Da idéia do valor inerente à abolição da exploração animal

Proponho-me, nessa apresentação, a mostrar como, a partir da ênfase na coerência moral e nas exigências formais de um princípio ético (universalizabilidadegeneralidade e imparcialidade), elementos muito presentes na obra da Prof.ª Dra. Sônia T. Felipe, chega-se a uma posição abolicionista quanto ao uso de animais.

Para tal, valho-me da análise dos conceitos de valor inerente e vulnerabilidade, elementos básicos na teoria de direitos desenvolvida pelo filósofo Tom Regan, um dos autores, dentre outros, que tive oportunidade de conhecer a argumentação a partir das aulas e escritos da professora Sônia T. Felipe. Não reconstituo aqui a argumentação que faz a ponte, na proposta de Regan, entre o reconhecimento do valor inerente e o surgimento de direitos. Para a compreensão do que abordo aqui, basta lembrar que os direitos defendidos por Regan na obra The Case for Animal Rights, são direitos morais básicos. Diferentemente de direitos adquiridos, os direitos básicos seja são independentes da performance de quaisquer atos e do lugar que se ocupa nos arranjos institucionais. Diferentemente dos direitos legais, não dependem de estarem declarados na forma de lei, e nem variam de acordo com a época ou de acordo com diferentes sociedades. Ao invés, precisam estar amparados num princípio ético universalizável, ou seja, capaz de ser compreendido e aceito por qualquer ser dotado de razão[1].

Uma das exigências de todo julgamento, para que possa ser classificado como um juízo ético, segundo toda uma tradição que funda a ética na razão, é a imparcialidade. Há uma ligação da imparcialidade com o princípio formal da justiça, aquele que exige dar aos indivíduos o que lhes é devido. Não se cumpre tal exigência quando indivíduos similares são tratados dissimilarmente, ou quando indivíduos diferentes são tratados similarmente. O princípio é formal porque ele não especifica o que é devido aos indivíduos. Apenas diz: seja o que for devido, a justiça não é feita se indivíduos são tratados diferentemente sem se citar uma característica moralmente relevante que justifique o tratamento diferente, ou se indivíduos são tratados de forma igual a despeito de características moralmente relevantes que apontem que, devido às diferenças, o tratamento diferente é necessário moralmente.

A interpretação normativa do princípio formal da justiça como a igualdade dos indivíduos, incorporada por Regan, envolve ver certos indivíduos como dotados de valor em si mesmos, que o autor denomina valor inerente. Esse valor é (a) conceitualmente distinto do valor intrínseco que é atribuído às experiências que os indivíduos possuem (por exemplo, prazeres e satisfações de preferências); (b) não é redutível ao valor intrínseco – não se pode determinar o valor inerente de alguém por totalizar o valor intrínseco de suas experiências – aqueles que possuem vidas mais prazerosas não possuem mais valor inerente do que os que possuem vidas menos prazerosas e vice-versa, nem aqueles que tem mais preferências cultivadas possuem mais valor inerente do que os que não têm e vice-versa; (c) incomensurável com o valor intrínseco, tanto de suas experiências quanto com o valor intrínseco das experiências de qualquer outro indivíduo, ou seja, os dois valores não são comparáveis e não devem ser tomados um pelo outro dado que o valor inerente não é quantificável, nem em quaisquer soma de valor intrínseco de suas experiências nem totalizando o valor intrínseco de experiências de outros indivíduos. Ver sujeitos morais (agentes ou pacientes) como possuidores de valor inerente é vê-los diferentemente de, e como algo mais do que, meros receptáculos daquilo que é intrinsecamente valioso.

Regan defende a não-quantificação do valor inerente, porque, se admitidos graus, será preciso algum critério para se determinar a quantidade de valor inerente – o que poderá ser qualquer coisa como pertencer a tal raça, sexo, espécie ou, como nas teorias perfeccionistas, a posse de certas virtudes. Admitir então, graus de valor inerente seria abrir uma porta para visões perfeccionistas de justiça, que poderiam requerer, enquanto uma questão de justiça, escravizar aqueles que tivessem menor valor inerente para servir aos que tivessem mais. Como tal teoria de justiça é inaceitável, todos os que possuem valor inerente, o possuem igualmente.

