a natureza dos envolvidos aparece dicotomizada: de um lado, o dominante, que impõe sua expressão através do controle e terror; de outro, o subordinado, esvaziado de sentido próprio, dependente, carente, aterrorizado e preso àquele que lhe impõe um sentido e dirige sua existência. Ambos se encontram confinados à forma de interação violenta.

Incapazes de superar a dicotomia conceitual superior-inferior, forte-fraco, mente-corpo, ativo-passivo, pela qual autoriza o ataque e o assalto, opressores e oprimidos inventam e reinventam interações violentas, como se a variação os pudesse libertar do constrangimento de ter que parecer ser absolutamente o que, de fato, não são: ou fortes nunca enfraquecidos, ou frágeis nunca fortalecidos.

No âmbito do confinamento doméstico a somatofobia pode ser identificada nas seguintes práticas:

  1. agressões físicas contra a mulher;
  2. agressões e maus-tratos contra a criança;
  3. quebra-quebra geral;
  4. homicídios7;
  5. maus-tratos contra animais (chutes, arremesso, abandono);
  6. uso de animais como recurso para forçar mulheres e crianças ao sexo (chantagem emocional);8
  7. compra de armas;
  8. cultivo da caça e suas formas simbólicas (jogos, competições sangrentas, rodeios, circos).

À lista acima pode-se acrescentar outras duas formas de violência que implicam claramente hostilidade voltada contra o corpo, no Brasil:

  1. abuso na condução de veículos automotores, resultando em mutilação ou morte de milhares de brasileiros anualmente;
  2. abuso de substâncias tóxicas.

O ser humano, que se põe como dominador do próprio ser, partido e fragmentado pela oposição entre a idéia que cultiva de si mesmo como forte, e a realidade que lhe revela sua vulnerabilidade, violenta o outro, esse que a ele aparece como resíduo da representação conceitual do humano negado: o fraco, o inferior, o vulnerável, o carente, características afirmadas sempre como “de menos”, constituintes desse outro renegado, que no mais das vezes o aborrece, em outras apenas serve de objeto para descarga de sua energia constrangida.

Mas, justamente essa interação com o outro, abominado, pode ser uma forma de linguagem através da qual o violentador relata sua incapacidade de aceitar que a força pode estar ora no lado de lá, ora no lado de cá.

Tratando cruelmente o corpo vulnerável, o violentador pode estar “contando” algo a quem o observa. Crianças pequenas maltratadas e crianças que testemunham maus-tratos crônicos no âmbito da família, se não recebem ajuda podem tornar-se abusadores, tanto de animais, quanto de outros humanos pequenos. Essa tese foi elaborada já nos primeiros séculos de nossa era, por Plutarco e Porfírio, por exemplo, conforme visto no primeiro artigo desta trilogia, “Somatofobia: Violência contra animais humanos e não-humanos; as vozes dissidentes na ética antiga – Parte I”. Exatamente a mesma tese volta a ser defendida no século XXI, desta vez por António Damasio, neurocientista e filósofo português que estuda a mente e a consciência humana há mais de vinte anos.

Maus-tratos sofridos por uma criança quando se encontra na condição vulnerável, ou presenciados por ela sem que possa fazer qualquer coisa para ajudar a criança ou mesmo um adulto que está sendo espancado ou estuprado, podem originar a somatofobia nesse mesmo indivíduo que “aprendeu” como se maltrata sem ter podido aprender como se trata bem o outro vulnerável. A somatofobia é uma fobia centrada em atos contra o corpo vulnerável.

Onde há um violentador, ali há uma biografia violentada.9 A violência, nesse sentido, é literalmente um relato, uma forma de linguagem reveladora da desestruturação moral de um sujeito que passou por relações somatofóbicas violentas, consciente de estar sendo tratado como um mero corpo-vivo-vazio. Por sua reprodução, de geração a geração, a somatofobia enquanto forma de expressão emocional e moral não pode mais ser ignorada nas políticas públicas. Trata-se de uma questão de saúde pública.

Educadores e terapeutas de todas as áreas devem estar atentos não apenas em relação àqueles que sofrem a violência (pacientes morais), mas também em relação àqueles que a praticam (agentes morais). A violência só é possível porque um sistema de relações no qual sempre os mesmos indivíduos aparecem como dominantes e os demais como subordinados é cultivado. Por isso, quaisquer formas de relação ou práticas institucionais que fomentem a reprodução de papéis nos quais uns se mostram sempre como fortes, ameaçando outros, os fracos, sejam estes humanos ou não-humanos, devem ser desarticuladas.

