O trabalho infantil na pecuária ou ‘Vamos evitar esse assunto’

O trabalho infantil na pecuária ou ‘Vamos evitar esse assunto’

“Lá em Alegrete quem não é estancieiro é boi. Como não tenho vocação para nenhuma das duas coisas, vim para Porto Alegre” – Mário Quintana

Duas manchetes que correram a Internet nos últimos dias foram ‘Relatório da ONU aponta trabalho de crianças em matadouros no Brasil’ e ‘Brasil é citado em relatório da FAO sobre trabalho infantil na pecuária’. Que feio, sr. Brasil. Crianças cuidando de crianças.

O ideal é evitar esse assunto, aliás.

Mas como vencer uma tradição? Derrubar esse heroísmo fake de quem trabalha/monta/cria/exporta gado, cantado em músicas chorosas, ilustrado em fotos bucólicas, exibido em novelas? Propaganda vendida como Jornalismo no noticiário, esse que abre espaço durante o jantar das famílias médias, corretas e conscienciosas dos índices necessários de proteína.

E a grande maioria das pessoas jamais chegou perto de uma vaca, mas orgulha-se da pecuária e de seu suposto desenvolvimento para o país, divisas, empregos, fomento, sustentabilidade, carbono, mercado verde – essas palavras todas que deve-se engolir a seco e fazer cara de que se está entendendo, para não parecer desinformado. Ganhar dinheiro manchado de sangue nunca foi tão prafrentex.

Repare que o calendário de parede dos açougues sempre traz animais saltitantes sobre fundo de grama verde, ou despreocupadamente contemplativos. Reproduzir no papel o que está no balcão seria coisa de psicopata, claro. O ideal é evitar esse assunto, aliás.

Então temos uma indústria fordista que faz nascer animais e, nesse momento, já liga o cronômetro para vê-los mortos, dentro de um prazo que garante lucros para uma microminoria. Ninguém, aí fora, pegando ônibus ou metrô, está recebendo direitos autorais por cada ‘campo-de-futebol-desmatado-na-Amazônia’, seja para pré-churrascos ambulantes pastarem ou para um barrigudo fazendeiro plantar soja para virar ração para o gado. Tipo aqueles potes metalizados que são vendidos para quem faz musculação.

Só que é preciso manter o vidro da vitrine brilhando, o tapete da frente branco e impecável, junto com as botas, as caminhonetes e os filhos-que-vão-estudar-na-Capital-para-virar-doutor. Entranhar seu meio de produção na tradição – essa coisa grudenta que cegamente aceita como ótimo e sacraliza tudo que for velho, cultura – idem – e valor patriótico do restante das pessoas, que voluntariamente dão seu apoio ao crescimento da riqueza de terceiros.

Alguns chegam a comprar briga, discutem nas redes sociais, debocham e seguem suas vidas urbanas, longe do campo e sem possuir nenhuma escritura de propriedade rural na gaveta. “A lágrima é verdadeira”.

E o pêndulo vai de um lado a outro, passando pelos que ‘amam animais’ mas diariamente pagam o carnê-bife que, lá na ponta, bem longe das vistas, chicoteia o gado e a criança que cuida do gado. Quanto mais barato for, para quem já é rico, melhor. Todos concordam, ou fingem que concordam, com medo de fazer desfeita. E o pêndulo passa pelos bem-versados que discursam sobre biodiversidade, ecologia, Código Florestal, Belo Monte, créditos de carbono, reciclagem, etc, desde que não se interfira no cardápio do dia.

Alguns poucos estancieiros, milhões de bois e nenhum Mário Quintana.

E esse gigantesco motor, que digere vidas humanas e não-humanas, raspa o verde da natureza, elege deputados, hipnotiza ‘ecologistas’ e marca a ferro o povo basbaque, usa também como combustível a mais-valia da força de trabalho de crianças. Mas o ideal é evitar esse assunto.

Por Marcio de Almeida Bueno

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