O valor inerente não aumenta nem diminui: (a) De acordo com aquilo que se faz ou se deixa de fazer: o santo não tem mais valor inerente do que o criminoso e vice-versa. (b) De acordo com o indivíduo ser útil aos interesses de outros indivíduos: o filantropo não tem mais valor do que o vendedor inescrupuloso, e vice-versa. (c) De acordo com o indivíduo ser o objeto de interesse de outros indivíduos; o indivíduo amado não tem mais valor inerente do que aquele que ninguém se interessa pelo seu bem-estar e vice-versa. O valor inerente é essencialmente igualitário e não-perfeccionista.

Em virtude do valor inerente de agentes morais não aumentar ou diminuir de acordo com sua felicidade comparativa ou a soma de seus prazeres sobre as dores, seria arbitrário manter que pacientes morais possuem menor valor inerente porque seu leque de experiências é menor do que o de agentes morais. Além disso, devido à característica do valor inerente dos agentes morais não variar de acordo com a posse de certas virtudes ou de acordo com sua utilidade aos interesses de outros sem se abrir a porta para injustiças do tipo presentes nas teorias perfeccionistas, não se pode sustentar sem arbitrariedade a exclusão de pacientes morais da atribuição desse valor.

Assim, Regan apela à coerência, concluindo que a moralidade não pode adotar padrões duplos quando os casos são similarmente relevantes. Se é postulado o valor inerente igual no caso dos agentes morais, então estamos obrigados racionalmente a postular o mesmo no caso dos pacientes morais. Todos os que possuem valor inerente o possuem igualmente, sejam agentes, sejam pacientes morais, sejam humanos ou não-humanos. É nesse sentido, o da igualdade dos indivíduos, que Regan entende a expressão “todos os animais são iguais”, ou seja, no sentido de todos serem possuidores de valor inerente igual.

Qualquer teoria que vise interpretar o princípio formal da justiça precisa levar o valor inerente em conta. Regan propõe então o princípio do respeito como uma interpretação normativa do princípio da justiça: devemos tratar indivíduos que possuem valor inerente de maneira a respeitar o seu valor inerente[2]. Desrespeita-se um possuidor de valor inerente toda vez que se trata esse alguém como se fosse um mero receptáculo de experiências intrinsecamente valiosas ou como se o seu valor dependesse de sua utilidade para outros ou, ainda, como se seu valor dependesse do indivíduo ser objeto do interesse de outros.

Trata-se alguém como mero receptáculo de valor intrínseco ao se causar um dano a ele com vistas a trazer à tona a melhor agregação de conseqüências para todos os envolvidos. Tal tratamento é desrespeitoso porque assume que o dano causado a ele pode ser compensado pelo benefício causado a outros indivíduos. Causar dano é errado prima facie e não absolutamente, mas a justificativa para causar o dano não pode ser dada meramente na base de que tal ação produz o melhor agregado de conseqüências para todos os envolvidos.

Reduz-se o valor de um indivíduo à sua instrumentalidade toda vez que se causa um dano a ele meramente na base de que isso é útil para outros (dado que seu valor não se resume à sua utilidade para outros) ou toda vez que ele é respeitado apenas na medida que outros nutrem algum sentimento (de amor, por exemplo) ou interesse em seu bem-viver. Dado o caráter igualitário do valor inerente, tentar justificar um dano a um indivíduo possuidor de tal valor meramente na base de que tal indivíduo não é amado, ou que o sentimento nutrido por tal indivíduo é menor do que aquele nutrido por outros, é cometer injustiça e mostrar desrespeito.

A idéia de valor inerente já é bem aceita para o caso de agentes e pacientes morais humanos. Contudo, há geralmente uma enorme relutância em reconhecer esse valor quando a questão se trata de animais não-humanos. Que razões poderiam ser dadas para se sustentar que apenas seres humanos possuem esse tipo de valor? Como um exemplo, poderíamos perguntar: por que é errado usar um animal humano como um recurso (seja para comer, fazer experimentos, ainda que esse uso não envolve dor e sofrimento) e não é errado fazer o mesmo com animais não-humanos?

Uma das respostas freqüentes é que apenas os humanos teriam esse valor pelo simples fato de serem humanos. Para mostrar a irrelevância desse critério, cito o exemplo de Singer[3]: supondo que uma amiga de muitos anos nos revelasse que é, na verdade, uma extra-terrestre, a despeito de parecer uma humana. Isso seria uma razão moral para usá-la como se fosse um mero recurso? Se queremos saber: “o que torna todos os da nossa espécie tão especiais?”, temos que procurar em outro lugar que não no próprio fato de pertencermos à espécie que pertencemos. Caso contrário, poderíamos simplesmente dizer que apenas sapatos têm valor inerente, simplesmente pelo fato de serem sapatos.