Descarregando seu ímpeto de destruição sobre aquele que lhe aparece como fraco, aquele que parece forte nos relata a vulnerabilidade moral do seu estado mental, a fragmentação da consciência de si. A memória de relações violentas, vividas na condição passiva num momento em que não se achava e não era nada forte, ou no qual não poderia fazer parecer que o fosse, marca indelevelmente o sujeito violentado, tornando-o capturado para reproduzir o mesmo mais tarde.

É preciso estar atento e forte… não temos tempo de temer a morte

Oliver Sacks, em seu livro, Tio Tungstênio, relata-nos um episódio biográfico dramático de sua infância, corroborando a hipótese das filósofas Carol Adams e Elizabeth Spelman, de que a violência contra os animais deve ser considerada uma forma de linguagem através da qual o violentador relata uma experiência traumática não possível de ser verbalizada, por ter sido experienciada em condições de terror.

Aos seis anos de idade, Oliver Sacks foi levado para um internato no interior da Inglaterra, construído às pressas durante a Segunda Guerra Mundial para abrigar as crianças de um colégio de Londres, enquanto durassem a guerra e os ataques alemães.

Filho de uma médica e um médico descendentes ambos de famílias judaicas abastadas repletas de cientistas e inventores, Oliver foi separado de seu pai, mãe e irmãos, por mais de um ano durante os bombardeios nazistas. Naquele ano, segundo seu relato, sofreu todas as formas de violência física e emocional às quais se pode condenar uma criança nessa idade: frio, isolamento afetivo, espancamentos infligidos pelo diretor da escola, desnutrição, castigos de todo tipo, terror. A experiência da crueldade que sofria no internato foi relatada somatofobicamente por ele à família numa das visitas que fez, sem que pronunciasse uma só palavra. Ele assim o descreve:

“Um episódio peculiar e vergonhoso gravou-se em minha mente naquele breve período passado em casa durante a blitz. Eu gostava muito de Greta, nossa cachorra […], mas, naquele inverno, uma das primeiras coisas que fiz foi prendê-la no gélido depósito de carvão no quintal, onde seus choros e latidos aflitos não podiam ser ouvidos. […]. Pensei nela – com fome e frio, presa, talvez morrendo lá fora no depósito de carvão -, mas não disse nada. Somente no fim da tarde admiti o que havia feito, e Greta foi trazida do depósito, quase congelada. Meu pai ficou furioso, deu-me “uma boa surra” e me deixou de castigo num canto o resto do dia. No entanto, ninguém procurou saber por que eu fora tão inusitadamente malvado, por que agira com tanta crueldade com a cachorra que eu adorava; tampouco eu poderia ter explicado, caso me perguntassem. Mas sem dúvida fora uma mensagem, alguma espécie de ato simbólico, tentando chamar a atenção de meus pais para o meu depósito de carvão, Braefield, para o meu sofrimento e o desamparo naquele lugar. Embora em Londres caíssem bombas todos os dias, eu tinha mais horror de voltar para Braefield do que conseguia expressar, e ansiava por ficar em casa com minha família, para estar com eles, não separado deles, mesmo se fôssemos todos bombardeados.”10

Diagnóstico e prevenção

Mulheres, homens e crianças violentadas, portanto ameaçados da violência, empregam formas não convencionais de linguagem para fazerem o “relato” do que estão sofrendo, pois na condição emocional de reféns, sob ameaças, não podem “verbalizar” o que está se passando. Assim, nas políticas públicas de prevenção à violência é urgente que se dê atenção à linguagem dos vulneráveis-violentados. Através de expressões somatofóbicas, crianças, jovens e adultos “mostram” de algum modo que também “sabem” violentar. No trato da questão, poucos profissionais se perguntam onde, de que modo, em quais circunstâncias o somatofóbico aprendeu a fazer o que faz.

