Como uma foto mudou nossa visão dos chimpanzés

Como uma foto mudou nossa visão dos chimpanzés
A foto de Jane Goodall com o bebê chimpanzé Flint desafiou as normas científicas e mudou nossa visão do reino animal. Foto: HUGO VAN LAWICK

No dia 14 de julho de 1960, chegava de barco à costa do lago Tanganica – na porção que hoje pertence à Tanzânia – uma jovem de 26 anos. Seu nome era Jane Goodall.

Ali, onde agora fica o Parque Nacional Gombe Stream, Goodall começou sua revolucionária pesquisa científica sobre o comportamento dos chimpanzés.

Antes de chegar à África, Jane Goodall trabalhou como secretária e não tinha formação em ciências.

Ela conta que observava os animais selvagens com a mente aberta e sem preconceitos. E contrariou as convenções e práticas da época, dando nomes aos chimpanzés, em vez de números.

Foi uma imagem de Goodall registrada naquela época que capturou sua abordagem inovadora, desafiou as normas científicas e passou a ser uma das fotografias mais conhecidas do mundo.

Seu marido, o fotógrafo holandês Hugo van Lawick (1937-2002), viajou para Gombe em 1962.

Lá, ele tirou milhares de fotografias de Jane Goodall. Mas foi em 1964 que ele tirou aquela que se tornaria a foto mais emblemática da pesquisadora, com um filhote de chimpanzé conhecido como Flint.

Flint foi o primeiro chimpanzé a nascer em Gombe após a chegada de Goodall.

Na foto, ela aparece agachada, esticando seu braço direito em direção ao filhote, que também estende seu braço esquerdo em direção a ela.

Jane Goodall relembra à BBC que aquela era uma época muito anterior à fotografia digital. Por isso, ela precisava esperar algum tempo para poder ver as imagens impressas.

“Levou dois meses ou mais até surgir uma forma segura de enviar os filmes revelados para a [National] Geographic para que fossem processados e, depois, havia mais uma espera enquanto eles enviavam as impressões de volta para Kigoma [a cidade mais próxima]”, ela conta.

“Quando eu a vi, não imaginei que se tornaria simbólica, mas ela realmente me fez pensar na pintura de Michelangelo, com Deus esticando o braço para o Homem”, segundo Goodall.

A foto tirada em 1964 foi publicada pela primeira vez na revista National Geographic em dezembro de 1965.

Outra foto de Goodall estudando os chimpanzés de Gombe ilustrou a capa da revista e foi publicada como parte de uma série de fotografias de van Lawick intitulada New Discoveries Among Africa’s Chimpanzees (“Novas descobertas entre os chimpanzés da África”, em tradução livre).

Naquele mesmo ano, a National Geographic lançou o documentário Miss Goodall and the Wild Chimpanzees (“A Srta. Goodall e os chimpanzés selvagens”, em tradução livre), o primeiro de muitos filmes divulgando as pesquisas de Jane Goodall.

A foto com Flint e o documentário de van Lawick People of the Forest: The Chimps of Gombe (“Pessoas da floresta: os chimpanzés de Gombe”, em tradução livre) “forçaram a ciência a abandonar a ideia de que os seres humanos seriam os únicos seres sencientes, com personalidade, mente e emoções”, afirma Goodall. Esta noção era ensinada quando ela estudou na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, em 1962.

“Por isso, [esta imagem] abriu toda uma nova forma de compreensão sobre quem são os animais e mostrou que nós, seres humanos, somos uma parte do reino animal e não separados dele.”

‘Desbravadora’

As pesquisas de Goodall com chimpanzés na Tanzânia abriram caminho para que outras mulheres pudessem seguir carreira como primatologistas. Foto: PENELOPE BREESE / GETTY IMAGES
As pesquisas de Goodall com chimpanzés na Tanzânia abriram caminho para que outras mulheres pudessem seguir carreira como primatologistas. Foto: PENELOPE BREESE / GETTY IMAGES

Jane Goodall foi a primeira pessoa a observar que os chimpanzés arrancavam folhas de grama rígidas e as usavam para cutucar buracos nos cupinzeiros, capturando e comendo aqueles insetos. Acreditava-se até então que o uso de ferramentas era um fator que diferenciava os seres humanos de todos os outros animais.

O diretor de ciências da organização ambientalista WWF, Mark Wright, afirma que Jane Goodall foi “uma verdadeira desbravadora” em muitos sentidos. Mas, para ele, esta fotografia ajudou as pessoas a reconhecer a importância da perspectiva feminina na comunidade científica.

“Ela era uma jovem afirmando que as mulheres eram igualmente aptas a fazer pesquisas de campo verdadeiramente de primeira categoria”, destaca Wright.

“Até então, era um ambiente bastante dominado pelos homens. Depois, houve uma sucessão de mulheres altamente qualificadas fazendo este tipo de trabalho.