Muitos apontam que humanos possuem capacidade para a razão plena (o que lhes fornece capacidade para ação moral, para compreender e reivindicar direitos, cumprir deveres, fazer contratos e um senso de justiça). Mas assim estariam excluídos os bebês, as crianças até uma certa idade, os humanos com certas lesões cerebrais, e os idosos senis. Em última análise, esse critério exclui a todos nós, porque podemos, a qualquer momento, perder a plena posse da razão, por motivo de acidente ou doença degenerativa. Além disso, muitos animais não-humanos possuem níveis de raciocínio muito acima do deles, e, no entanto, continua-se a usar esses animais como recursos, enquanto que aqueles humanos são respeitados.

Alega-se então que idosos senis podem já ter tido a razão desenvolvida um dia e bebês saudáveis possuem a potencialidade para desenvolvê-la. Contudo, certos humanos passarão a vida inteira certamente impedidos desse desenvolvimento, devido à doença ou acidente, e nem por isso os usamos como se fossem nossos recursos. O que podemos concluir disso, é que não há como traçar uma linha divisória, com base em nenhuma característica sobre o nível de raciocínio, que coloque todos os humanos acima e todos os não-humanos abaixo.

Outros (por exemplo o filósofo Carl Cohen) argumentam também que um indivíduo não deveria ser tratado de acordo com suas próprias características, mas sim com as relativas ao grupo que pertence. Vendo desta maneira, humanos são de uma espécie tal que a maioria dos membros é dotada da posse plena da razão, não importa se alguns indivíduos (muitos) não o são. Sugerem então devemos não escravizar os humanos não-possuidores da razão plena, enquanto que, um não-humano, mesmo que tivesse a posse plena da razão, deveria ser escravizado porque pertence à uma espécie tal cuja maioria dos membros não a possui. Essa mudança de foco, do indivíduo para o grupo possui dois problemas: (1) caso se queira manter coerência, dever-se-ia sustentar que alguém que passa numa prova não deveria conseguir uma vaga só porque a maioria dos membros de seu grupo não conseguiu; (2) não dá um argumento do porquê o grupo (raça, sexo, espécie) deveria ser uma característica moralmente relevante, e nos leva novamente para o início do questionamento.

As tentativas até agora de provar a superioridade humana, não foram bem-sucedidas porque buscaram critérios não vinculados ao assunto do qual estavam tratando. O assunto é sobre o respeito que alguém merece. Alguém precisa de respeito justamente porque alguém está vulnerável ao dano que outros podem lhe causar. É por isso que não excluímos do escopo do princípio do respeito os humanos que não possuem posse plena da razão. Ao contrário, damos maior atenção ainda aos seus interesses, pois estão numa situação de maior dependência dos nossos cuidados, possuindo, portanto, uma vulnerabilidade maior. Tradicionalmente, tem-se cometido uma confusão entre tomar o critério para ser agente moral (e pois, responder pelas conseqüências dos seus atos, por conseguir deliberar moralmente sobre questões de ética e justiça) – a plena posse da razão – e aplicar este critério para indicar quais seriam os pacientes morais (que não precisam, obviamente, da plena posse da razão para estarem vulneráveis aos atos dos agentes morais).

Se não conseguimos apontar uma diferença moralmente relevante entre humanos e não-humanos que justifique a diferença no tratamento, é sinal de que nós, que nos auto-proclamamos racionais, estamos embasados num preconceito irracional, de aparências: o especismo (termo criado pelo filósofo e psicólogo Richard D. Ryder, para se referir a esse preconceito, análogo ao racismo e ao sexismo). Como apontou o teólogo Humphry Primatt, já em 1776, se não há mérito ou demérito por alguém ter nascido com este ou aquele formato de corpo (raça, sexo ou espécie), uma vez que isso não resulta de investimento pessoal (qualquer um de nós poderia ter nascido com cauda, patas e bico), como usar essas características para justificar o uso do outro como se fosse um recurso?