Crianças, via de regra, encenam com animais ou com crianças menores o terror ou violência sofridos.11 Esta encenação pode aparecer na forma de apego obsessivo a animais ou a outras crianças mais frágeis, extravasando a necessidade de controle sobre seus corpos;12 ou, no caso de crianças vítimas da violência, pode manifestar-se na rejeição de coisas que antes apreciavam; podem recusar certos alimentos, ou fixarem-se em outros; podem evitar interações, ou, quando o fazem, reproduzir o esquema domínio-chantagem-submissão-controle.13

A linguagem do violentador previamente violentado é carregada de detalhes que informam ou evocam o tipo de violência sofrida. Se queremos uma cultura na qual a violência sofrida por uns, quando não houve modo de evitá-la, não se transforme em matriz cognitiva e moral a ser passada às gerações seguintes, perpetuando, pois, a maldade, é preciso decodificar a cena atual da violência para poder identificar a cena antiga da violência que não pôde ser evitada, e por isso mesmo, não pode ser apagada.

A dicotomia forte-fraco, concebida para estabelecer uma distinção conceitual entre quem tem poder e quem é vulnerável, cria um vão aparentemente intransponível entre dois seres. No entanto, eles não são ontologicamente distintos. O forte e o fraco só aparecem como tais em condições bem específicas. Subtraídas as condições nas quais o forte pode manifestar-se como forte e o fraco vulnerável à força do outro, resta a ambos a fragilidade de sua condição de seres vivos, dotados de um organismo que requer proteção e do desejo de estar bem, a seu modo específico, seja humano ou animal.

A divisão entre fortes e fracos, poderosos e vulneráveis, cria a brecha que impede vínculos solidários. Por ser natural à toda espécie animal, a interação com seus pares, única forma de constituição da subjetividade, e o desejo de vincular-se permanecem naquele que se julga poderoso. Mas ele vincula o ser do outro ao seu, negativamente, sujeitando-o pela força e pelos maus-tratos, tornando-se, pelo terror que causa, onipresente na constituição psicológica e biográfica do outro. Assim, ao ver a fragilidade fora do seu corpo, protege-se emocionalmente do terror de saber-se vulnerável, perecível. É preciso estar atento e forte… não temos tempo de temer a morte.

Violentador e violentado despendem energia para manter suas respectivas posições na relação de confinamento na qual se completam, a de terrorista, e a de aterrorizado. O terror, esse medo que impede o animal de mover-se para prover-se, é a arma utilizada em todas as formas de assalto ao corpo do outro, das guerras ao estupro, do espancamento ao abate. Uma arma que só pode ser usada pelo confinamento físico ou emocional da vítima.

O aprisionamento de outros seres vivos assegura ao assaltante que os assaltados, seqüestrados, invadidos e violentados não ajam. Imobilizados na forma violenta dessa interação, os submetidos perdem sua condição de sujeitos. O domínio se estabelece incontestavelmente,14 na forma sujeito-objeto.

Uma nova epistemologia para uma nova pedagogia

A epistemologia relacional proposta por Susan Griffin sugere que se comece por “reconstruir a consciência de modo associativo e integrativo”,15 como terapêutica ética para tratar da somatofobia. Na perspectiva terapêutica, a cura não se restringe à busca do fim do sofrimento psíquico individual. Ela pode ser traduzida em termos políticos como “aceitação do outro”, heterofilia, em vez de sua “rejeição”, heterofobia16.

O princípio da aceitação do outro não deve ser confundido com complacência17para com as formas violentas de interação dele. Desvelar o caso particular de constituição de uma mente somatofóbica não implica em aceitar sua forma de expressão como natural. Pelo contrário, implica em reconhecer essa manifestação como expressão de um abalo moral profundo sofrido por esse mesmo sujeito.

O trabalho deve ser dirigido para a reconstrução emocional do sujeito somatofóbico, pois a dessensibilização, à qual António Damásio se refere, vem sendo construída no sujeito através da exposição de sua mente às cenas de violência e dos diferentes discursos que a obnubilam. Essa confusão entre o que se vê e o que se ouve a respeito da violência impede o espectador passivo de tornar-se consciente do dano moral que a mesma produz.

A maior parte das notícias e cenas de violência que nos são oferecidas pela mídia vem coberta ou disfarçada por imagens que impedem qualquer afeto positivo. Cenas de corpos em estado brutalizado não evocam em nós, de modo geral, qualquer desejo de aproximação, mas o de distância, acompanhado do desejo ainda mais premente de apagá-las o mais rápido possível de nossas mentes. A representação de pessoas em condições nas quais aparecem em sua limitação física, esfaqueadas, baleadas, dilaceradas, causa-nos horror. Mas este sentimento de nada vale. Não nos identificamos com destroços.