” O ex-presidente da National Geographic Society, Gilbert M. Grosvenor, também defende que “o caminho desbravado por Goodall para outras mulheres primatologistas, sem dúvida, é o seu maior legado”.

“Durante o último terço do século 20, mulheres como Dian Fossey, Birute Galdikas, Cheryl Knott, Penny Patterson e muitas outras seguiram seus passos”, escreveu ele na biografia da primatologista do Instituto Jane Goodall.

“Na verdade, as mulheres agora dominam os estudos de longo prazo sobre o comportamento dos primatas em todo o mundo.

]” Quando a foto simbólica foi tirada em 1964, Goodall estava imersa na vida em Gombe. Ela começava a entender os chimpanzés que vinha estudando e acumulava lentamente suas observações sobre o comportamento dos primatas.

Esta experiência presencial sempre foi sua prioridade, segundo Wright. “Esta foto nos relembrou que, em grande parte deste trabalho, não há alternativa a não ser estar no campo.”

“Muitos dos estudos eram feitos em zoológicos ou parques de animais, [mas] você precisa estar no campo para realmente entender o comportamento natural”, prossegue ele.

“E você precisa fazer isso em longo prazo, não pode apenas aparecer por duas semanas. Ela reforçou este ponto.

” Goodall viajou para o leste africano sem nenhuma qualificação formal e viveu em Gombe por mais de duas décadas, dedicando sua vida ao estudo de gerações de chimpanzés.

Para Wright, a foto transmite uma mensagem poderosa para as pessoas que não estudaram ciências, mas, mesmo assim, querem participar de pesquisas científicas: a de que, às vezes, uma mente aberta é o melhor começo.

“Não era alguém usando jaleco, ela pôde ser empática”, afirma Wright.

“E, como ela não tinha a sobrecarga do grande aprendizado formal, ela conseguiu chegar como livre pensadora e interpretar [o que via].”

Disposta a abrir o mundo das pesquisas científicas para todos, Jane Goodall inspirou muitas pessoas a estudar primatologia no campo.

Desde 1960, mais de 482 estudos científicos e teses de graduação sobre a saúde e o comportamento dos chimpanzés foram publicados pelo Centro de Pesquisa de Gombe Stream, onde já estudaram centenas de cientistas.

Ao lado do seu imenso acervo de documentários, livros e artigos para a National Geographic, as fotografias de Jane Goodall com Flint destacaram a importância da conservação de animais individuais.

“Antes, tudo era sobre salvar as espécies – os indivíduos não tinham importância”, ela conta. “O pensamento científico mudou.”

Em 2021, uma análise do antropólogo norte-americano Michael Lawrence Wilson resumiu as muitas descobertas científicas realizadas em Gombe e analisou o impacto das pesquisas pioneiras de Goodall com os chimpanzés.

“Gombe é um exemplo do que se tornou um método padrão de estudo de campo dos primatas: pesquisas colaborativas, coletando informações sistemáticas sobre os indivíduos identificados, que são acompanhados ao longo de toda a sua vida”, conclui ele.

‘Os melhores dias da minha vida’

Atualmente, a foto deixa Jane Goodall com saudades.

“Ela me lembra de uma época mágica, quando eu conhecia cada chimpanzé individualmente como os membros da minha família”, ela conta.

“Acompanhei o desenvolvimento de Flint desde que era um minúsculo bebê até se tornar um moleque mimado, sempre apoiado pela sua irmã mais velha ou por um dos irmãos mais velhos, se outro jovem o machucasse acidentalmente (ou, às vezes, de propósito!). A imagem me faz pensar nos melhores dias da minha vida.”

A proximidade entre Goodall e Flint na fotografia também reflete a cultura da época, segundo Wright. Ele ressalta que os cientistas agora se mantêm à distância dos animais que estão observando.

“Mas ela estava fazendo algo que realmente não havia sido feito antes. Tiro meu chapéu para ela. Seu trabalho foi absolutamente revolucionário.”

Para Wright, acima de tudo, a foto mostra o verdadeiro amor de Goodall pelo animal.

“Existe um carinho e afeição pela espécie que ela está estudando. E há também um amor por Gombe – ela encontrou o seu lugar.”

Para Jane Goodall, sua simples conexão com Flint é o que torna esta imagem tão cativante.

“Suspeito que foi o apelo daquele pequeno bebê estendendo os braços com tanta confiança – uma conexão real entre o humano e o chimpanzé. Pelo menos, é por isso que ela é tão poderosa para mim.”

* O Instituto Jane Goodall salienta que não é mais considerado apropriado o contato físico com animais selvagens e que “não recomenda o manuseio, a interação ou o contato próximo com chimpanzés ou outros animais selvagens”.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.

Por Anna Turns

Fonte: BBC

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