Desse raciocínio, a aceitação da idéia de valor inerente chega a uma perspectiva que prescreve abolir do uso de animais (não-humanos e humanos) como recursos para outros indivíduos. É o sistema por completo, por ser injusto, que deve ser abolido, e não os seus detalhes, ajustados. Não é apenas a inflição de dor que envolve desrespeito. Por exemplo, a morte também é um dano, embora possa acontecer sem dor alguma. Mas, dor e morte não são os únicos danos. E, às vezes, não há dano, mas apenas a coação e intenção de causar o dano. O ponto fundamental é que a instituição de uso de não-humanos (para comer, experimentar e qualquer outro fim) viola o princípio básico de que indivíduos possuidores de valor inerente não são meras coisas. Não é a regulamentação, redução, refinamento e substituição gradual que é requerida, e sim a total eliminação do uso de animais.

Abordo, agora, as principais objeções a se abolir o uso de animais não-humanos enquanto recursos. Foco as objeções na questão do uso de animais na ciência não por pensar que o debate sobre as outras formas de exploração sejam menos importantes. Pelo contrário, o que pretendo aqui mostrar é que, caso o argumento de Regan derrube os argumentos levantados pelos conservadores com relação a um uso como a experimentação animal, que promete a cura de doenças e promete salvar vidas, então fica muito clara qual a conclusão que temos de tirar em outros casos que não prometem nada disso, como por exemplo, comer produtos de origem animal (ovos, leite, carne, etc.).

A experimentação animal tem sido desafiada freqüentemente devido a razões de cunho científico; por exemplo, quanto ao problema de extrapolação de dados de uma espécie biológica para outra, quanto à não-necessidade de se repetir experimentos dos quais já se sabe o resultado e quanto a não-necessidade de se usar métodos para os quais já existem alternativas disponíveis. Apesar de Regan reconhecer a validade técnica desses questionamentos, reconhece também que há nesses argumentos o erro de se tratar uma questão de ética com argumentos técnicos. Tais argumentos dão a entender que, se não houvesse problema de extrapolação de dados (como não há, no caso de produtos ou tratamentos para membros da mesma espécie, por exemplo, no uso de animais não-humanos no avanço da medicina veterinária), ou, se ainda não se soubesse que uma substância é ou não tóxica, ou ainda, caso não existisse alternativa para um determinado experimento, então o teste seria eticamente justificável, o que revelaria, no final das contas, um viés especista. A razão pela qual se deve desafiar esses testes, é sua fundação moral. Não é possível desafiar uma prática fundada num erro moral sem desafiar esse mesmo erro, e pior, ao incorporá-lo.

Usar animais para obtenção de conhecimento é enxergá-los como meros receptáculos ou recursos renováveis cujos direitos podem ser violados com base na agregação de benefícios para outros (humanos ou não-humanos). Números não fazem diferença na visão dos direitos, defendida por Regan; não importa se o número de indivíduos que poderiam ser beneficiados é maior do que o número de animais usados, pois isso seria reduzir cada um destes a mero receptáculo de valor intrínseco. Ninguém (seja humano, seja não-humano) deve ser tratado como se fosse um mero receptáculo, como se seu valor fosse redutível à sua possível utilidade para outros. É por isso que o uso de animais é errado, segundo a teoria dos direitos, independentemente de haverem chances reais e seguras de se obter os benefícios alegados. Tratar os indivíduos com vista a respeitar o seu valor inerente requer a abolição de todas as práticas que institucionalmente os tratam como se o seu valor fosse redutível aos interesses de outros.

Adquirir conhecimento é bom, mas o valor do conhecimento não justifica danar os outros, muito menos quando o conhecimento pode ser obtido por outros meios. O benefício que poderia (ou iria certamente) resultar para outros é moralmente irrelevante. Bons fins não justificam maus meios. A seguir, abordo as principais objeções à abolição do uso de não-humanos em experimentos. Todas essas objeções assumem que o conhecimento tem mais valor que o dano causado pela dor, morte ou privação, então, vêem os indivíduos como meros receptáculos ou recursos renováveis, um erro grave, de acordo com a teoria dos direitos:

Uma objeção comum à abolir o uso de animais na educação, é a de que, enquanto é possível obter os dados sobre anatomia e fisiologia a partir de outros métodos, a experiência de dissecar só pode ser obtida com a prática mesma. Se algo pudesse ser justificado eticamente apenas por se afirmar que “a experiência de se praticar o ato só é obtida praticando-o”, poder-se-ia justificar qualquer coisa, desde assassinato até estupro. O que devemos aprender com isso, é que, se há a possibilidade de justificar eticamente uma prática, deve-se procurar em outro lugar que não na alegação de que a experiência de se praticar algo só pode ser obtida praticando esse algo. Isso é tão redundante quanto irrelevante.