O impulso do sujeito moral, influenciado pela idéia de que tal condição vulnerável não deve jamais tornar-se expressão do seu ser, é apagar de sua mente a imagem desse outro que lhe revela sua própria condição perecível.

Separar o corpo, da mente, e a natureza, da consciência, facilita a produção da hostilidade contra quem é classificado como inferior, desprezível. A proposta epistemológico-ética de Susan Griffin, analisada por Myers, vincula a imaginação simpatizante à atividade gnosiológica propiciada pelo corpo. O conhecimento deve ser incorporado no seguinte sentido: “acolher o outro com simpatia requer a consciência profunda de nós mesmos como seres físicos e emocionais”,18 vulneráveis à violência, física e emocional, subjetiva e objetivamente, conforme o alerta António Damasio.

O diagnóstico de Griffin, o qual estabelece a violência como patologia resultante da dicotomia do ser, portanto da separação entre o pensamento e o corpo, a compreensão racional conceitual e o sentimento moral, foi elaborado pela primeira vez por Hannah Arendt, ao fazer o protocolo do julgamento de Eichmann em Jerusalém, na obra, Eichmann em Jerusalém: ou da banalidade do mal. Neste texto sobre a banalidade do mal, Hannah Arendt trata da incapacidade revelada por alguns nazistas de formular juízos morais e direcionar a vontade de acordo com princípios morais universais.

Em sujeitos dicotomizados, nos quais a compreensão da diferença só é possível por divisão, separação, hierarquização e exclusão, manifesta-se também a “incapacidade de reconhecer em toda sua plenitude a extensão de suas ações” sobre o outro. Pois, em não havendo nenhum valor ou sentido nesse outro inferiorizado, esse vivo-vazio, nada que lhe seja feito pode, realmente, afetá-lo. Frieza e indiferença marcarão a interação sujeito-objeto.

Arranca-se do corpo a consciência; logo, a atividade violenta volta-se apenas contra um corpo vivo, um mero objeto. Para o violentador ali não há consciência, apenas um vivo-vazio de si. Ataques bélicos, assaltos sexuais e abate de animais em massa, em última análise, “aterrorizam” e “desmoralizam”.19 Mas nossa moralidade “poupa as pessoas de verem as implicações e conseqüências diretas de suas ações”,20 de seu estilo de vida e consumo. Quantos adultos já viram a cena do abate de aves e suínos cuja carne põem em seu prato?

A negação da realidade corporal e do resíduo imaginário que ela produz e a substituição ou troca das imagens para impedir que a consciência seja constituída sobre experiências corpóreas acaba sendo o recurso conservador que fomenta as relações violentas na cultura ocidental contemporânea.21

Em não se falando nem mostrando o estrago que atos de violência produzem no agente, em não se revelando a condição desmoralizante da sujeição de um ao outro, sustenta-se a cultura violenta. Nos meios de comunicação não são mostrados aos consumidores os bilhões de corpos dilacerados pelo processo industrial de produção de alimentos, cosméticos e sub-produtos de origem animal. Com nosso estilo de vida e consumo, continuamos a praticar a violência achando que o fazemos sem atrocidade, porque os meios de comunicação jamais nos mostram nossos feitos contra os animais. Assim, não percebemos nossos atos como violentos. Em nossa mente, a palavra violência está associada a cadáveres destroçados por outros agentes, por motivos ignóbeis. Os nossos próprios motivos são sempre moralmente justificáveis, os dos outros, não. Não falamos da violência moral. Essa abala a estruturação da personalidade, incapacitando o sujeito para lidar com os demais como seus iguais, para assumir ora a condição do forte, quando é benéfico a todos, ora aceitar ajuda, quando precisa de benefício.

Referências Bibliográficas

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  5. FELIPE, Sônia T. Princípios éticos para uma justiça global. In: http://www.vegetarianismo.com.br/
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  8. FELIPE, Sônia T. Valor inerente e vulnerabilidade: critérios éticos não-especistas na perspectiva de Tom Regan. In: ETHIC@. Revista Internacional de Filosofia da Moral. http://www.cfh.ufsc.br/ethic@/et53art9Sonia.pdf
  9. FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. In: REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO ANIMAL. Salvador, Instituto de Abolicionismo Animal, v. 1, n. 1, jan./dez. 2006, pp. 207-229.
  10. FELIPE, Sônia T. Violência sexual na família e cumplicidade institucional. In: TEXTO &CONTEXTO. Volume Temático: Família e Violência. Revista de Enfermagem da UFSC, Florianópolis, v. 8, n. 2, Maio/Agosto 1999, pp. 77-100.
  11. FELIPE, Sônia T. & PHILIPPI, Jeanine N. O corpo violentado: estupro e atentado violento ao pudor. Florianópolis: Edufsc, 1998.
  12. FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003.
  13. FELIPE, Sônia T. Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas. Florianópolis: Editora da UFSC, 2007.
  14. FURNISS, Tilman. Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed, 2002.
  15. MEMMI, Albert. Le racisme; description, définition, traitment. Paris: Gallimard, 1982.
  16. REGAN, Tom. Jaulas Vazias. Porto Alegre: Lugano, 2006.
  17. SACKS, Oliver. Tio Tungstênio: memórias de uma infância química. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
  18. WARREN, Karen J. “The Power and the Promise of Ecological Feminism”. In: GOULD, Carol C. (Ed.) Gender: Key Concepts in Critical Theory. New York: Humanity Books, 1999.
  19. WARREN, Karen J. & CADY, Duane L. (Ed.) Bringing peace home: feminism, violence and nature. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1996.

Notas

* Uma versão preliminar desta parte do trabalho foi apresentada no Fazendo Gênero 2000, no Auditório do Centro de Convivência, da Universidade Federal de Santa Catarina. As feministas da UFSC, que não se ocupam da questão da violência contra os animais e sua vinculação com a violência doméstica, não consideraram o trabalho digno de ser publicado na coletânea que fizeram com os artigos de outras estudiosas do feminismo, apresentados naquele evento. Embora eu o houvesse entregue pessoalmente, impresso, e em disquete, a uma dos membros da comissão editorial, nunca recebi resposta sobre a publicação, ou não, do mesmo. Dediquei-o aos educadores presentes ao I Congresso Brasileiro e Latino-americano de Educação Humanitária, e a todos os que lá não puderam estar, mas agora o podem ler com vagar e pensar.

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1 Carol J. Adams, BPH, p. 79.

2 William Andrew Myers, “‘Severed Heads’: Susan Griffin’s Account of War, Detachment, and Denial”. In: WARREN, J. Karen and CADY, Duane L.. Op. cit., p. 106-117.

3 Damasio, O Erro de Descartes, p. 278.

4 Myers esclarece por que emprega o termo disembodiment para designar o que Griffin critica: “Griffin’s approach to these strategies leads me to term them disembodiments, because they cut us off as knowers from what our bodies tell us about the world and suffering.” Ibid.. p. 109.

5 William Andrew Myers, Op. cit., p. 107.

6 Ibid., p. 75.

7 Ibid., p. 71.

8 Carol Adams considera a injúria contra o animal um modo de aniquilar a fonte de conforto efetivo da mulher e das crianças, no âmbito da família violenta. O uso de animais para exploração sexual da criança e da mulher é a humilhação mais degradante que elas podem sofrer, pois o animal de estimação é usado, como arma, contra elas. Cf. Carol J. Adams, BPH, p. 71. Na pornografia, aparece claramente a violência contra as mulheres e as crianças, especialmente naquela que compõe sexo entre elas e animais: cavalos, cachorros, porcos, cobras e outros. Cf. BPH, p. 72; há cenas, em filmes pornográficos, nas quais o homem abusa sexualmente da criança e de animais, ao mesmo tempo. Cf. BPH, p. 73.

9 Cf. FURNISS, Tilman. Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar. 2ª reimpressão. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.

10 Oliver Sacks, Tio Tungstênio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 29- 30.

11 “… Crueldade contra animais na infância tem sido um dos mais significativos indicadores diferenciadores de comportamento entre matadores sexuais que foram abusados antes de se tornarem eles mesmos abusadores e outros que não sofreram abusos.” Carol J. Adams, BPH, p. 74. A autora cita uma pesquisa publicada em 1993, por Ascione, revelando que 35% de meninos e 27% de meninas que sofrem abuso sexual no âmbito da família tratam os animais com crueldade, enquanto apenas 5% de meninos e 3% de meninas que não sofrem abuso sexual o fazem. Nesse sentido, é bom que adultos atentem para a possibilidade de que algo esteja sendo “relatado” pela criança, quando se torna cruel contra animais. Há nas videolocadoras um filme valioso, para quem trabalha com crianças que sofrem abuso sexual na família: A ira de um anjo. Quando a criança violentada não pode verbalizar o que se passa com ela, ela reproduz, no corpo dos seres mais vulneráveis à sua volta, a violência sofrida.