Outra objeção é a de que os interesses econômicos dos produtores de animais configurariam uma razão para a continuação da realização dos testes. Contudo, interesses econômicos não podem ter mais peso do que direitos morais básicos[4]. É falso que os produtores, caso tivessem seus lucros perdidos, sofreriam dano maior que os animais usados. E, mesmo que sofressem um dano maior, ainda assim não haveria justificativa ética para os testes, pois aqueles que escolhem se envolver em um negócio devem estar preparados para perder seus lucros. Quanto aos dependentes (filhos, por exemplo) dos produtores, que não escolheram voluntariamente se envolver na atividade de risco, a resposta é a mesma quanto aos dependentes dos pecuaristas: são os envolvidos na atividade de risco que possuem um dever adquirido de não os deixarem ficar numa condição de dano. Ninguém tem o dever de comprar seus produtos. Uma vez implantado o abolicionismo, os ex-produtores de animais, seja para qual fim for, podem fazer o que estiver ao seu alcance para garantir que seus dependentes não sofram dano, desde que, ao fazerem isso, não violem os direitos de quaisquer indivíduos, humanos ou não-humanos.

Uma objeção possível é alegar: as agências do governo regulamentadoras do comércio de produtos exigem esses testes. Contudo, nenhuma dessas agências requer introdução de nenhum novo tipo de produto. Mesmo se a lei exigisse essa introdução, ainda assim a questão moral não estaria decidida, pois se existem razões para se afirmar que a lei é injusta, ela não carrega peso algum nas decisões morais. A lei em questão considera os animais não-humanos como meros recursos, então ela não justifica eticamente os testes, ao contrário, o raciocínio ético revela a injustiça presente na lei e a necessidade de se modificá-la.

Algumas pessoas aceitam o fim do uso de animais para testes de cosméticos e outros produtos, mas não o fim dos testes de drogas com fins terapêuticos, já que se corre um risco ao se comprar um remédio caso esse não tenha sido testado e ficar sem tomar o remédio causa um dano grave. Um problema com essa objeção é ela assumir que a ética permitiria transferir os riscos, de uns, para outros que não escolheram correr esses riscos voluntariamente. O segundo ponto é, dada a natureza da ação (desrespeitosa, viola o princípio do respeito e o postulado do valor inerente), o quanto de dano sofrerá o violador e o violado não é relevante. O que importa é: “alguns indivíduos são colocados em risco de dano, contra a sua vontade, em nome de reduzir os riscos que outros voluntariamente correriam e assim podem voluntariamente decidir não correr[5]”, como comprar um remédio, por exemplo. Importa não o quanto de dano é causado (apesar de, quanto maior o dano, maior o erro), e sim que esses indivíduos não-humanos estão sendo coagidos, e portando, não estão recebendo o respeito a eles devido enquanto possuidores de valor inerente. Usar animais não-humanos em testes, incluindo testes de remédios é tratá-los como recursos renováveis. Alegar que, às vezes, eles não sofrem dano nos testes, é, nas palavras de Regan, “como defender a caça na base de que a raposa às vezes consegue escapar[6]”, ou seja, moralmente irrelevante.

O segundo problema é que a teoria dos direitos não prescreve parar com as pesquisas; apenas com as pesquisas que violem direitos (de humanos ou não-humanos). Regan vê então três opções: (1) Ou testa-se em voluntários humanos, o que é perigoso (pela dificuldade de se provar que o consentimento é realmente um consentimento informado, ou se está sendo uma coação); ou (2) Continua-se a violar os direitos dos não-humanos, o que é injustificável, ou (3) Encontra-se alternativas válidas. É essa última opção que Regan reconhece como um dever.

Uma objeção comum a abolir o uso de animais na ciência é: não-humanos também têm sido beneficiados pelos testes realizados nos não-humanos; logo, os testes são eticamente justificáveis. Regan responde que, para a conclusão ser válida, a premissa deveria ser “os testes não violam os direitos básicos”. Violar os direitos não pode ser justificado na base do bem-estar geral, pois os benefícios que outros recebem só contam moralmente se nenhum direito individual foi violado. Não é o mesmo indivíduo não-humano usado no testes que é beneficiado, e sim outro indivíduo não-humano. Tal objeção revela um viés especista.

A objeção seguinte alega que os animais, por não serem agentes morais, não podem consentir nem “des-consentir”, logo não podem ser forçados nem coagidos. É verdade, animais não-humanos, diferentemente de alguns humanos (e semelhantemente a outros) não podem dar consentimento informado por não entenderem as informações técnicas sobre a pesquisa. Contudo, é plausível fazer suposições sobre o que eles querem, preferem, necessitam, pretendem, e, por isso, plausível dizer: eles podem ser forçados a fazer algo que não querem. Negar que animais usados no teste LD50 não querem ingerir as substâncias tóxicas e negar que os experimentadores estão forçando-os a ingerir as substâncias é uma distorção absurda.

Alguém pode aceitar o argumento dos direitos animais quanto a praticamente todos os usos (carne, leite, ovos e outros produtos de origem animal, testes de produtos e testes de remédios), mas não concorde com as conclusões sobre o fim do uso de animais na pesquisa médica, visto que, diferentemente de outros usos, não é para simples conveniência humana, e ninguém escolhe ficar doente. O psicólogo C. Randy Gallistel argumenta que não há como estabelecer a relação entre o sistema nervoso e o comportamento sem cirurgia experimental, logo, essa prática seria justificável. Gallistel reconhece que a maioria dos experimentos na neurobiologia e na ciência em geral não têm trazido novas descobertas nem resolvido problemas antigos, mas afirma também a impossibilidade de distinguir inicialmente os experimentos que trarão importantes descobertas, dos que serão perda de tempo.

No entender de Regan, não é verdade que o único jeito de estabelecer a relação entre o sistema nervoso e o comportamento seja através de cirurgia experimental. Pode-se estudar através de observação clínica os casos daqueles que sofreram danos no sistema nervoso. Não é verdade que não é possível distinguir uma pesquisa que é uma perda de tempo da pesquisa com um propósito importante e um método bem estabelecido, já que é para isso que os comitês de avaliação de pesquisa servem. Contudo, o erro fundamental do argumento de Gallistel é outro: é o tentar justificar danar um indivíduo (mesmo um simples rato, como afirmam os especistas) meramente por agregar os benefícios para muitos ou quaisquer outros indivíduos. Isso seria tratar o rato como um mero receptáculo, coisa que a visão dos direitos afirma categoricamente que ele não é.

Outra objeção pergunta: “se, numa casa em chamas, é justificável escolhermos salvar um filho e não um animal que está na casa”, ou “num desmoronamento de uma mina, se a única maneira de salvar muitas pessoas é explodindo uma saída na qual se encontra apenas uma pessoa, tal ação é justificável”, por que haveria de ser errada a experimentação animal? A visão dos direitos proíbe colocar outros indivíduos em risco de dano. Isso elucida a diferença existente entre o uso de animais na ciência e as situações do exemplo[7]. Caso fossem dois humanos na casa em chamas, deveríamos escolher um dos dois, mas isso não justifica o uso daquele não escolhido como modelos de testes. Não é justificável infligir um dano a alguém meramente porque o dano sofrido por ele é menor do que o dano de outro. Isso seria tratar os indivíduos como recursos.

A justiça ou injustiça de instituições e práticas não é garantida pelo que se decide em casos excepcionais. Supondo que num bote, há humano saudável e de inteligência mediana, e outros quatro brilhantes cientistas, todos os quatro com uma doença grave degenerativa, e que teriam à mão uma tecnologia não-testada que poderia curar sua doença. Seria justo usar o humano menos inteligente como uma ferramenta de testes? Regan reconhece que alguns diriam que sim, mas não um defensor dos direitos, e, mesmo aqueles que diriam sim num caso excepcional, se tiverem o mínimo senso de igualdade, não concluiriam que devem então buscar uma política pública de abuso institucional dos humanos menos inteligentes com vistas a curar doenças humanas. Caso fosse concluído a favor do abuso institucional, tal conclusão se apoiaria numa visão perfeccionista de justiça, rejeitada por Regan justamente por não ser uma base eqüitativa para determinar a justiça de práticas envolvendo humanos, então não pode o ser para determinar a justiça de práticas que envolvam não-humanos.