12 Um dos sinais de vitimização, que mulheres e crianças vulneráveis ao abuso sexual podem emitir: intensa relação e apego aos animais de estimação. Tornar-se pessoa, fugir das dicotomias, requer identificação com alguém, de quem aprendemos o ser pessoa. O apego intenso aos animais pode ser a expressão de uma outra identificação, a vinculação entre um ser humano e um outro condenado à condição de mero corpo animal. Carol Adams cita aqui o trabalho de Annette Baier e de Lorraine Code, do qual resultou o conceito de “segunda pessoa” fundamental à teoria da constituição do ser pessoa em todo ser humano. Cf. Carol Adams, BPH, p. 77. Nesse sentido, se precisamos de pessoas, como modelos para nos tornarmos pessoas, o fato de uma criança crescer em meio àqueles que não constituem em bom modelo para seu vir-a-ser, pode levá-la a identificar-se muito mais com seres não-humanos, que se encontram, na mesma condição, vulneráveis à violência. O círculo se fecha: pessoas nada exemplares – violentas – provocam na criança o desejo de identificar-se com seres melhores, no caso, não violentadores. Animais de estimação despertam um grande carinho e apego, por serem incapazes de cometer atos de violência contra as pessoas com quem vivem. Para o violentador, todos estão no mesmo lugar: crianças, mulheres e animais: são corpos, objetos, instrumentos através dos quais ele cala sua própria condição, fragmentada. Cf. Carol Adams, BPH, p. 77.

13 Em muitos casos, a criança violentada se auto-agride e não agride os animais. A recusa súbita de um certo tipo de alimento pode ser um sinal de que algo de grave se passa na relação que a criança tem com o que é introduzido em seu corpo. Cf. Carol J. Adams, BPH, p. 81.

14 Carol J. Adams, BPH, p. 82.

15 Ibid.. p. 107.

16 “… Hétérophobie pourrait désigner ces constellations phobiques et agressives, dirigées contre autrui, que prétendent se légitimer par des arguments divers, psychologiques, culturels, sociaux ou métaphysiques, et dont le racisme, au sens biologique, serait une variante. A ma connaissance, ces termes n’existent pas dans le dictionnaire, mais, là encore, j’espère que le besoin et l’usage les imposeront.” Albert Memmi, Le racisme; description, définition, traitment. Paris: Gallimard, 1982, p. 115-6.

17 “… Such complacency has an identifiable structure; it is not mere apathy or dullness of spirit. It is rather that the normal human feeling response to suffering, commonly evoked in the presence of people or animals in pain or distress (or their images), requires empathetic imagination to arise in the abstract or at a distance, and the socialization of a war society replaces that empathetic imagination with dehumanizing images of the ‘enemy’, patriotic idealism, and pseudorational calculation of military necessity.” William Andrew Myers, Op. cit., p. 109.

18 “… to respond empathetically to others requires deep awareness of our selves as physical and emotional beings”. Ibid., p. 110.

19 Ibid., p. 114.

20 “… keeps people from seeing the implications and direct consequences of their actions”. Susan Griffin apud Myers, Op. cit., p. 112.

21 Ver os Documentários, A carne é fraca Não matarás, do Instituto Nina Rosa. Ler, FELIPE, Sônia T. Princípios éticos para uma justiça global. In: http://www.vegetarianismo.com.br/; FELIPE, Sônia T. Implicações morais do sofrimento animal e da devastação ambiental; a desmoralização humana na produção e consumo de carne. In: http://www.vegetarianismo.com.br/; REGAN, Tom. Jaulas Vazias. Porto Alegre: Lugano, 2006; EISNITZ, Gail A. Slaughterhouse: The Shocking Story of Greed, Neglect, and Inhumane Treatment Inside the U. S. Neat Industry. New York: Prometheus Books, 1997; ADAMS, Carol J. The Sexual Politics of Meat: A Feminist-Vegetarian Critical Theory. New York: Continuum, 1990; PATTERSON, Charles. Eternal Treblinka: Our Treatment of Animals and the Holocaust. New York: Lantern Books, 2002.


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