Outra objeção alega que os defensores dos direitos animais seriam hipócritas por desfrutarem de remédios e tratamentos obtidos às custas do uso de animais na ciência. Regan relembra que não existe um dever com relação a direitos morais básicos que valha para uns agentes e não para outros. Caso esse dever existisse esse dever todos teriam o dever de se abster desses remédios, não apenas os defensores dos direitos animais, já que não existem deveres adquiridos quanto a direitos morais básicos, apenas quanto a direitos adquiridos, e o direito ao tratamento respeitoso, como foi visto, é um direito moral básico. Porém, não é verdade que esse dever existe. No caso dos remédios já existentes, o mal já foi praticado, pois os animais são usados na fase de pesquisa. Nos Estados Unidos, muitas ruas foram originalmente pavimentadas com trabalho escravo. Ninguém diria que só porque alguém caminha nessas ruas, ela não pode se opor ao trabalho escravo, ou, se ela se opõe ao trabalho escravo, não pode caminhar nessas ruas[8]. Poder-se-ia objetar à essa resposta, afirmando ser isso a mesma coisa que dizer: “comer carne é correto porque o animal já foi morto antes”. Contudo, o conhecimento é um bem permanente. Uma vez obtido, continua disponível para outros se beneficiarem dele. A carne, ao contrário, toda vez que alguém resolve comê-la, favorece que aquele tipo de prática continue, pois seria impossível a existência da mesma sem aquelas mortes. Para ilustrar o falso dilema moral, vale lembrar o seguinte: supondo que a experimentação animal fosse abolida hoje, que dilema moral haveria em se consumir um produto feito a partir de conhecimentos obtidos com a experimentação animal, uma vez que não há mais uso algum de animais?

Outra objeção seria “mas, nas plantações, por acidente acaba-se matando muitos animais, então, o que haveria de errado em matar mais alguns ratos para curar doenças?”. Milhares de humanos morrem acidentalmente, em virtude de efeitos colaterais de outras práticas que cultivamos (como dirigir automóveis, por exemplo), mas nem por isso tiramos a conclusão de que estamos eticamente autorizados a fazer uso de “mais alguns” humanos em experimentos. No caso dos não-humanos, tratar a questão na base do “mais alguns” revela uma falha em entender a idéia de valor inerente, um valor que não pode ser quantificável e está fundado na idéia do respeito pelo indivíduo, independentemente de quantidades. Use-se um animal ou milhares deles, o erro é feito a cada indivíduo separadamente, não à soma deles, porque não existe um único indivíduo que é a soma deles que irá sofrer o dano agregado.

Outra objeção afirma que enquanto sociedade decidimos usar os animais para propósitos científicos, então, todo cientista teria o dever adquirido de servir a vontade pública. Segundo essa objeção, esse contrato seria uma consideração especial que contaria para suspender os direitos no caso do uso científico. Regan sustenta não dever-se concluir que a validade moral de um contrato se dá meramente pelo fato de certos indivíduos entrarem nele voluntariamente. A moralidade do contrato depende do tratamento respeitoso de todos os envolvidos, não apenas dos que entraram no contrato. Um comerciante de escravos, ao prometer um escravo para seu cliente, não possui nenhum dever adquirido para com este, dado que a instituição mesma da escravidão é injusta em sua essência. O mesmo se dá com o uso de animais. O suposto contrato entre a sociedade e ciência não tem validade alguma, pois os animais, por serem usados como recursos, não recebem o tratamento respeitoso devido a eles.

Se os argumentos da teoria dos direitos foram compreendidos, o que essa teoria prescreve é que os testes devem parar imediatamente, havendo alternativas já disponíveis ou não. Se não existem alternativas, a teoria dos direitos sugere a busca delas, mas antes de tudo é preciso interromper o uso de animais. O valor inerente dos não-humanos não simplesmente desaparece caso tenha-se buscado por alternativas e não se as tenha encontrado, pois esse valor é independente da utilidade deles para outros indivíduos.

De acordo com Regan, a acusação de anti-cientificidade é uma cortina de fumaça com vistas a impedir a discussão sobre a questão moral. Pela conclusão necessária que se segue da teoria dos direitos, qual seja, a da busca de alternativas, coloca-se uma necessidade de se praticar ciência genuína (a busca por novos conhecimentos). A visão abolicionista clama apenas pelo fim da pesquisa que viole direitos, seja de humanos, seja de não-humanos. E, mesmo que fosse verdade que certas coisas jamais poderiam ser descobertas a não ser por violação de direitos, então a visão dos direitos ordena que elas nunca sejam descobertas. No caso de violação de direitos humanos, isso é aceito. A teoria dos direitos animais requer apenas coerência.

Em relação a isso se objeta que a teoria dos direitos animais é anti-humana porque permite que humanos morram de certas doenças enquanto não se descobre o tratamento para elas, tratamento que poderia ser descoberto violando-se os direitos básicos de não-humanos. Regan relembra primeiramente que a natureza não é um agente moral, então os humanos não possuem um direito (uma reivindicação válida contra ela) de não ficarem doentes. O que a humanidade possui é um direito adquirido ao tratamento igualitário, eqüitativo por parte dos médicos. Estes adquirem o dever de atenderem os doentes, e não discriminarem por raça, gênero, nacionalidade, capacidades intelectuais, etc. Como os pacientes possuem um direito adquirido devido à sua condição, esse direito jamais pode ser mais forte do que um direito moral básico (um direito que os membros da comunidade moral possuem independentemente da posição que ocupam nos arranjos institucionais e de seus atos). Assim, nenhum profissional de saúde está autorizado moralmente a, no cumprimento de seus deveres adquiridos, violar os direitos básicos de alguém. A filosofia dos direitos animais não é anti-humana exatamente por reconhecer e iluminar os direitos morais básicos dos humanos. O que a filosofia dos direitos animais relembra é ninguém ter o direito de forçar outro indivíduo (humano ou não-humano) a ser modelo de testes. Tal filosofia coloca um desafio científico: buscar meios de atender o interesse público sem violar os direitos de outros. Os defensores da impossibilidade se descobrir isso é que são verdadeiramente anti-científicos, afirma Regan[9].

A visão dos direitos requer fazer ciência, requer trabalhar para o bem geral, mas fazer tudo isso sem violar os direitos individuais. Essa visão requer nada menos do que a total abolição do uso de animais não-humanos (e de humanos também) enquanto recursos; seja na alimentação, na ciência, no entretimento ou na vestimenta. A aceitação da teoria dos direitos requer a total abolição desse uso não por uma questão de bondade nem por oposição à crueldade, mas porque a justiça assim exige.

Agradeço à Tânia Kuhnen pelas sugestões e revisão do texto original.

Notas

[1] Segundo Tom Regan, direitos morais possuem três características básicas que os distinguem dos direitos legais. A primeira, é seu caráter universal, no sentido em que, se um indivíduo A possuir um direito moral, então todos os outros indivíduos semelhantes a A nos aspectos relevantes também possuem esse direito. O que conta como aspecto relevante é algo controverso, mas não há controvérsia no fato de que certas coisas não podem contar como aspectos relevantes, como raça, gênero, lugar de nascimento e sociedade em que vive (como podem contar nos direitos legais). A segunda seria seu caráter igualitário: não existem graus de possessão de um direito moral; todos que o possuem, possuem igualmente, nas mesmas proporções. A terceira, é que direitos morais não surgiriam a partir de atos de um indivíduo ou um determinado grupo de indivíduos. É possível, é verdade, se criar direitos legais que garantam e protejam os direitos morais, mas, ao se fazer isso, não se está criando os direitos morais. Cf. REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. 2nd ed. Los Angeles: University of California Press, 2004, p. 26, 268.

[2] REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. 2nd ed. Los Angeles: University of California Press, 2004, P. 248..

[3] SINGER, Peter – The Significance of Animal Suffering. In: BAIRD, Rober M. & ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. Amherst, NY: Prometheus Books, 1991, p. 59.

[4] Diferentemente dos adquiridos, não dependem de quaisquer atos, ou da posição que se ocupa dentro de um arranjo institucional.

[5] REGAN, Ibid, p. 377, grifos de Regan.

[6] REGAN, Ibid, p. 378.

[7] Cf. REGAN, Ibid, p. 291-294.

[8] Sobre esse tópico, ver FRANCIONE, Gary L. Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? – Philadelphia: Temple University Press, 2000, p. 180, 181.

[9] REGAN, Ibid, p. 381.

(Texto da palestra apresentada no dia 28 de outubro de 2008, na mesa redonda em homenagem à Prof.ª Dra. Sônia T. Felipe, no Seminário de Ética e Filosofia Política da UFSC).


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